A imersão no plano do céu, da terra e das profundezas
Texto de Marco Fialho
"Il Buco", dirigido pelo cineasta Michelangelo Frammartino, é antes de tudo uma proposta diferente de se experienciar uma obra cinematográfica. Se o espectador chega desprevenido para fruir esse filme fatalmente irá rejeitá-lo. O filme não tem um diálogo sequer, não tem nenhum personagem que se possa tradicionalmente chamá-lo de protagonista e tem muitos minutos tendo um fundo de caverna como imagem preponderante. Mas o que Frammartino descortina em "Il Buco" é uma aula de cinema, em especial, de como se filmar o tempo. Sim, o tempo contem um grau de abstração desconcertante e somente grandes cineastas tiveram a audácia de retratá-lo. Já disse certa vez o mestre russo Andrei Tarkovski que o cinema é a arte do tempo e "Il Buco" se coloca justamente nesse patamar, o de trazer à baila uma discussão acerca da natureza do tempo.
É importante atentar como Frammartino constrói "Il Buco" a partir de um método muito utilizado no cinema documental, o da observação, também chamado de observacional, que é uma técnica que os diretores utilizam para preservar um distanciamento entre o espectador e o objeto retratado no filme, extraindo do processo de filmagem uma estrutura prévia de diálogos, tentando captar uma essência a partir da apreensão dada pela própria capacidade de experienciar por meio da contemplação no cinema. Como disse Frammartino no lançamento de "Il Buco": "Tento proporcionar no meu cinema, que as 'coisas' falem por si, e não obrigá-las a 'falar'"... e com isso também retirar a figura humana do centro desta paisagem fílmica, posicionando-a igual para igual com a natureza no qual embarco... é antes uma comunhão entre tecidos, a dos homens com as 'coisas naturais'. A espiritualidade não é mais a diluição de todos os materiais terrenos; humanos, animais, vegetais ou minerais."
Creio que essa ausência de hierarquia entre o homem e as coisas que Frammartino impõe ao seu filme seja um passo fundamental para se adentrar em seu universo fílmico e imbuir-se dele. Há uma ideia de um mergulho horizontalizado pela paisagem que a câmera capta. Os planos gerais da paisagem interiorana e rural geram uma intensa sensação de paz, enquanto os planos da exploração das cavernas muitas vezes são sufocantes e até angustiantes. São esses contrastes que o diretor explora muito bem e ditam o ritmo do filme. O cinema sensitivo e epidérmico de Frammartino se expressa por uma agudeza singela de perscrutar o tempo diversamente seja na exploração das profundezas da caverna ou pela forma na qual explora o rosto do pastor já bem idoso. As marcas do rosto do pastor se harmonizam a das rochas e árvores centenárias que com suas texturas rugosas registram igualmente a passagem do tempo, não um tempo cronológico, mas sim um tempo que perpassa e convive harmoniosamente com o seu entorno.
Interessante notar que Frammartino não trabalha com atores profissionais e vai nos apresentando e introduzindo nesse pequeno vilarejo com toda a serenidade na qual eles vivem. O vilarejo parece se esconder do mundo com sua rusticidade e onde a vagarosidade do tempo se apresenta como característica inerente. A própria morte do pastor passa longe do abrupto, vai lentamente se esboçando como um processo espontâneo daquele tipo de viver. O mundo fora do vilarejo só aparece pelas imagens de uma pequena televisão, que os poucos moradores se reúnem para assistir. Um dos vídeos que aparece só fazem destoar o mundo do filme com o mostrado na televisão, onde um grupo de homens limpam as vidraças de um prédio alto de uma grande empresa em Nova York, o que acentua drasticamente as diferenças de vida de um e de outro, inclusive a existência de uma forte hierarquização da vida de uma metrópole, já que no vídeo os andares vão sendo apresentados dessa maneira: "aqui fica a sala do financeiro, aqui da diretoria". Novamente, Frammartino registra sutilmente o tempo ou os tempos de cada lugar. De resto, somos apresentados nesse universo regido pela alteridade, onde a iluminação noturna no vilarejo é feita por lamparinas ou fogueiras que propiciam planos inspirados por uma luz renascentista, fugidia, que vai deixando o entorno escuro e o centro da irradiação luminosa mais visível. São imagens de puro deleite.
