Texto por Marco Fialho
"A arte é um sentimento que se experimenta, que o artista desenvolve nele para compartilhar com os outros". Frase que o personagem Sabzian atribui a Leon Tolstói
Estudar o cinema de Abbas Kiarostami é mergulhar no imaginário do cinema. Um dos ícones do cinema iraniano dos anos 1980 e 1990, o diretor realizou obras cruciais para o pensamento cinematográfico contemporâneo. Obras como Gosto de Cereja (1997), Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), Através das Oliveiras (1994), A Vida e Nada Mais (1992), e outras já produzidas nos século XX1, como Dez (2002), Cópia Fiel (2010) e Um Alguém Apaixonado (2012), todas fundamentais e merecedoras de serem estudadas, não só individualmente, mas também em conjunto para melhor se compreender o pensamento original desse cineasta iraniano, que junto com tantos outros seus contemporâneos, como Mohsen Makhmalbaf, Jafar Panahi e Majid Majidi, formaram a base do que hoje chamamos de cinema iraniano.
Mas nesse texto vou comentar e analisar uma das obras referenciais de Abbas Kiarostami, Close-Up (1990), em que o diretor mergulha no poder do imaginário do cinema na vida contemporânea. Na trama, um homem, Hossain Sabzian, assume a identidade do cineasta Mohsen Makhmalbaf perante uma família iraniana, para logo depois ser denunciado e preso por fraude.
É necessário chamar a atenção para uma informação importante que está nos créditos do filme, porque ela é um primeiro dado a ser aqui sublinhado, antes mesmo de se analisar Close-Up pelos seus elementos cinematográficos em si. Aqui, Abbas Kiarostami assina não só a direção e roteiro, como também a montagem e o motivo é até banal, pelo fato da montagem já está inserida e pensada no próprio roteiro. Um dos grandes acertos de Kiarostami está em como ele organiza a ordem dos fatos.
Por isso mesmo, ouso dizer que Close-Up é uma aula do que é cinema. Não só pelo fato do filme se sustentar por uma lógica e um enredo metalinguístico, mas por nos indagar sobre o poder da montagem cinematográfica, do encadeamento e sequência dos fatos narrados. Abbas Kiarostami subverte o espaço cênico e a temporalidade para criar uma obra fundamentalmente cinematográfica e isso não é pouco.
Vamos então aos fatos. Kiarostami inicia Close-Up pelo jornalista, não pela narração do fato em si e isso traz proporções cruciais para o decorrer da obra. A visão que temos inicialmente é a de um jornalista a querer um furo de reportagem, portanto, Kiarostami parte de uma visão externa ao fato, tanto que quando o taxi chega à casa da vítima, a câmera não entra com o jornalista, ficamos observando a movimentação de fora, sendo que a casa possui um muro que nos impede de ver o seu espaço interno. Ficamos com o taxista, os dois policiais que vão para executar a prisão e o tempo que ficamos com eles é o da espera até tudo se resolver e Hossain Sabzian sair preso. A visão que temos a partir de então é a que sai na imprensa e esse é o ardil de Kiarostami, dar ao público apenas inicialmente a voz da imprensa, instituição importante na formação da opinião pública na contemporaneidade.
Mas voltemos um pouco, afinal, o início mesmo é de Hossain Farazmand, o jornalista, saindo da delegacia e adentrando no taxi no lado do banco do carona e com os dois policiais indo no banco detrás. Uma sequência toda filmada em um carro, não pode ser vista como algo eventual no cinema de Kiarostami. Sua filmografia é farta desses momentos. Basta pensar que em Dez o filme se passa todo dentro de um taxi e Gosto de Cereja quase todo dentro do carro do protagonista, um homem que procura alguém para ajudá-lo na execução de seu suicídio. Pois é no carro, por meio da fabulação, que os personagens interagem entre si e mostram seus pensamentos acerca do mundo.
No taxi, tudo pode soar como algo furtuito, apenas uma conversa forçada de homens em um carro, afinal, nada se tem a fazer nesse aprisionamento involuntário. Todos estão a ir para um destino e até chegar lá estão espremidos nesse espaço minúsculo, onde só a câmera está à vontade para mudar seus enquadramentos e lançar reflexões sobre o mundo. O jornalista começa a falar do que irá fazer no endereço indicado, que tem um homem se passando pelo cineasta Mohsen Makhmalbaf, no que o taxista ignora quem seja: "eu trabalho, não tenho tempo para o cinema", o que indiretamente está a falar sobre a falta de tempo no atribulado mundo contemporâneo, inclusive para se ver cinema.
