O cinema como reinvenção da vida
Texto de Marco Fialho
Desde a primeira cena, "Os Fabelmans" deixa claro que o cinema é o maior personagem do filme. Spielberg inspirando-se em sua autobiografia realiza uma obra sensível, familiar, que pode ser vista como uma ode ao cinema. É como se Spielberg (lembrando que Tony Kushner divide o roteiro com ele) fosse montando não só um quebra-cabeça da sua relação com o cinema, mas também como o cinema o foi escolhendo. No decorrer do texto lembrarei desses momentos, que foram os que mais me impactaram no filme.
Primeiro, quando muito pequeno, sentiu o medo do gigantismo do cinema, depois o impulso irremediável de reproduzir a cena que mais o impactou no filme. "Os Fabelmans" narra a descoberta dessa paixão pelo ato de filmar, e vai mais fundo ainda quando descobre o poder intrínseco das imagens filmadas na vida de sua família, inclusive o poder de destruição que elas podem atingir. No momento mais importante da trama, no maior ponto de virada, me lembrou muito de "Blow-Up" (1966), filme do mestre Michelangelo Antonioni, quando o protagonista ao fotografar um parque descobre um assassinato depois que ele vai aproximando cada vez mais a imagem. Evidente que essa é uma analogia simbólica, não literal, apenas para evocar passagens presentes nos dois filmes que retiram a aura puramente mágica do cinema. Isso é interessante de ser lembrado aqui em especial porque Spielberg sempre é lembrado pelo aspecto mágico do seu cinema. Talvez até por conta disso considero importante mencionar esse assunto, que em "Os Fabelmans" envolve uma descoberta amorosa inesperada da mãe.
Spielberg desenvolve e amarra com muita graça alguns simbolismos que estão sentimentalmente emaranhados ao cinema. O mais elementar é o do trem. Sim, esse objeto que está lá nos primórdios em um dos filmes inaugurais dos Irmãos Lumière e que também está em momentos cruciais do próprio cinema dos Estados Unidos, com Edwin S. Porter, em 1903, em "O grande assalto do trem" e que depois invadiu o cinema nos faroestes, e foi adoração também do mestre Hitchcock (como esquecer de "Pacto sinistro", em 1951, onde tudo começa na vertigem inerente à velocidade do trem). Spielberg sabe o que está provocando quando se agarra na relação entre o trem e o cinema. Mas quando o pequeno Sam projeta o trem em suas mãos, daí o simbolismo dá um salto inacreditável, é como que Spielberg emulasse de uma só vez não só a tela do cinema mas também estivesse nos dizendo que o cinema está no seu controle e se enraizando pela sua pele. É uma espécie de lanterna mágica que Ingmar Bergman já evocou tantas vezes não só nos filmes como em seus escritos.
É interessante observar o quanto Spielberg privilegia narrar o filme tomando o personagem do jovem Sam como seu alter ego, uma escolha que contem doses de estranhamento ao emular aqui e ali essa lembrança nem sempre celebratória, em alguns pontos melancólica e a certeza que só a maturidade tolstoiniana traz de que todas as famílias infelizes o são a sua maneira. Um pai metódico, fortemente imbuído na razão e uma mãe guiada pela impulsividade e pelo emocional. Talvez isso explique o cuidado que Spielberg tenha tomado ao escolher os atores para viverem seus pais: Paul Dano está brilhante e irreconhecível como esse homem introspecto, dominado pelo racional e que não consegue lidar com os sentimentos arrebatados da esposa, uma Michelle Williams iluminada, no ponto certo, aproveitando bem os aspectos misteriosos e reprimidos da sua personagem.
Ao tratar seu filme por um viés que privilegia as ranhuras e as doçuras de uma família, Spielberg remonta toda uma tradição cinematográfica ligada à subjetividade dos diretores, e reforça a ideia do quanto vida e cinema estão entrelaçados desde sempre. Se não há nada de novo nisso, resta a poesia na qual ele escolhe metaforicamente encenar a sua vida, por meio de uma ficção que assume o poder do cinema em reinventar o mundo e a vida.
Mas nada se equipara a sequência final, onde a homenagem ao cinema se expande a olhos vistos. Primeiro com o encontro do jovem aspirante a diretor com o ídolo maior, o mestre John Ford. Segundo, na mesma sequência Spielberg nos presenteia com a imagem de Ford representada de maneira magnífica e icônica por outro mito do cinema contemporâneo, David Lynch. Terceiro, a aula que o veterano Ford oferece ao jovem aspirante sobre como filmar o horizonte em um filme. E por último, nesta mesma sequência, vemos uma série de cartazes dos filmes de Ford pendurados na parede até que avistamos o cartaz da obra-prima "O Homem que matou o facínora", o mesmo em que o protagonista Sammy (um alter ego de Spielberg) já havia visto na adolescência antes de assistir ao filme em um cinema. "Os Fabelmans", ao meu ver, é um dos grandes trabalhos de Spielberg para o cinema. Um filme feito milimetricamente para os amantes do cinema.
Realmente uma bela homenagem ao cinema. Acho que deve ser visto até por quem não curte os filmes de Spielberg.
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