Texto por Marco Fialho
Um homem está numa floresta montado em um cavalo enquanto a câmera o acompanha sem pressa. A música que ouvimos na mesma cena nos remete aos faroestes, com uma guitarra tocada com slide. A tela fica preta e entra o título do filme e volta numa imagem que depois descobriremos que se passa no passado. Veremos na continuidade o massacre de uma família pela posse de uma terra. O sobrevivente desse massacre é uma menino, justamente o que está no cavalo na primeira cena.
Essas são as credenciais que o diretor Frederico Machado apresenta para o espectador, na apresentação de seu nome filme, Terra Devastada. Quem espera mais uma daquelas obras metafísicas, quase impenetráveis, errou feio, porque dessa vez o diretor aposta em um cinema mais cru, onde a disputa pela terra e por corpos estão postos de maneira direta, sem muitos rodeios. Um filme de personagens, onde Shakespeare marca um encontro inusitado com Sergio Leone (em especial as cenas das matanças, com os closes e olhares muito bem pensados) e Sam Peckinpah (pela encenação das mortes), em que poder, tempo e decadência são confrontados impiedosamente e permeados por uma violência tão bem aprumada nos confins onde melhor se conhece que país é esse.
A trama se passa em um pequeno município no interior do Maranhão, onde lei e governo pouco importam, nosso eterno faroeste caboclo, cujo destino de cada um é decidido pela força, e lá, nesse território selvagem, quem manda é Antônio (Buda Lira), um patriarca que manda e decide por todos que vivem na redondezas e onde é no bar em que encontros esperados e surpreendentes acontecem. Outro espaço fundamental é o do boite, que está lá com sua música romântica brega e seu clima de sedução para quem pode pagar por diversão e prazer.
A fotografia, da cena inicial do massacre da família que não quer vender suas terras para Antônio, anuncia duas condições primordiais e definidores do universo abordado: a sombra e a cor de terra (que lembra tanto o objeto em disputa como o destino final de quem não sobreviver à luta). E de ambos, o filme tem bastante, e as imagens não estão para desmentir, apenas para reafirmá-las. Se em Terra Devastada o discurso é direto, a mise-en-scène construída por Frederico Machado é incisiva, com diálogos cortantes e câmera colocada em ângulos que sublinham a expressividade das cenas e a personalidade de cada um dos personagens.
Aos poucos, relações de poder e dependência se afloram nas cenas, e surge a personagem de Maria (Áurea Maranhão), determinante para o destino de Terra Devastada. Nesse corpo reside contradições do poder estabelecido, ela, uma prostituta conhecida, que foi, e é, amante de Antônio e do filho dele, Glauber (Vinicius Bustani), com quem também tem um caso, além de um filho com ele. Aqui, não só as terras são devidamente demarcadas, mas igualmente os corpos.
A chegada de José (Bruno Goya), o forasteiro, será o elemento de desequilíbrio e desestabilização desse território, cuja algibeira vem carregada de cobranças e reajustes no âmbito do poder local de Antônio. Glauber, que administra os negócios e terras da família, tem seus conflitos de território com quilombolas, brigas que estão transitando na justiça, mas que podem ser resolvidas à bala.
Antônio conta com seus capangas inseparáveis Chico (Auro Juriciê) e Romão (Walter Sá), prontos para cumprir cegamente as suas ordens, mesmo que na calada da noite o odeiem. A relação dos capangas traz a questão da masculinidade posta nesses rincões de uma maneira insólita. O questionamento acerca desse universo machista está presente também em Oeste Outra Vez (2024), de Érico Rassi, característica que os aproxima e avizinha ambas as obras. Chico, em certo momento de intimidade com Romão, diz o quanto eles são um nada e que só servem para carregar mortes nas costas, desagregados que fomentam a desagregação de outras famílias. Algo que os sintetiza bem, assim como a todos os personagens masculinos de Terra Devastada.
Os filhos de Antônio são súmulas perfeitas para a devastação que não é só sobre as terras, mas das almas de Glauber e Carminha, esta última com crise nervosa é uma nulidade para a família. Os ressentimentos estão no cerne dessas relações apodrecidas como frutas caídas no chão. E Frederico Machado nos brinda com várias cenas que ilustram a pestilência dessa decadente família, como a discussão certeira entre a matriarca Graça (Zezita de Matos), primeiro com Antônio, depois com Glauber, sobre eles. Há um sentimento da má consciência a rondar esses personagens, como uma ferrugem a comer a dureza de seus atos e ossos de uma tradição política dominada pelo sangue nas mãos.
Frederico Machado retira o maior foco da discussão em si das terras, para mostrar algo que está no centro dos conflitos: a natureza humana e a sua sociabilidade e a luta pelo poder, e não só falar da terra, pois os responsáveis pelas brigas são os seres humanos e suas contendas. Há ambição, vaidade, egoísmo e outros sentimentos humanos e são eles que vão por em risco a vida equilibrada. A terra é só o pretexto para que esses sentimentos sejam aflorados e continuamente despertos. O corpo de Maria vira um centro de disputas e desejos, mas Frederico a insere com seus desejos e são eles que mudarão o rumo da história. Frederico Machado tem muito mérito pelo roteiro bem azeitado, que vai entregando pistas na medida certa e adicionando mais tempero para as cenas finais. Terra Devastada alia secura narrativa com solidez fotográfica (um êxito de Edver Hazin), em um misto de realidade e fantasia desejosa. "Os tempos agora são outros" e essa afirmativa crucial, vem de Chico, um dos asseclas de Antônio. Os quilombolas são uma realidade e seus discursos e práticas não aceitam mais a submissão de classe.
A história do local, com suas tradições de manipulação política e poderes que passam de pai para filho, já não são mais eternos e isso está evidente na narrativa de Terra Devastada. Os tempos mudam, isto está posto nas conversas entre personagens, de que tudo um dia pode e deve mudar e levar a vida para outro rumo. O passado é a maior sombra desse presente violento e machista e volta e meia ele surge entre alguns diálogos, como memória afetiva ou rancor. Quando o passado representa a violência e a injustiça, ele volta, ou melhor, ele jamais morre e persiste até que algo venha para repará-lo. José representa essa força pela justiça. Maria também, o que justifica a aliança entre eles.
Terra Devastada mostra um novo Frederico Machado, com um novo estilo ou será uma exceção ao restante de sua obra? Isso só o tempo dirá. Vale até uma digressão, um estudo comparativo que aqui, por ora, não cabe fazer. Mas vale registrar que em ambos estilos narrativos os resultados são interessantes e trazem reflexões importantes sobre o comportamento do homem na sociedade.
Mesmo que esta produção se diferencie formalmente de outras anteriores, como O Exercício do Caos (2013), A Lamparina da Aurora (2017), para citar apenas duas, o cinema de Frederico Machado com Terra Devastada continua a ser visualmente relevante, com silêncios que dizem muito e temáticas sociais fortes e expressivas.
Entretanto, não é na mise-en-scène propriamente dita que se deve buscar as diferenças que sentimos nessa nova obra, talvez mais no roteiro e na própria ideia de narrativa, que abre mão dos elementos mais metafísicos e fantásticos que sempre fundamentaram a obra de Machado. Porém, não posso negar o quanto esse novo estilo de narrativa me pegou de jeito, por proporcionar uma visão mais clara do pensamento cinematográfico do diretor.

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