Mas essa sequência do taxi revela muito mais sobre o jornalista, no seu senso de aproveitamento do fato insólito de uma pessoa se passar por outra, por isso ele envolve pessoalmente a polícia, para poder registrar a prisão com ineditismo e exclusividade e poder vender mais a sua revista. Três tipos de pessoas são mostradas nesse taxi. O intrépido jornalista; o taxista alienado, um típico cidadão comum, pouquíssimo antenado com o que acontece no mundo; e os dois policiais, bem tipificados como os burocratas executores frios de suas funções. Esse é o cinema de Kiarostami a revelar um raio x social em um breve momento. Tudo isso, filmado como ficção, como se a câmera buscasse entender e captar a motivação de cada um dos personagens, com a variação de planos bem comum nesse tipo de narrativa.
Em um texto sobre Gosto de Cereja, a pesquisadora Andréa França (in Cinema nos Anos 1990. Org. Denílson Lopes, Argos Editora Universitária, Chapecó, SC, 2005) lança um nome para o dispositivo usado por Kiarostami, o homem-automóvel, no qual todos os personagens que estão no carro, por um breve momento que seja, partilham uma visão igualitária sobre a paisagem, portanto, sobre o mundo. O automóvel nesse contexto funciona como um aparato de interação (todos ali são impulsionados pela situação a trocar olhares e diálogos), uma possibilidade breve e verdadeira de convívio de pontos de vista diferentes. Sublinho essa ideia por ela não ser aleatória na filmografia de Kiarostami, por ela conter o gérmen de seu cinema, o da constatação da pluralidade de visões dos homens sobre a vida e da necessidade da coexistência dessas diferenças. Estamos falando de territórios de grande convulsão social, o do Oriente Médio, marcado por guerras e brigas constantes, com motivações diversas, sejam por razões econômicas e/ou religiosas. Questões que levam à intolerância e a intensos conflitos sociais.
Nessa primeira e longa sequência acontece muita coisa, algumas podem até parecer irrelevantes, como a do taxista pegar uma embalagem de um inseticida e o fazer rolar pelo terreno, que possui um declive levemente acentuado e faz com que a embalagem vá rolando pela rua. A câmera faz desse simples objeto banal, aparentemente um novo personagem circunstancial, um dispositivo de espera, mas também de tempo, e mais ainda, de movimento e de intervenção humana no mundo. Esse inseticida estava em um monte de lixo até o taxista o tirar de lá e o fazer rolar ladeira abaixo. Em um momento mais à frente, Kiarostami volta a essa embalagem, agora com o jornalista que chutará a mesma embalagem a acompanhando com a câmera até depois do personagem dobrar a esquina e sair de cena. Seria uma analogia à questão midiática de um tema que entra e sai de foco em um piscar de olhos ou que esta embalagem para dizer que ela ainda está no mundo para jogo enquanto estiver em movimento? No cinema de Kiarostami, cada imagem pode trazer muitos significados e isso é muito encantador e sedutor. Uma imagem nunca se encerra em si mesma, é sempre indefinida pela expansão e jamais definida pela redução.
Então voltemos forçosamente à montagem, a tal também assinada por Abbas Kiarostami. Após esse imenso prólogo que já analisamos, temos os créditos do filme, tendo como fundo as máquinas tipográficas a imprimir a revista, cuja matéria principal é a do homem preso por se passar pelo cineasta Makhmalbaf. A sequência que vem a seguir, é a do cineasta Abbas Kiarostami, agora como personagem, de carro, perguntando na porta da delegacia para os policiais sobre o caso, inclusive, um deles está conversando com um grupo de colegas com a revista em mãos, o que ajuda a situar a história no seu contexto temporal. Abbas conversa com o soldado que fez a prisão, e ele afirma que não houve resistência à prisão por parte do denunciado. Nota-se que aqui, o filme adentra dentro de um novo dispositivo, o do documental, com o diretor forjando entrevistas com supostos participantes do incidente, na tentativa de descobrir algo para além dos fatos escritos na revista. Mas evidente, que essa é uma sequência prevista dentro do roteiro de Close-Up, que coloca o próprio cineasta como personagem.
