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COBERTURA 26ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES

PROPRIEDADE
Dir. Daniel Bandeira
COTAÇÃO: 9
Impressão: "Propriedade" (filme que será exibido na mostra Panorama do Festival de Berlim) pode até não ter uma radicalidade cinematográfica, mas não se pode negar a sua radicalidade temática. Poucos filmes são tão cientes da sua mensagem e se esforçam tanto por realizá-la com tamanha força e competência. Daniel Bandeira, seu diretor, soube construir um thriller exemplar, ele consegue tocar a história para frente a cada cena, aprofundando a tensão a tal ponto que em certo momento aceitamos isso como inerente ao seu processo de filmagem. Ouso dizer que "Propriedade" tem um quê de "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho, em especial, a força de unir uma comunidade contra os desmandos geracionais e históricos, embora vá além na concretude da mensagem. Lembra ainda "Bacurau" em uma necessidade imperiosa de comunicar uma ideia de se dar um basta na exploração, de que não se aceitará mais o autoritarismo dos poderosos, mesmo que se reconheça (e a última cena representa isso) o quanto difícil seja extingui-lo. 
Leia a crítica completa no link:
https://cinefialho.blogspot.com/2023/01/propriedade-2022-dir-daniel-bandeira.html?m=1
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A VIDA SÃO DOIS DIAS
Dir. Leonardo Mouramateus
COTAÇÃO: 8
Impressão: "A vida são dois dias" é um filme sobre relações humanas e arte, o quanto elas podem resistir ao caos da vida. Durante a projeção fui remetido constantemente a algumas narrativas do cinema português de Manoel Oliveira, em especial um de sua safra final como "Singularidades de uma rapariga loura" (2009). Mas a forma como os corpos se apresentam, a teatralidade de gestos e ações dos personagens são algo muito próprios de Mouramateus, esse jovem realizador que vem sedimentando um trabalho potente. Porém algo de Oliveira esteja ali evocado. Talvez a graça da maneira cômica de narrar, sedutora e estranha, atenta aos detalhes e repetições, ali encravada entre o teatro e a literatura, em uma narração em off que mais do que contar, comenta com gracejos a história. Há um quê de pitoresco nas obras de Mouramateus, um humor jovial, sustentado tanto no cênico quanto na palavra. As palavras soam fortes na dramaturgia de Mouramateus, ela nos aproxima para depois nos afastar, estabelece um jogo cinematográfico interessante, um mix entre ironia e estranhamento, pois aquele mundo é o nosso não sendo, há um pitada lúdica que se interpõe, que nos faz lembrar da encenação. A ideia de duplo já está posto desde o título, embora durante a projeção ele se expanda sedutoramente, nesses gêmeos Orlando e Rômulo (Mauro Soares, também coroteirista com Mouramateus) que se somam pelas diferenças que lhes são inerentes. O que mais seduz em "A vida são dois dias" é mesmo o seu humor constante, debochado perante aos fatos corriqueiros que nos chegam com o toque do inusitado como o simbólico jogo sobre naufrágios onde ganha quem perde primeiro ou ainda o insólito enlace entre a música e o acidente que vai desencadear toda a história e introduzir a performática personagem de Mariah Teixeira. A coragem de assumir o insólito talvez seja um dos dispositivos mais potentes da curta e chamativa filmografia deste cineasta que ainda promete entregar mais preciosidades no futuro. 
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ALEGORIAS
Dir. Leonel Costa
COTAÇÃO: 7
Impressão: "Alegorias" retrata com leveza (e até alegria, mas não só) as históricas contradições sociais existente no Brasil, a partir de duas mulheres pretas (Francisca e Thamiris) que trabalham para Reinaldo, um típico empresário escroto e milionário brasileiro que tem como pretensão acabar com o Carnaval no país e que odeia a cultura popular e despreza o livro de Câmera Cascudo que Francisca lê em paralelo ao trabalho. A família de Thamiris já trabalha por gerações para a família de Reinaldo, o que já mostra um estranho hábito de se herdar a riqueza e a pobreza no país, ainda mais quando sabemos que a mãe de Thamiris se suicidou no horário de trabalho na casa de Reinaldo. A primeira e longa cena do filme (talvez uma das mais interessantes) se passa em um samba de roda das Pastoras do Rosário onde reconhecimento, reciprocidade e afeto estão firmemente presentes. "Alegorias" se constrói tanto por uma narrativa quanto por um discurso ambos diretos, o que por vezes tira a possibilidade de um encanto maior, já que tudo está ali muito às claras, sem grandes surpresas. A única exceção está no personagem do anjo que paira pela história como uma espécie de amuleto protetor do samba e suas manifestações. Outro fator que nos prende ao filme são as ótimas interpretações da bela e carismática dupla de atrizes Thamiris Mandú e Francisca Paz, como empregadas domésticas e amantes do samba. Há passagens interessantes sobre a história da Unidos do Peruche, como a homenagem que o filme presta a um de seus baluartes, o Carlão da Peruche, um dos mais importantes sambistas da Escola de São Paulo. Achei interessante a preocupação de se olhar para São Paulo sob o viés de seu samba, que já conta com diversos nomes importantes da nossa música e nunca é lembrado ou reconhecido pelo seu valor. Uma das cenas que mais gosto é quando o filme aborda a destruição da quadra da Escola de Samba Vai Vai e se descobre a existência do quilombo Saracura, uma importante referência da cultura negra e resistente no país. "Alegorias" é uma ficção que documenta muito bem tanto o presente quanto o percurso histórico de uma sociedade assentada na profunda desigualdade entre os seus habitantes.   
*Obs. muito bom ver o amigo Bruno Carmelo se virando em um improviso como figurante.
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CERVEJAS NO ESCURO
Dir. Tiago A. Neves 
COTAÇÃO: 5


