Texto de Marco Fialho
"Alegria é a prova dos nove" é mais um manifesto feminista potente de Helena Ignez, a mais jovem cineasta do Brasil. O filme é uma ode libertária e iconoclasta de uma mulher que acredita no viver e na felicidade plena da mulher.
Logo no início é dito uma frase do poeta francês Arthur Rimbaud "o verdadeiro mundo não está aqui" que para mim sintetiza o espírito desse trabalho único de Ignez. Essa frase ecoa a necessidade de se viver a utopia, esse não lugar que nós humanos podemos e precisamos inventar para nós mesmos. Daí nasce a personagem Jarda Ícone, uma espécie de influencer digital que dá cursos estimulando (literalmente) as mulheres na descoberta e na prática sistemática do orgasmo e da masturbação.
Helena Ignez nos prova que a juventude está para além dos números do calendário, ela é uma iluminação como já emulou o documentário biográfico "A mulher de luz própria", dirigido pela sua filha Sinai Sganzerla. Tudo em "Alegria é a prova dos nove" tem o DNA Helena Ignez, inclusive uma vontade emancipatória e de desprendimento típicos do universo da contracultura. A verdade é que Ignez vive a sua revolução. Como é linda e inspiradora a cena inicial em que a sua personagem acorda Lírio (Ney Matogrosso, lindo, leve e solto) e lhe faz uma delicada declaração de amor ("você é a pessoa mais importante que eu conheço") e lhe dá um baseado ainda na cama. Essa cena tem um simbolismo do amor de Ignez ao dirigir e se relacionar com a arte e as pessoas que a cercam. Já a vi diversas vezes pelos eventos de cinema e o que eu posso dizer é que ela emana o amor e é sempre carinhosa com as pessoas. Jamais encontrei alguém que tivesse uma reclamação sequer dela. Digo isso, porque esse amor que tanto menciono aqui transborda para os seus filmes e talvez esse "Alegria é a prova dos nove" seja o mais transbordante de todos nesse amor latente que a artista sempre emana.
A impressão que eu tenho é que a cada novo filme Helena Ignez filma como se fosse o primeiro, tamanho frescor e espontaneidade que os mesmos exalam. Em "Alegria é a prova dos nove" isso fica evidente tanto na coragem de homenagear a antropofagia oswaldiana, expressa no título, quanto no exorcismo do passado em uma cena em que assistimos a mais uma violência masculina contra o corpo de uma mulher. Ignez se utiliza desse acontecimento infeliz do passado para apontar para frente na necessidade da mulher conhecer seu próprio corpo e os caminhos naturais que a levam a felicidade. Jarda Ícone é isso, essa mulher que quer viver o hoje e que quer dividir isso com outras mulheres, que quer expandir o prazer feminino para além do prazer masculino e nisso Ignez está a anos luz de todos ao criar um filme que fala diretamente para as mulheres e isso é lindo demais.
É muito interessante como Ignez cita abertamente as influências que usou para fazer o filme, como a sexóloga norte-americana Betty Dodson, que morreu recentemente, em 2020, aos 91 anos, musa inspiradora da sua personagem Jarda Ícone. Mas outros pensadores perpassam o filme, como o coreano Byung-Chul Han, um crítico feroz do modelo capitalista atual que impõe às pessoas um desempenho total que gera o cansaço de viver. "Alegria é a prova dos nove" é um tratado niilista, ao jeitim de Ignez, pela felicidade plena e pela autodescoberta dos corpos oprimidos e escravizados pelo capitalismo.
Ignez mescla um discurso direto com diálogos que vão no X da questão política com imagens de pura inspiração anárquica e libertária. É lindo quando Ignez filma cenas de um grupo de seguidoras de Jarda Ícone, seus encontros e suas conversas informais, pois tudo é tão orgânico que chega a chocar pelo desprendimento dessa câmera. Em certo momento nos libertamos da câmera e passamos a viver com Jarda Ícone, a estar com ela e suas amigas.
O filme tem sacações geniais como a da seguidora e amiga Sheyla (uma impagável Bárbara Vida) que se apaixona por um palestino. A abordagem de Ignez é sensacional ao exaltar a justeza da luta palestina ao mesmo tempo que expõe a fragilidade masculina daquela cultura, sem julgá-la, pois há um carinho imenso emanado dela pelo personagem Ahmad.
"Alegria é a prova dos nove" é sobretudo um filme de ideias, elas proliferam a todo instante porque Ignez quer generosamente dividi-las conosco, como a ideia que ela prega de reconsiderar pensamentos que no passado foram esquecidos, mas que podemos voltar a olhar para eles, reconsiderá-los. Há no filme um desejo de performar, embora haja um desgaste dessa palavra no momento (aqui em Tiradentes ela é a palavra da hora), em Ignez é algo orgânico, pois a sua performance é muito própria, inspirada numa frase dita e redita no filme: "se você quer uma vida, aprenda a roubar".
Visão generosa à respeito do conteúdo explícito de Helena Ignez.
ResponderExcluirEu não consegui entender muito o que você quis dizer. De todo o caso, não há generosidade, da minha parte, em relação ao conteúdo explícito do filme de Ignez, mas sim concordância, além de admiração em como Helena trata o tabu social acerca dos corpos, em especial nas obras artísticas.
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