Com a utilização desses ardis cinematográficos, Close-Up aos poucos vai se revelando um estudo profundo acerca dos mecanismos que validam as visões únicas sobre os acontecimentos mundanos. O foco da trama a nível da aparência, ainda não é cinematográfico, pois o foco se mostra apenas jornalístico, mas esse viés já está em vias de mudança e o sintoma disso é Kiarostami transformar o personagem do jornalista como periférico na trama a partir desse momento. Por isso, a montagem é o ponto nevrálgico do filme ao desenhar os caminhos que levam à pluralidade e conduzir algo que é o mais importante e que até então permanecia invisível: a visão de Sabzian sobre suas ações consideradas criminosas pela lei e burocracia iranianas. Quando Kiarostami encontra a família fraudada estamos diante de pessoas insatisfeitas com o que leram na reportagem. A verdade do artigo é questionada. Mais uma vez, Kiarostami começa uma investigação mais horizontalizada, mas agora, a câmera adentra na casa das supostas vítimas de fraude. A partir de então, as camadas diversas dessa história começam a ser exploradas pelo diretor e revelações acontecerão.
Agora estamos verdadeiramente em um filme dentro do filme. Kiarostami entra como um personagem investigativo, que começa a entrevistar os atores supostamente reais dessa história, inclusive o tal fraudador de identidade. O que levou Hossain Sabzian a assumir outra identidade? Na conversa com ele, a confissão é que tudo o que fez foi por amor ao cinema e manda um recado para Makhmalbaf pelo diretor: "diga a ele que O Ciclista me ajudou a viver melhor".
Eis que Kiarostami dá uma guinada em Close-Up. De repente, estamos dentro do aparato burocrático de um Estado iraniano obtuso e relapso aos detalhes. Kiarostami quer filmar e chega até o juíz responsável pelo caso, que não é o responsável pela autorização da filmagem do julgamento de Sabzian, já que a autorização tem que partir do ministro da justiça. As autoridades não entendem o interesse de Kiarostami por algo tão banal e até irrelevante. Sim, são os burocratas do judiciário (influenciados pela política) que decidem o que é grave ou importante. Estamos diante de uma cena que muito se assemelha a tantas outras do cinema iraniano, a da refilmagem de um fato pelo cinema com um misto de ficção e documentário. Tudo parte da realidade, pois é ela o grande incômodo.
Em Close-Up, reconstituição se mistura com imaginação, em um exercício cinematográfico engenhoso que expõe irrefutavelmente a ideia de verdade em xeque. O cinema é um artifício que pode partir do real para chegar a um outro lugar, o da dúvida e do resgate do humano em uma sociedade mecanizada e obscurecida pela burocracia. A reflexão pelo artifício e a imaginação aqui caminham de mãos dadas. O cinema está posto como um jogo a torcer fatos e mostrá-los por dentro, lhes conferindo novos olhares e perguntas. Há ironia em muitas cenas, a maioria das vezes provocada pela montagem de Kiarostami.
O dia do julgamento chega e uma claquete evidencia o processo ficcional de uma filmagem de cinema, um evidente esforço pela reconstituição, toda filmada em película em preto & branco. Portanto, mais um efeito disruptivo é descortinado, mais um corte brusco na narrativa. Esse aspecto de contínua interrupção da narrativa é um fenômeno comum no cinema contemporâneo e herdado do cinema moderno do pós-guerra que questionou implacavelmente as estratégias narrativas do cinema clássico hollywoodiano. Kiarostami é detentor e conhecedor desses artifícios do cinema e os utiliza com extrema habilidade em muitas de suas obras, inclusive aqui em Close-Up. Interromper o espetáculo do cinema para o instaurar como tal, como uma reconstrução dos acontecimentos, não como uma verdade inquestionável.
A partir do tribunal, os queixosos começam a narrar o acontecido, o que encaminha o filme para um flashback. A história se volta para o encontro furtuito entre Hossain Sabzian e a mãe dos queixosos em um ônibus, onde ela trava um contato visual com um livro de Mohsen Makhmalbaf sobre o filme O Ciclista na mão de Sabzian. Na conversa entre eles, ele afirma ser o próprio Makhmalbaf, o que origina todo o imbróglio, que termina na casa deles que serviria de locação para o seu novo filme. O filme alterna as cenas de tribunal com a narração de determinados fatos da confusão, mais um artifício que brinca sobre o que é ficção e o que é realidade.