Impressão: O início de "Cervejas no escuro" é de certo modo enganador. Lá assistimos um enterro de um homem enquanto alguns amigos bebem numa mesa de bar colocada no quintal. Tudo o que vem depois adquire um tom de uma comédia quase rasgada. Com a morte do marido, a esposa se propõe não só a continuar mas ressignificá-la por completo. O filme se envereda na ideia metalinguística de fazer um filme como uma forma de renascimento. Filmar passa a representar uma nova forma de se ver a vida e a ideia de resgate do passado faz parte desse processo. Essa ideia não dá certo, apesar das trapalhadas do amadorismo dos envolvidos render boas risadas da plateia. Creio que o filme perde um pouco o ritmo quando a protagonista resolve mudar a temática do filme do pessoal para o histórico. O humor perde um pouco de sua força, além da imagem cair em uma abordagem mais recorrente do cinema paraibano, como o de discutir o cangaço, mas aqui ele soa um pouco forçado.
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O CANTO DAS AMAPOLAS
Dir. Paula Gaitan
COTAÇÃO: 9
Impressão: Imagens surgem em flash na tela. Tentamos apreender o que vemos, mas tudo passa muito rápido pelos nossos olhos, parecem imagens de um apartamento. Ficamos desnorteados, sem prumo. Esse será o nosso estado até o final do filme, mesmo depois que duas vozes em off começam a conversar sobre uma mulher do passado, pelo que tudo indica ela não está mais entre nós. Ficaremos até o final curiosos por ver alguma imagem dessa conversa, porém isso não vai ocorrer, até o fim, à deriva será o melhor estado para nos definirmos. "O Canto das amapolas" se guia por uma dessincronia persistente causadora de um estranhamento poético, que exige uma concentração permanente do espectador para acompanhar esse embate entre imagem de solidão e narração oral. 

