Pular para o conteúdo principal

PROPRIEDADE (2022) Dir. Daniel Bandeira


A luta de classes com fratura exposta 

Texto de Marco Fialho

"Propriedade" (filme exibido na mostra Panorama do Festival de Berlim) pode até não ter uma radicalidade cinematográfica, mas não se pode negar a sua radicalidade temática. Poucos filmes são tão cientes da sua mensagem e se esforçam tanto por realizá-la com tamanha força e competência. Daniel Bandeira, seu diretor, soube construir um thriller exemplar, ele consegue tocar a história para frente a cada cena, aprofundando a tensão a tal ponto que em certo momento aceitamos isso como inerente ao seu processo de filmagem. Ouso dizer que "Propriedade" tem um quê de "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho, em especial, a força de unir uma comunidade contra os desmandos geracionais e históricos, embora vá além na concretude da mensagem. Lembra ainda "Bacurau" em uma necessidade imperiosa de comunicar uma ideia de se dar um basta na exploração, de que não se aceitará mais o autoritarismo dos poderosos, mesmo que se reconheça (e a última cena representa isso) o quanto difícil seja extingui-lo. 

"Propriedade" se baseia em uma ideia explícita de luta de classes e a constrói sistematicamente cena a cena, com uma precisão cirúrgica. Logo na primeira cena somos submetidos a uma imagem do tipo de um circuito interno e a violência dela já comunica o quanto o filme não negociará com os nervos do público. "Propriedade" é uma obra pontiaguda, ela fere de verdade os nervos do espectador. E a competência e potência da camada sonora muito colabora na criação do clima de tensão que o filme estabelece com o espectador. Nos momentos mais contundentes da trama, o som vem para o primeiro plano da cena para nos enlouquecer, mesmo. Saímos impactados pela narrativa envolvente que Daniel Bandeira consegue imprimir para o filme. 

A protagonista Teresa, interpretação magistral da atriz Malu Galli, está presente desde a primeira cena e a construção dessa personagem é impressionante, inclusive por algumas nuances que traz ao longo da projeção. Inicialmente, a vemos como uma mulher extremamente frágil, que passou por uma situação limite e traumatizante para qualquer pessoa. Para remediar, o marido, Roberto (Tavinho Teixeira), compra um carro e o blinda para que todos da família, não só fiquem, mas se sintam mais seguros, em especial Teresa. Daniel Bandeira tem muita habilidade em escrever um roteiro que aos poucos vai também revelando quem é essa mulher aparentemente tão frágil. A força dela vai se revelando aos poucos, e ao final perguntamos quem realmente é essa mulher, o quanto ela realmente é uma vítima de todas as tragédias que viveu durante a trama. Daniel Bandeira faz tudo isso com muita sutileza (talvez umas das poucas que o filme tenha em sua mensagem muito direta), pois em vários momentos são ditas coisas cruciais sobre ela. Os funcionários da fazenda nem sabem seu nome, um deles chega a dizer: "ela raramente vem aqui". Esses detalhes vão mostrando o quanto Teresa tem ciência de que lado da luta de classes ela está. 

Outra sutileza de "Propriedade" é o nome da fazenda que aparece logo quando o casal Roberto e Teresa chegam de carro e na porteira vemos o nome "Fazenda Cavalcanti". É bem sabido o quanto esse sobrenome é significativo na estrutura de poder em Pernambuco, Estado de origem do filme e do diretor. Esse pedaço bem expressivo da terra, onde está instalada a propriedade, fonte da riqueza dessa família que explora diversos trabalhadores já saturados pela eterna remuneração baixa e pelos documentos presos em um cofre, que muito simboliza o quanto os trabalhadores são dependentes desse proprietário. São gerações de empregadores e empregados que se revezam, sem jamais se mudar as relações aviltantes de trabalho. Há um ressentimento e um ódio concentrados durante anos e anos de grande exploração e humilhação, e o filme explícita isso com toda a contundência possível. 

Ao que tudo indica os Cavalcanti são conservadores, em especial o Sr. Roberto, e isso vamos percebendo em detalhes como o da não aceitação da relação lésbica da filha. Há ainda a figura do capataz, Renildo, uma espécie de derivado da antiga figura do capitão do mato. O estopim que aciona a bomba relógio da história é justamente a venda da fazenda para transformá-la em um grande hotel de luxo. A indiferença dos patrões com os funcionários, inclusive os antigos, revolta os trabalhadores já indignados pela própria situação miserável na qual eles vivem. O filme trabalha muito bem o quanto por trás de uma aparente submissão está escondida uma raiva pelos inúmeros privilégios de classe existentes nessas relações. Aos trabalhadores cabe o silêncio, a servidão e a resignação; e aos proprietários, o bem viver e a plena autoridade. O filme trabalha na exposição dessa dicotomia e não abre mão dela em nenhum instante, o que pode trazer incômodo a alguns espectadores, que podem considerar essa postura artística como reducionista e simplificadora do conceito marxista de luta de classes. 