Mais do que o deleite em si, há um convite permanente do diretor para que embarquemos nesse outro mundo, regido por um aparente imobilismo e por uma sugestiva ausência de ação, a não ser a dos espeleologistas (especialistas em cavernas), que armam suas tendas e começam a explorar as cavernas do chamado Abismo Bifurto, localizado nesse vilarejo ao sul da Itália. Deve-se reparar que esses exploradores em nenhum momento se tornam realmente protagonistas, nem mesmo personagens identificáveis. Não há enquadramentos frontais ou closes em seus rostos. Eles não possuem fala ou dão depoimento. As dificuldades do trabalho deles é visível e a de filmar mais ainda, pois se coloca o desafio de filmar algo que pouco se vê, que está no subterrâneo da Terra (lembrar que a caverna tem quase 700 metros de profundidade), é um equivalente extremo da viagem espacial. Mais uma aventura de Frammartino para descortinar o silêncio e o eco dessa caverna milenar, é como se ouvíssemos a voz do tempo. Interessante como o diretor vai costurando esse documentário observacional com o processo de morte do pastor. São ambas construções que trazem à discussão evocações temporais, seus arcos, alteridades e elementos constitutivos. É como se o objeto de Frammartino estivesse oculto e a filmagem fosse uma maneira de lançar uma luz nessa nebulosa questão do tempo. Mas o quanto é difícil de decifrá-lo e Frammartino sabe o tamanho desse desafio e jamais tenta resolvê-lo, quer apenas trazê-lo à tona, como uma experiência de fruição e isso é por si encantador. Filma-se em uma caverna muito funda. Assim, a escuridão e a luz vão se sobrepondo, não como pontos divergentes, mas antes complementares, como convivência fraterna como se uma ajudasse na reflexão da outra, como se caminhassem lado a lado, um na superfície e outro nas profundezas da Terra.
Nesse jogo cinematográfico proposto por Frammartino, os elementos dispersos pela imagem e guiados pelo quase silêncio vão criando um diálogo interessante. Quando o pastor enfim morre, as portas e janelas da casa se fecham e o diretor com sensibilidade coloca a câmera dentro da casa e nos sentimos como um caixão sendo fechado conosco dentro. É como se também nós espectadores morréssemos um pouco junto com o pastor. Afinal, chegou a hora do homem daquele vilarejo ir para o subsolo e alimentá-lo para o mundo que assim continua sua jornada. Fiquei pensando ainda na primeira cena do filme quando vemos o mundo a partir do buraco da caverna, onde pedras (o mineral), uns bois a olhar para o abissal buraco da caverna e o céu estavam todos em foco na mesma paisagem. Em um único plano, Michelangelo Frammartino diz muito sobre os propósitos de seu filme, o de criar uma ruído no processo de hierarquização do mundo humano, estabelecendo numa única imagem três planos que são sempre retratados de maneira independente (o céu, a terra e o subterrâneo).
Frammartino deve ter pensado muito nessa primeira imagem, porém deve ter pensado igualmente muito na última imagem, pois ele sabe o quanto são decisivas, que ambas delimitam especialmente o seu filme. E eis que o filme depois de os espeleologistas terminam seu trabalho e registrarem tudo, em desenhos, os quase 700 metros de profundidade da caverna, e que em paralelo, os habitantes enterram o seu mais idoso morador, o vilarejo é tomado por uma intensa neblina que enevoa tudo até nos obliterar por completo a visão. É Frammartino mais uma vez brincando com a hierarquização das imagens que o cinema costumeiramente fabrica sobre o mundo, as verdades que o cinema supostamente pode iluminar o mundo. É ele sutilmente discursando sobre a nossa a cegueira e da presunção generalizante de que vemos e dominamos tudo, que o desenvolvimento econômico nos saciou em tudo. É a fina ironia diante de uma balela que criamos para nós como a salvação de tudo. É o mistério sendo reintegrado como um fosso sem fundo e necessário, o quanto somos quase nada diante do infinito do tempo.
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