Ler crítica completa em: 
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CAMBAÚBA
Dir. Cris Ventura
COTAÇÃO: 8
Impressão: Para começar, podemos dizer que "Cambaúba" traz à baila uma discussão bastante pertinente: a do embate da cultura popular oprimida contra a cultura acachapante e aprisionante dos colonizadores europeus e o faz a partir de uma pequena comunidade em Goiás Velho, moradores da Rua Cambaúba. E a diretora Cris Ventura se utiliza dos próprios moradores (moradoras seria mais preciso aqui) para filmar um documentário com traços de ficção, ou seria o inverso, uma ficção com traços documentais? Pois é, essa graciosa indefinição tem lá seu encanto, já que esse pensamento híbrido estrutura o filme. A personagem Cris, homonimamente interpretada pela própria diretora, está a pesquisar aspectos culturais de Cambaúba para fazer um filme (uma metalinguagem?) e essa pesquisa põe em xeque os fantasmas que representam a história dos vencedores, como o do bandeirante Bartolomeu Bueno, nome o qual o carteiro teima em chamar a rua em que mora Cris, que por sua vez prefere chamá-la de Cambaúba (nome de origem indígena). O filme atua fortemente no campo simbólico, embora todas  as questões levantadas pela trama sejam encaradas na vida cotidiana da comunidade. Cris Ventura opta por trabalhar com um elenco de não atores, o que torna tudo orgânico, a exemplo de alguns célebres filmes do neorrealismo italiano ("Terra Treme", de Visconti me vem de súbito à lembrança) que muito se utilizaram dessa prerrogativa. "Cambaúba" opta pelas falas improvisadas com membros da comunidade, o que dá uma leveza descontraída. Mas há em "Cambaúba"um pensamento cinematográfico abrangente que forja algo para além do próprio cinema ao instaurar e propor um outro viés histórico para  aquele território. Mas um grande mérito da obra está na sua abordagem dos mitos e lendas de Goiás Velho e na convicção de que o passado opressor precisa ser redimensionado para que o futuro expresse a vitória da simbologia popular, negra, indígena e feminina, antes dominada pela visão dos descendentes dos europeus, que sempre estiveram interessados apenas na exploração das riquezas naturais do lugar e dos minerais do rio vermelho. Por isso não são só as pessoas que se revoltam, o rio com o seu fluir caudaloso também reage aos anos de exploração e assoreamento. Quanto aos moradores, eles resistem alegremente com suas práticas culturais (o samba, as rezas e outros manifestações) e reafirmam o nome Cambaúba contra o fantasma da destruição simbolizada pelo bandeirante Bartolomeu Bueno. As bombas presentes na história simbolizam a destruição e o peso do passado e reforça a fantasmagoria tão marcante durante a projeção do filme. O que "Cambaúba" nos mostra é que é preciso mudar as narrativas históricas sobre o passado no presente, para que a cultura popular prevaleça e seja aceita no futuro.         
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XAMÃ PUNK
Dir. João Maia Peixoto
COTAÇÃO: 3
Impressão: Trabalhar a partir de uma ideia distópica tal como o diretor João Maia Peixoto se propõe desde as primeiras cenas de seu "Xamã Punk" são fartas no cinema, não só no brasileiro como no mundial. Confesso que a ideia da sinopse me surpreendeu e encantou mais do que o resultado final do filme. Imagina uma comunidade viver 300 anos imersa em um bunker até que um de seus membros resolve se aventurar pelas quebradas de um mundo cercado pelas ruínas de uma fracassada sociedade de consumo? Uma pena o filme se dispersa tanto e não chega a grandes soluções nem de roteiro nem cinematograficamente. O que mais me prendeu no filme foram as criativas camadas sonoras do filme, que transformam o espaço fílmico em um ambiente de selva, com sons ensurdecedores de insetos a preencher a tela. Creio que o menos interessante seja a experiência com os atores que performam aleatoriamente pelos cenários com diálogos rasteiros que não levam o filme a nenhum lugar. A captação do som dos diálogos também incomodou bastante, porque às vezes foram as legendas em inglês que salvaram o entendimento do que era dito em cena. Apesar da proposta experimental, "Xamã Punk" não consegue sair da ideia inicial, a de dois jovens que saem pelo mundo desconhecido para descobri-lo ou revelar um algo mais, nem que fosse a beleza de se caminhar pelo mundo. 
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O CANGACEIRO DA MOVIOLA
Dir. Luis Rocha Melo
COTAÇÃO: 6
Impressão: Temos sempre que celebrar um filme que fala sobre personagens do cinema, em especial quando se contempla uma função que não é nem a da direção nem da atuação, essas mais comuns, embora igualmente importantes. "O Cangaceiro da Moviola", dirigido por Luiz Rocha Melo traz a figura de Severino Dadá, um dos montadores mais assíduos do cinema brasileiro. O filme foi construído a partir de depoimentos tanto do próprio Severino (quase sempre em off) quanto de profissionais que tiveram o prazer de trabalhar com o prestigioso montador pernambucano. Trata-se de mais uma pesquisa acurada de imagens de Luis Rocha Melo, que consegue dar um colorido cuidadoso nesse material de arquivo. O filme abrange desde a infância em Pedra, pequeno município de Pernambuco, até o sucesso profissional de Severino no eixo Rio/Sampa, com destaque para o encontro decisivo com o mestre Nelson Pereira dos Santos. Interessante conhecer esse personagem tão tipicamente brasileiro, que dizia que cortava o filme na moviola com um facão e com uma luta política muito intensa, inclusive na formação do STIC (Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Cinematográfica) e nas campanhas políticas sobretudo de Miguel Arraes como locutor. Só achei um excesso colocar depoimentos de personagens falando de Severino Dadá, creio que explorar apenas esse grande personagem que ele é, com sua argúcia e graça aprofundaria mais a abordagem dele, pois deve-se considerar o quanto já foram por demais invisibilizados em suas carreiras. Mas é bom que se deixe registrado o quanto é fundamental para a memória do nosso cinema a valorização de personagens que muitas vezes aparecem apenas em rápidos lampejos nos créditos finais ou iniciais dos filmes. Que venham mais obras sobre esses personagens invisibilizados do nosso cinema.
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AS LINHAS DA MINHA MÃO

