Texto de Marco Fialho
Pelo o que o próprio título sugere, "Tár" é um filme de personagem, aqui no caso, de uma personagem. Nele, acompanhamos o sucesso e a derrocada da carreira da maestra Lydia Tár. Um filme sobre estar no poder e os desafios de como se manter nele. Mais uma interpretação inquestionável de Cate Blanchett, que deve levar a sua 8ª indicação ao Oscar e quem sabe a terceira e merecida para sua galeria de troféus.
O que chama a atenção para a construção narrativa ficcional de "Tár" é como o diretor Todd Field (de "Pecados Íntimos" 2006 e 'Entre quatro paredes" 2001) surpreende ao costurar a longa trama desta obra, começando por narrar os fatos que levarão a maestra à ruína. Todos os atos de Tár soam como corriqueiros, como se fizessem parte da vida cotidiana de um maestro, inclusive aos poucos vamos entendendo como funciona os bastidores de uma filarmônica, porque Field vai lentamente montando um quebra-cabeça complexo, em que os subterrâneos falam mais do que as apresentações grandiosas que vemos das grandes orquestras.
Field constrói Tár como uma mulher fria, inclusive com a esposa (Nina Hoss) e infiel, obcecada pelo trabalho, querendo extrair o máximo da 5ª sinfonia de Mahler. No trabalho, ela se utiliza do seu poder para manipular pessoas, admitindo e demitindo membros da orquestra e da equipe em geral. Assim como Tár, Field olha os personagens com distanciamento, não permitindo que cheguemos neles, não deixa que o público saiba como cada um realmente se sente. A personagem Francesca Lenti (Noémi Merlant), a assistente, é uma das mais difíceis de acessar, já que possui uma atitude submissa perante à chefe, apesar de sempre evidenciar que quer postos mais expressivos no seio da orquestra.
Interessante observar que Tár precisa se impor em um mundo dominado pelos maestros, posto raramente ofertado ou conquistado às mulheres. Deve-se pensar sobre a atitude arrogante de Tár, que nada mais é do que o habitual no mundo do concerto, a do poder muitas vezes abusivo dos maestros sobre os músicos da orquestra. Ao final, Tár pagaria o pato por reproduzir um gesto comum aos homens que sempre ocuparam majoritariamente o posto de maestro. E indo além, porque escolher uma personagem mulher para retratar esse viés arrogante e eivado de assédios de todo tipo? Não seria mais oportuno usar esse fato para revelar o machismo existente nessa área de atuação profissional? Creio que essa deveria ser uma atribuição da direção, a de expor a situação de forma que evidenciasse esse aspecto do poder exercido pelos maestros.
Sabemos que abuso sexual e moral são práticas comuns nos ambientes de trabalho marcados por uma rígida hierarquização, caso não só das filarmônicas, mas também dos ambientes corporativos em geral. Field apenas contorna esse assunto, sem jamais realmente ocupa-lo de fato e tomar um mínimo de partido, o que torna o filme mais um documento sobre o abuso de poder do que sobre o machismo que pesa sobre as mulheres que ousam aceitar a ocupar esse cargo tão envolto pelo poder que sempre foi estruturado do mesmo jeito. Se Field acerta em muitos pontos em "Tár", porque preferiu ser anódino quanto a essa questão de gênero que é tão fulcral para o nosso mundo contemporâneo? Se não incomodou a ele, Field, sinto muito, a mim incomodou, e muitíssimo.
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