É no tribunal, que enfim descobrimos a real motivação de Hossain Sabzian, ou pelo menos, a versão da filmagem, ou melhor ainda, a visão de Abbas Kiarostami sobre o tal crime de fraude. Descobrimos que o fraudador é um cinéfilo inveterado e esse é o ardil e a ironia cinematográfica de Close-Up. Não casualmente, o título do filme remete ao cinema. Close-Up narra justamente o poder do cinema como influente no âmbito da sociedade, o poder do cinema de nos aproximar da vida sob outros olhares. Essa manipulação da vida faz com que o cinema externalize o fenômeno da notoriedade e do talento artístico como algo sedutor. Querer ser um artista não deixa de ter um aspecto glamouroso para quem não é, já que a exterioridade dessa vida pública quase sempre vem dotada de fama e reconhecimento, e não do trabalho duro que há por detrás das câmeras.
O mais interessante nesse tribunal é como Sabzian ostenta um discurso sobre representação, do quanto é difícil fazer como ator o papel de Makhmalbaf, pois esse é um ofício que requer manipular com os sentimentos mais profundos dos seres humanos. Tem uma frase dita por Sabzian que sintetiza isso com muita clareza: "O bom ator é aquele que transmite sua verdade interior." Entretanto, quando o juiz lhe pergunta se ali no tribunal ele está representando, há uma negativa da sua parte. Só que nessa cena especificamente, é notório que Kiarostami está realizando um filme, basta lembrar da claquete do início da sequência do tribunal, fato nada casual. Kiarostami esbarra nas ideias de Eduardo Coutinho, nosso maior documentarista, que ele certamente não conhecia. A representação no cinema, a utilização de não-atores e o estatuto da verdade são temas que perpassam a obra de Kiarostami, e em Close-Up essas questões emergem com muita força dramática, mas igualmente de pensamento.
Com o julgamento transcorrendo, eis que Close-Up retorna à sequência em que o taxista está esperando o jornalista que entra na casa dos queixosos, só que desta vez, vemos a cena de dentro da casa, pela narrativa de Sabzian, onde ocorre a sua prisão. Essa mudança de perspectiva causa uma perturbação no espectador, que desde o começo fica na espera de saber o que acontecia no interior da casa naquele momento em que fomos impedidos de ver para ficar na espera junto com o taxista. Essa imagem nos faz pensar sobre cinema e perspectiva, de como o cinema manipula o nosso olhar. Em Close-Up isso está claro. Kiarostami investe aqui numa questão que acompanha o cinema desde a sua origem, sobre como o cinema arbitra acerca das elipses, da fragmentação do tempo e do espaço. O cinema possui uma prerrogativa implícita de bagunçar o tempo, de ir e vir no tempo ao seu bel-prazer, o que faz dele uma arte de grande contundência, quando explorada com arguta habilidade, como é o caso de Close-Up.
De repente, o juiz pergunta a Sabzian: "que papel mais o senhor gostaria de representar, além o de Makhmalbaf?", no que ele responde: "o meu próprio", no que o juiz retruca de imediato: "mas o senhor não está aqui representando seu próprio papel?". Essa é uma pergunta que fica no ar, e que ficamos apenas com um risinho irônico de Sabzian. Acredito ser essa a grande pergunta de Kiarostami, a pergunta que o motivou a fazer esse filme e que jamais poderia ter uma resposta definitiva. Assim, Kiarostami confessa a indeterminação do seu cinema, o quanto para ele, o cinema é um instrumento para lançar dúvidas e colocar as pessoas a pensarem sobre os processos da vida e da arte.
A destreza cinematográfica de Kiarostami nos reserva uma experiência mais estimulante ainda: o encontro do verdadeiro e do falso Mohsen Makhmalbaf. E esse encontro não é nada convencional. Ele começa com uma câmera à distância, cujo microfone acoplado está falhando. Funciona quase como uma anti-cartilha de como não se filmar uma cena no cinema. Mas ela desmascara o quanto o cinema é puro artifício e que a consciência disso é o primeiro passo para ele ir além. A imperfeição técnica está presente, ouvimos tudo pela metade e falhando, enquanto os dois deslizam com a moto pela cidade, com flores na mão na direção da casa dos queixosos. Nessa sequência, temos reinvenção, sarcasmo, reincidência e a vida mostrada pelo cinema como cíclica e inspiradora. O cinema como ideia de duplo se instala. O real encontra a ficção como se ambos se anulassem mutuamente. O que resta de tudo isso é a da reconciliação entre os homens e o uso do cinema como um artifício voltado para o pensamento e o afeto, um componente crucial para redefinir o imaginário contemporâneo.

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