Dir. João Dumans

COTAÇÃO: 9

Impressão: Ao assistir "As linhas da minha mão" me lembrei muito do mestre Eduardo Coutinho a nos seduzir com suas conversas, apesar de que, em "As linhas da minha mão" o diretor não apareça diretamente como personagem. O interessante aqui é o quanto a própria Viviane inclui o diretor Dumans através de suas narrativas. Ao final não sabemos se ela está a seduzir Dumans, a nós ou se ambos. Adoro a passagem em que Viviane canta a música "Boi Voador", do Chico Buarque, por ela se identificar com a canção, onde um boi era capaz de voar e por isso era reprimido. Viviane aborda a sua própria "loucura", sua necessidade de tomar remédios e da dificuldade de ser artista e ter uma estabilidade financeira. Mais para o fim, Dumans nos oferece imagens lindas em P&B de Belo Horizonte ao som de um belo cool jazz. Ainda tem uma história mirabolante de Viviane com um albanês que transam em um banheiro do trem e outra de que ela recebe uma rosa de Tom Jobim. 

ver a crítica completa em: 

AS LINHAS DA MINHA MÃO" (2023) Dir. João Dumans (cinefialho.blogspot.com)

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ALEGRIA É A PROVA DOS NOVE"

Dir. Helena Ignez

COTAÇÃO: 9

Impressão: "Alegria é a prova dos nove" é mais um manifesto feminista potente de Helena Ignez, a mais jovem cineasta do Brasil. O filme é uma ode libertária e iconoclasta de uma mulher que acredita no viver e na felicidade plena da mulher. Logo no início é dito uma frase do poeta francês Arthur Rimbaud "o verdadeiro mundo não está aqui" que para mim sintetiza o espírito desse trabalho único de Ignez. Essa frase ecoa a necessidade de se viver a utopia, esse não lugar que nós humanos podemos e precisamos inventar para nós mesmos. 
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CORPO PRESENTE

