Pular para o conteúdo principal

AS LINHAS DA MINHA MÃO" (2023) Dir. João Dumans


"As linhas da minha mão" é um lindo enigma que João Dumans nos oferta ao propor um jogo dialógico, mediado pela câmera, com a atriz e performer Viviane de Cassia Ferreira. Em sete blocos vemos a atriz fabular aleatoriamente para a câmera. Não casualmente, logo no início, um amigo propõe um desafio a partir de indagações nietzschianas extraídas do livro "O Crepúsculo dos ídolos". As perguntas eram: você anda à frente como pastor, exceção ou desertor? A atriz se posiciona como desertora, como aquela que não se adequa ao social. Depois outras provocações são feitas: você como atriz você é genuína? Você é alguém que olha ou que se deixa olhar? A sua fórmula da felicidade é um sim, um não ou uma linha reta? 

Reproduzo aqui essas indagações porque elas são fundamentais para pensar o filme e suas estratégias. Do quanto essas imprecisões são incorporadas ao filme e o torna encantador. Esse método escolhido pelo diretor cria uma atmosfera entre atriz e diretor até que em determinado momento nos perguntamos quais são os limites e os controles possíveis nesse tipo de abordagem. Se o risco é certo, o resultado é fascinante, pois vamos sendo envolvidos com as histórias fantásticas e às vezes melancólicas de Viviane, uma personagem que realmente nos inebria e entorpece. Confesso que ao final eu estava a secar as minhas lágrimas, pois a carga emocional desse filme se potencializa a cada nova cena. Com a câmera sempre bem próxima do rosto de Viviane, Dumans vai estabelecendo uma relação performaticamente fílmica, híbrida, já que no decorrer do processo não importa muito o lugar no qual o filme vai desaguar. 

Me lembrei muito do mestre Eduardo Coutinho a nos seduzir com suas conversas, apesar de que, em "As linhas da minha mão" o diretor não apareça diretamente como personagem. O interessante aqui é o quanto a própria Viviane inclui o diretor Dumans através de suas narrativas. Ao final não sabemos se ela está a seduzir Dumans, a nós ou se ambos. Adoro a passagem em que Viviane canta a música "Boi Voador", do Chico Buarque, por ela se identificar com a canção, onde um boi era capaz de voar e por isso era reprimido. Viviane aborda a sua própria "loucura", sua necessidade de tomar remédios e da dificuldade de ser artista e ter uma estabilidade financeira. Mais para o fim, Dumans nos oferece imagens lindas em P&B de Belo Horizonte ao som de um belo cool jazz. Ainda tem uma história mirabolante de Viviane com um albanês que transam em um banheiro do trem e outra de que ela recebe uma rosa de Tom Jobim. 

Mas é de cortar o coração quando Viviane canta "Mal nenhum", música de Lobão imortalizado por Cazuza, pois depois de tudo que escutamos a canção cai como um pedra na nossa cabeça. Mais uma vez, a curadoria da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes acertou ao juntar em sequência a exibição de dois filmes onde a mulher possui força e relevância narrativa: "Alegria é a prova dos nove", da Helena Ignez, e esse "As linhas da minha mão".

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...