Na trama, tudo o que transcorre após a revolta dos trabalhadores está referenciado por uma sociedade classista e opressora. Quando a revolta surge perde-se os antigos laços de submissão e instaura-se a violência extrema como estratégia de luta. Daniel Bandeira vai por meio da construção das ações subindo o tom e abrindo caminho para algo que vai em um crescente no que tange a dramaticidade. A essa altura o filme de terror se apropria da narrativa, embora nunca descambe para o o estilo slasher. O som se torna o maior aliado das cenas mais violentas, Daniel opta por não mostrar as cenas mais explícitas de violência, preferindo uma agressão mais sensorial, por isso a camada sonora torna-se tão evidente e importante em "Propriedade", ela expõe mais a contundência do que quer dizer, e não desvia o espectador para um aspecto mais gráfico, ao salientar que a tensão da revolta atípica é bem mais oportuna do que exibir a sua manifestação física. Nesse ponto, a cena mais chocante é a da morte de Renildo, onde vemos de maneira mais deliberada o sangue a escorrer, mas que talvez faça sentido pela posição que o personagem ocupa na hierarquia social e de poder da fazenda. 

Pode-se dizer que a precisão do filme começa pelo seu título. A palavra propriedade tem um peso enorme nesse enredo, nele está a origem de todos os conflitos e desigualdades. A maior diferença entre empregador e empregados não se restringe apenas pela posse das terras, mas também pelos produtos consumidos pela família detentora dos negócios. Sem contar que essas riquezas trazem consigo a ideia de coisificação, não só dos objetos, mas também das pessoas. É assim que essa família abastada vê os trabalhadores em volta deles, como mais um bem da família Cavalcanti. A cena em que Daniel Bandeira mostra em close os rostos dos trabalhadores potencializa uma ideia contrária à objetificação e reforça a humanidade dos personagens, assim mostra as marcas de expressão em seus rostos, de quem põe todo o dia a cara no sol a pino para poder sobreviver e retirar em troca o seu parco salário. Em contrapartida, no início ainda da cena na fazenda, quando Teresa se tranca no seu "seguro" carro, entra em cena um dos maiores protagonistas do filme, justamente o potente, modernoso e confortável carro da família, com travas elétricas, blindado (será realmente seguro?) e potente. Ele se torna o bunker de Teresa, que tenta sobreviver nesse último reduto de propriedade. Diz-se normalmente que por mais que fiquemos ricos na vida, jamais levaremos essas riquezas adquiridas para o túmulo. Será mesmo? "Propriedade" talvez contradiga de alguma maneira essa máxima popular.  

Daniel Bandeira se utiliza brilhantemente de uma estratégia narrativa clássica para construir um filme de horror, reconstruindo muitas vezes a noção de tempo do filme para aumentar a tensão nos espectadores. A cena da chegada do casal Roberto e Teresa na casa da fazenda é exemplar nesse aspecto. O diretor começa abordando a família Cavalcanti e a história evolui assim até o momento deles pisarem na casa. Logo de cara pressentimos haver algo de errado, já que ninguém os recebe e dentro da casa a televisão está ligada, sem ninguém a assistikndo. A seguir Teresa vê algo assustador (não sabemos o que é), ela grita e a cena é cortada. O filme volta para poucas horas antes, que tem o seu clímax com o capataz Renildo despedindo os funcionários e os despejando da propriedade. Dá-se início a revolta e a história evolui até o tempo se reencontrar com a visão da menina vendo Teresa e ela deixando a xícara cair no chão. Esse som da xícara caindo promove o ponto de encontro do tempo no filme. Daí por diante, tudo evolui em um só tempo, sempre progressivo e fatídico. A violência explícita da primeira cena do filme parece ecoar em cada minuto de "Propriedade".   

Exponho aqui no texto essa estratégia de montagem porque acredito ser ela fundamental para se possa pensar a concepção de um personagem a partir da linguagem do cinema e de como podemos pensar a questão do ponto de vista no cinema. Se até então estávamos somente com os Cavalcanti, a partir desse novo enfoque podemos perceber como que aquelas famílias pobres sustentavam os privilégios dos proprietários. Teresa até parece ser uma mulher boa, mas não seria ela confortavelmente conivente com os desmandos do marido? Há uma visível dose de exposição do patriarcalismo tão comum nas relações sociais em Pernambuco, pois Teresa e a filha vivem claramente oprimidas e se sentem desconfortáveis nas ações impositivas de Roberto, porém, ainda assim convivem em um ambiente de privilégios, com suas revistas de moda, seus cachorros, casas, carros e roupas caras. Para o diretor fica evidente que as propriedades ratificam as distâncias, e mais do que isso, instauram as diferenças econômicas e culturais entre as pessoas. 