Dir. Leonardo Barcelos

COTAÇÃO: 5 

Impressão: Mais uma vez a curadoria da mostra propõe um diálogo interessante entre os longas exibidos um em seguida ao outro, agora com "Terruá Pará" e "Corpo Presente". Ambos possuem traços em comum, como a performatividade das cenas e uma preocupação com o corpo e o movimento como instrumentos de resistência e formas do viver. Dito isso, agora analisaremos o filme "Corpo Presente". A obra começa com uma imagem perturbadora, a de uma penteadeira largada numa beira-mar, como se algo estivesse fora do lugar, e evidente que está. O diretor Leonardo Barcelos se propõe a perscrutar um desequilíbrio social e histórico a partir de uma pesquisa acerca do corpo. Assim, Leonardo divide em 5 atos que dão a dica acerca das organização de suas ideias. Mas o diretor explora essa temática a partir de três princípios básicos: a da performatividade das ações (tendo o corpo da performer Ludmila Ramalho como condutor através da sua própria historia); a da narração de pensadores que refletem o corpo na contemporaneidade; e por fim, por meio do universo sonoro, esse comandado pelo experiente grupo mineiro "O grivo". O maior desafio dessa concepção é a de concatenar todos esses elementos e dar algum sentido dentro da proposta. Há um perigo eminente nessa ideia de se fazer uma genealogia do corpo tendo a performance como um dos guias narrativos. Mas o filme me despertou alguns senões. Um deles é a da busca que a imagem seja mais um elemento fluido e simbólico sobre o que ouvimos nos depoimentos em off do que instaurar uma lógica verdadeiramente dialógica entre esses elementos. O filme recita muitas vezes enunciados eivados por discursos fáceis como "o corpo feminino é discursivo" ou "o corpo é sagrado", ou ainda "o corpo se alimenta do outro".  Dentro dessa perspectiva, o som do grupo "O grivo" foi o que mais me impressionou no filme, por ele ser o elemento mais livre e criativo, embora o campo imagético e textual não acompanhem as ousadias sonoras que ouvimos. Creio que o filme meio que se desorienta na sua ambição de dar conta de uma história que é muito ampla, como é a da discussão do corpo, suas possibilidades e perspectivas, historicidade, violências e lutas. O corpo textual que o filme propõe, como roteiro, acaba por permeá-lo de narrações que se completam por si e que cria um todo pouco harmonioso , em especial com com as imagens. Como o filme se propõe a potencializar experimentações e performar sobre o corpo, acaba por se esquematizar e aprisionar as próprias ideias nos didáticos 5 sub-blocos temáticos, o que prejudica a própria fruição da obra.
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TERRUÁ PARÁ

