Pular para o conteúdo principal

OS FABELMANS (2022) Direção de Steven Spielberg


O cinema como reinvenção da vida 

Texto de Marco Fialho

Desde a primeira cena, "Os Fabelmans" deixa claro que o cinema é o maior personagem do filme. Spielberg inspirando-se em sua autobiografia realiza uma obra sensível, familiar, que pode ser vista como uma ode ao cinema. É como se Spielberg (lembrando que Tony Kushner divide o roteiro com ele) fosse montando não só um quebra-cabeça da sua relação com o cinema, mas também como o cinema o foi escolhendo. No decorrer do texto lembrarei desses momentos, que foram os que mais me impactaram no filme.  

Primeiro, quando muito pequeno, sentiu o medo do gigantismo do cinema, depois o impulso irremediável de reproduzir a cena que mais o impactou no filme. "Os Fabelmans" narra a descoberta dessa paixão pelo ato de filmar, e vai mais fundo ainda quando descobre o poder intrínseco das imagens filmadas na vida de sua família, inclusive o poder de destruição que elas podem atingir. No momento mais importante da trama, no maior ponto de virada, me lembrou muito de "Blow-Up" (1966), filme do mestre Michelangelo Antonioni, quando o protagonista ao fotografar um parque descobre um assassinato depois que ele vai aproximando cada vez mais a imagem. Evidente que essa é uma analogia simbólica, não literal, apenas para evocar passagens presentes nos dois filmes que retiram a aura puramente mágica do cinema. Isso é interessante de ser lembrado aqui em especial porque Spielberg sempre é lembrado pelo aspecto mágico do seu cinema. Talvez até por conta disso considero importante mencionar esse assunto, que em "Os Fabelmans" envolve uma descoberta amorosa inesperada da mãe.
Spielberg desenvolve e amarra com muita graça alguns simbolismos que estão sentimentalmente emaranhados ao cinema. O mais elementar é o do trem. Sim, esse objeto que está lá nos primórdios em um dos filmes inaugurais dos Irmãos Lumière e que também está em momentos cruciais do próprio cinema dos Estados Unidos, com Edwin S. Porter, em 1903, em "O grande assalto do trem" e que depois invadiu o cinema nos faroestes, e foi adoração também do mestre Hitchcock (como esquecer de "Pacto sinistro", em 1951, onde tudo começa na vertigem inerente à velocidade do trem). Spielberg sabe o que está provocando quando se agarra na relação entre o trem e o cinema. Mas quando o pequeno Sam projeta o trem em suas mãos, daí o simbolismo dá um salto inacreditável, é como que Spielberg emulasse de uma só vez não só a tela do cinema mas também estivesse nos dizendo que o cinema está no seu controle e se enraizando pela sua pele. É uma espécie de lanterna mágica que Ingmar Bergman já evocou tantas vezes não só nos filmes como em seus escritos.        

É interessante observar o quanto Spielberg privilegia narrar o filme tomando o personagem do jovem Sam como seu alter ego, uma escolha que contem doses de estranhamento ao emular aqui e ali essa lembrança nem sempre celebratória, em alguns pontos melancólica e a certeza que só a maturidade tolstoiniana traz de que todas as famílias infelizes o são a sua maneira. Um pai metódico, fortemente imbuído na razão e uma mãe guiada pela impulsividade e pelo emocional. Talvez isso explique o cuidado que Spielberg tenha tomado ao escolher os atores para viverem seus pais: Paul Dano está brilhante e irreconhecível como esse homem introspecto, dominado pelo racional e que não consegue lidar com os sentimentos arrebatados da esposa, uma Michelle Williams iluminada, no ponto certo, aproveitando bem os aspectos misteriosos e reprimidos da sua personagem. 
Ao tratar seu filme por um viés que privilegia as ranhuras e as doçuras de uma família, Spielberg remonta toda uma tradição cinematográfica ligada à subjetividade dos diretores, e reforça a ideia do quanto vida e cinema estão entrelaçados desde sempre. Se não há nada de novo nisso, resta a poesia na qual ele escolhe metaforicamente encenar a sua vida, por meio de uma ficção que assume o poder do cinema em reinventar o mundo e a vida.         

Mas nada se equipara a sequência final, onde a homenagem ao cinema se expande a olhos vistos. Primeiro com o encontro do jovem aspirante a diretor com o ídolo maior, o mestre John Ford. Segundo, na mesma sequência Spielberg nos presenteia com a imagem de Ford representada de maneira magnífica e icônica por outro mito do cinema contemporâneo, David Lynch. Terceiro, a aula que o veterano Ford oferece ao jovem aspirante sobre como filmar o horizonte em um filme. E por último, nesta mesma sequência, vemos uma série de cartazes dos filmes de Ford pendurados na parede até que avistamos o cartaz da obra-prima "O Homem que matou o facínora", o mesmo em que o protagonista Sammy (um alter ego de Spielberg) já havia visto na adolescência antes de assistir ao filme em um cinema. "Os Fabelmans", ao meu ver, é um dos grandes trabalhos de Spielberg para o cinema. Um filme feito milimetricamente para os amantes do cinema.

Comentários

  1. Realmente uma bela homenagem ao cinema. Acho que deve ser visto até por quem não curte os filmes de Spielberg.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!

Postagens mais visitadas deste blog

ÁLBUM DE FILMES VISTOS EM 2023 - 340 filmes

DESTAQUES FILMES INTERNACIONAIS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-filmes-internacionais-em-2023.html?m=1 DESTAQUES FILMES BRASILEIROS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-de-2023-filmes-brasileiros.html?m=1 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 (cinefialho.blogspot.com) ESPECIAL FIM DE ANO: 14 VÍDEOS DO BATE-PAPO CINEFIALHO DE 2023: O REINO DE DEUS (2023) Dir. Claudia Sainte-Luce Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ GUAPO'Y (2023) Dir. Sofía Paoli Thorne Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ AS GRÁVIDAS (2023) Dir. Pedro Wallace Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ À SOMBRA DA LUZ (2023) Dir. Isabel Reyes Bustos e Ignacia Merino Bustos Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ PONTES NO MAR (2023) Dir. Patricia Ayala Ruiz Vídeo:  Marco Fialho (@ci

GODZILLA - MINUS ONE

Texto de Marco Fialho O maior mérito de "Godzilla - Minus One" está na maneira como o diretor Takeshi Yamazaki conjuga a história narrada com o contexto histórico do Japão pós segunda guerra. O monstro Godzilla é fruto direto do efeito nuclear provocado pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos.  O filme funciona como uma resposta à vergonha japonesa ao difícil processo de reconstrução do país, como algo ainda a ser superado internamente pela população. A partir desse fato, há um hábil manejo no roteiro para que a história funcione a contento, com uma boa fluência narrativa.  Aqui o monstro é revelado desde o início, não havendo nenhuma valorização narrativa, ou mistério, sobre a sua aparição. Mas se repararmos com atenção, "Godzilla - Minus One" é  um filme de monstro, embora se sustente tendo na base um melodrama de dar inveja até aos mais radicais da safra mexicana dos anos 1950. A história parte de Koichi, um piloto kamikaze que se recusa a executar uma or

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras difere