Essas nuances são fundamentais para quebrar uma possível leitura de que o filme proponha uma visão dicotômica das classes, pois fica evidente as diversas camadas existentes dentro do próprio núcleo familiar dos personagens ricos. O mesmo acontece quando Daniel Bandeira passa a narrativa para o lado dos trabalhadores, onde pode se observar também diversas matizes de comportamentos entre eles. 

O mais impressionante em "Propriedade" é perceber o quanto Daniel Bandeira não deixa o suspense cair um só instante, sustentado em especial por um roteiro muito bem costurado por ações eficazes. O filme tem muitos atores coadjuvantes, em especial os trabalhadores que são muitos, mas surpreende como Daniel Bandeira consegue tirar o máximo de cada um ao se prender mais nas ações do que no desenvolvimento da dramaturgia em si. A câmera acompanha o nervosismo dos personagens e a faz a mantendo muitas vezes na mão. A cena final é preparada com esmero pelo diretor e ela tem um aspecto simbólico importante. No meio de um filme de muita ação é incrível que o diretor consiga alçar ainda um simbolismo ao final, o tal que já citei acima, sobre levar nossas riquezas para o túmulo. A chegada de uma caravana com os novos proprietários que farão o hotel também é fantástica, já que ficamos com uma dúvida que levaremos conosco sobre o destino reservado a todos que ainda estão ali. Haverá um novo confronto sangrento ou uma inesperada negociação? Ou ficaremos numa terceira via: a de Daniel Bandeira filmar "Propriedade 2"? 

Comentários

Postar um comentário

Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!

Postagens mais visitadas deste blog

ÁLBUM DE FILMES VISTOS EM 2023 - 340 filmes

DESTAQUES FILMES INTERNACIONAIS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-filmes-internacionais-em-2023.html?m=1 DESTAQUES FILMES BRASILEIROS 2023 https://cinefialho.blogspot.com/2023/12/destaques-de-2023-filmes-brasileiros.html?m=1 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 DESTAQUES DE CURTAS BRASILEIROS 2023 (cinefialho.blogspot.com) ESPECIAL FIM DE ANO: 14 VÍDEOS DO BATE-PAPO CINEFIALHO DE 2023: O REINO DE DEUS (2023) Dir. Claudia Sainte-Luce Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ GUAPO'Y (2023) Dir. Sofía Paoli Thorne Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ AS GRÁVIDAS (2023) Dir. Pedro Wallace Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram _____________ À SOMBRA DA LUZ (2023) Dir. Isabel Reyes Bustos e Ignacia Merino Bustos Vídeo:  Marco Fialho (@cinefialho) • Fotos e vídeos do Instagram ______________ PONTES NO MAR (2023) Dir. Patricia Ayala Ruiz Vídeo:  Marco Fialho (@ci

GODZILLA - MINUS ONE

Texto de Marco Fialho O maior mérito de "Godzilla - Minus One" está na maneira como o diretor Takeshi Yamazaki conjuga a história narrada com o contexto histórico do Japão pós segunda guerra. O monstro Godzilla é fruto direto do efeito nuclear provocado pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos.  O filme funciona como uma resposta à vergonha japonesa ao difícil processo de reconstrução do país, como algo ainda a ser superado internamente pela população. A partir desse fato, há um hábil manejo no roteiro para que a história funcione a contento, com uma boa fluência narrativa.  Aqui o monstro é revelado desde o início, não havendo nenhuma valorização narrativa, ou mistério, sobre a sua aparição. Mas se repararmos com atenção, "Godzilla - Minus One" é  um filme de monstro, embora se sustente tendo na base um melodrama de dar inveja até aos mais radicais da safra mexicana dos anos 1950. A história parte de Koichi, um piloto kamikaze que se recusa a executar uma or

MOSTRA CINEBH 2023

CineBH vem aí mostrando novos diretores da América Latina Texto de Marco Fialho É a primeira vez que o CineFialho irá cobrir no modo presencial a Mostra CineBH, evento organizado pela Universo Produção. Também, por coincidência é a primeira vez que a mostra terá inserido um formato competitivo. Nessa matéria falaremos um pouco da programação da mostra, de como a curadoria coordenada pelo experiente Cleber Eduardo, montou a grade final extensa com 93 filmes a serem exibidos em 8 espaços de Belo Horizonte, em apenas 6 dias (26 de setembro a 1º de outubro). O que atraiu o CineFialho a encarar essa cobertura foi o ineditismo da grande maioria dos filmes e a oportunidade mais do rara, única mesmo, de conhecer uma produção independente realizada em países da América Latina como Chile, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Cuba e Argentina, sem esquecer lógico do Brasil.  Lemos com atenção toda a programação ofertada e vamos para BH cientes da responsabilidade de que vamos assistir a obras difere