Dir. Jorane Castro

COTAÇÃO: 8

Impressão: Jorane Castro traz do Pará a essência da música que é produzida por lá e para isso vai resgatar as profundezas das terra, dos rios e do céu amazônicos. Não casualmente ela começa seu filme no interior da floresta amazônica, deixando que os sons mais recônditos invadam a tela e criando uma empatia espontânea. Vemos e ouvimos tudo extasiados, pois a multiplicidade da música realizada no Pará começa nos seus caudalosos rios e vão parar (com a licença do trocadilho) em um caldo, uma mistura insólita sem igual no país. Jorane vai aos poucos costurando os elementos naturais e culturais que sedimentam uma música que está sempre em eterno movimento, que não para de se misturar, que jamais se estagna. Assim, alguns artistas como Jaloo, Manoel Cordeiro, Dona Onete, Keila, Toni Brasil, Léo Chermont vão discursando e performando em lugares onde as suas músicas fazem sentido. Interessante como Jorane começa no interior da floresta para depois colocar sua câmera virada para uma cidade urbana a princípio longínqua, vista apenas ao fundo e isso não ocorre uma vez, se repete como se a diretora quisesse nos dizer que esse movimento tem origem que o seu deslocamento se deu da floresta para o centro urbano e que a música ouvida hoje em Belém, seja no Centro ou nas periferias, tem ecos vigorosos da floresta. Jorane costura e celebra tradições híbridas, do balanço e colorido do boi bumbá, passando pela ladainha de São Benedito e pela missa em latim cabocla até chegar no fenômeno das guitarradas, do tecnobrega, da tecnoguitarrada e dos surpreendentes aparelhos. Como diz Léo Chermont, as coisas eletrônicas já estão incorporadas à tradição, já são nossas. O que guia tudo é o movimento, a dança, o corpo como escritura cultural. A riqueza aqui é tão caudalosa quanto os mananciais dos rios e da chuva amazônica (fenômeno presente no filme e que quem já presenciou sabe o que é). De alguma maneira tá tudo ali, a mistura afro, indígena, caribenha, das Guianas, do eletrônico, do brega e do que mais vier. É como diz a carismática cantora Keila que tudo é um misto de autenticidade, energia e tristeza. Sim, se o samba carioca é a tristeza que balança, imagina a música paraense onde o movimento está na essência de tudo e o corpo combina instrumento e ancestralidade. Se o Brasil do Sudeste se fechou a tudo isso problema dele, agora aguente e receba essa potente tromba d'água nas fuças, mesmo sem continuar a entender de onde veio tanta riqueza e informação musical de uma só região. Ao final, o documentário de Jorane Castro nos faz querer mais, conhecer muito mais, nos faz querer comprar uma passagem aérea e ir direto para o Pará conhecer de perto todo esse manancial cultural inesgotável e rico.       ____________________

CAIXA PRETA

Dir. Saskia e Bernardo Oliveira

COTAÇÃO: 6

Impressão: Difícil sair da sessão silenciosa e intimista de "Canção ao longe", de Clarissa Campolina, e adentrar no disruptivo e ensurdecedor "Caixa Preta", de Saskia e Bernardo Oliveira. Confesso que a proposta deliberada de chocar já me trouxe uma vontade de rejeitar, mas ao fazer isso me permitiria um nocaute logo no primeiro assalto da luta e no cinema não é assim que a banda toca. Mas acredito que o filme discurse sobre a fome de expressão seja pelo uso das imagens com muitas interferências seja pelo uso exasperado da camada sonora. "Caixa preta" é resultado de um grito contido durante 4 anos de barbárie vividos no período do governo Bolsonaro, que concentrou toda a história de desigualdades e absurdos delegados historicamente. O filme se propõe a abrir essa caixa preta tendo como mote principal o som eloquente da cultura preta brasileira e o convite a Negro Léo para reger esse viés musical reafirma tudo isso. Interessante algumas repetições que reafirmam tudo que se tentou apagar nesses últimos anos. Se "Caixa preta" é um grito, faz sentido ele ser também fragmentado, descontínuo, experimental e estourado. Fiquei com a impressão que o filme funcionaria melhor em sua radicalidade se fosse mais curto, o seu impacto reverberaria com mais contundência e potência, reafirmaria mais a sua proposta de desorientação, seu hibridismo entre o documental e o experimental, seu risco permanente e implacável. Com tudo, ouvir os cânticos ancestrais e originário e ver a turba monstruosa e faminta no Supermercado Guanabara, e vivenciar a narrativa pulsante de Negro Léo entoando "eu sou o terceiro milênio" já fez valer demais a sessão. O meu incômodo e o de tantos outros que se danem.
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CANÇÃO AO LONGE

Dir. Clarissa Campolina

COTAÇÃO: 8


Impressão: "Canção ao longe" começa com uma imagem exterior: a de uma casa sendo demolida, parede a parede, como se algo de nós desabasse junto. Com as imagens que se seguem, vemos que essa imagem reflete mais a interioridade da personagem Nina (Mônica Maria) do que simplesmente o ruir de uma casa. Em alguns momentos, o filme me remeteu a "A Liberdade é Azul" (1993) tanto pelo uso da música sinfônica quanto por retratar uma personagem feminina querendo encontrar um novo caminho em sua vida, embora o peso do passado lhe impeça. O filme me tocou por esse viés intimista, de uma busca silenciosa ditada por pequenos passos ou autoboicotes diários. O pai ausente, um peruano que não se adaptou a vida a dois com a mãe, aparece somente por meio das cartas, mas ele vive em Nina poderosamente. Tudo no filme segue o fluxo de Nina, do seu tempo, suas indecisões, ela é uma mulher jovem, por voltas dos 30 anos, vinda de uma família que lhe oferece conforto material, e de certa maneira bastante privilegiada. Nina descobre que o motorista Miguel, que trabalha para a sua avó, conheceu seu pai, que tinha um sebo. Ao se conectar a um sebo ela tenta de alguma forma buscar algo que supra a carência paterna. Ela procura um apartamento para morar sozinha, mas esse passo parece ser mais difícil do que possamos imaginar. A diretora Clarissa Campolina parte de pequenas vivências cotidianas para nos apresentar Nina, nos aproxima dela com a câmera, porém a narrativa lembra mais um documentário observacional do que um drama envolvente. Não há arroubos, apesar do retrato ser por vezes melancólico. Como o filme veio, ele vai, com a vida de Nina seguindo seu fluxo silenciosamente perturbado. Tudo na vida de Nina soa como impermanente e frágil. As cartas, conquanto expressam sentimentos,  participam como veículos que ecoam e reafirmam os silêncios de Nina e seus distanciamentos, já que as mesmas são lidas por ela para ela mesma. Uma das cenas mais bonitas é quando Nina se atrai de ir à janela para escutar uma mulher cantando belamente a enigmática música "Alguém cantando", de Caetano Veloso, o quanto ela representa Nina e sua busca, o quanto desafiador é tentar captar a voz do coração e ainda mais filmá-la. Um filme para se atentar nas brechas que ele abre e jamais fecha, nem em si mesmo nem tampouco em nós.
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MUGUNZÁ

Dir. Glenda Nicácio e Ary Rosa

COTAÇÃO: 7

Impressão: "Mugunzá" é o sexto filme da dupla Glenda Nicácio e Ary Rosa. O filme não tem a ousadia criativa e performática de "Ilha" nem a leveza contundente de "Café com Canela", se aproxima mais estilisticamente de "Voltei" e "Até o fim" ao trabalhar mais com uma proposta de um minimalismo cênico e teatral. O aspecto teatral de "Mugunzá" em nenhum momento é disfarçado, ele é sempre explícito tanto pelos diálogos quanto pela artificialidade da cenografia. O filme se utiliza também de outros artifícios, como o de números musicais, o que acentua mais ainda o viés teatral da obra, apesar de o fazer como se fora uma espécie de uma ópera candomblecista, já que toda a história está referendada por essa matriz afro-baiana. Se essa conformação teatral de cenário único por vezes cansa e dispersa a atenção, assim como o excesso de diálogo e um certo maneirismo na direção dos atores, o carisma e o talento constante da dupla de atores, Arlete Dias (cantora maravilhosa) e Fabrício Boliveira (este fazendo brilhantemente vários personagens) garantem a fruição com galhardia até o final, e ainda sublinhamos a unidade interessante proporcionada pelas belas composições, todas originais, de autoria de Moreira. Outro elemento significativo do filme é o simbolismo cômico de se ter o mugunzá, esse poderoso quitute afro-baiano, como uma poderosa arma utilizada por essa interessante personagem que é Arlete, uma baiana, macumbeira (sempre com a ajuda dos orixás), sapatão e atrevida ao enfrentar numa trama ardilosa, a família do prefeito de sua cidade. Como ela diz em uma passagem do filme: "eu preciso escrever a minha história", e é justamente o que ela faz, com a ajuda, claro, da cultura popular, afinal ela é uma baiana legítima. Para fechar, eu destaco a engraçada história envolvendo vários orixás, essa sim, muito hilária.     
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