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O CANTO DAS AMAPOLAS (2023) Dir. Paula Gaitan


A presença pela dessincronia 

Texto de Marco Fialho

Imagens surgem em flash na tela. Tentamos apreender o que vemos, mas tudo passa muito rápido pelos nossos olhos, parecem imagens de um apartamento. Ficamos desnorteados, sem prumo. Esse será o nosso estado até o final do filme, mesmo depois que duas vozes em off começam a conversar sobre uma mulher do passado. Pelo que tudo indica ela não está mais entre nós. Nunca temos a certeza do que acontecerá na próxima cena e esse mistério é emcatador. Ficaremos até o final curiosos por ver alguma imagem dessa conversa, porém isso não vai ocorrer até o fim. Ficamos à deriva e este é a melhor definição para nós espectadores neste filme. "O Canto das amapolas" se guia por uma dessincronia persistente causadora de um estranhamento poético, que exige uma concentração permanente do espectador para acompanhar esse embate entre imagem da solidão e a narração oral.      

Rapidamente reconhecemos que uma das vozes é de Paula Gaitan. Depois descobrimos que a outra voz é a de sua mãe e que elas falam da avó de Gaitan. Há uma expectativa para olharmos esse rostos, em especial o da mãe de Gaitan, pois não o conhecemos e como esse momento não vem, essa ausência causa mais um estranhamento, afinal não temos a perspectiva de analisar a personagem pela imagem, seja por um olhar desviante, um tique nervoso, algum gestual ou algo semelhante. A imagem pode dizer algo que as palavras não dizem, porém Paula Gaitan não mostra essa presença física da mãe, ela se concentra nas suas narrativas orais, e jamais somos informados sobre a época desses registros, se eles são espaçados ou gravados em uma só vez. Mas essas falas acabam ficando em consonância com a tradição oral da cultura judaica, origem de sua família. Lá pelo fim, descobrimos que ela é escritora e ficamos com a mesma impressão de quem lê um livro, a imaginar imagens, não as que o filme nos oferta, mas sim as que são narradas pela mãe da diretora. Gaitan, assim, duplica indiretamente a imagem: uma que está na tela e outra que se forja em nossa mente por meio da oralidade. 

Das imagens que Gaitan nos oferece muitas são recorrentes de janelas e cortinas a balançar ao vento. Essa repetição indica algo, assim como as de cadeiras vazias a nos aguçar sobre uma ausência de uma imagem que nos falta. Mas da mulher que estão a falar temos imagens fugidias, fotos antigas que resgatam a beleza de juventude e outras que muito dizem acerca de uma afirmatividade na vida adulta. Enquanto isso, as duas vozes, na maioria das vezes, revelam um embate nas entrelinhas, e em alguns momentos nem tanto subliminares assim, quando Gaitan alfineta a mãe dizendo que a sua avó era mais independente do que ela. Os papéis de autoridade entre mãe e filha se revezam, pois assim acontece quando chegamos em uma idade avançada, embora a mãe de Gaitan não se mostre confortável com essa ideia. Bom lembrar da diáspora judaica e o quanto ela possibilitou fusões culturais, como o do iídiche que elas falam no filme, que é uma junção do alemão, do hebraico e de línguas eslavas. "O Canto das Amapolas" é muito sobre essa diáspora, além de narrar um reencontro entre mãe e filha. 

O filme é um exercício de fabulação, de recriar o passado por meio da memória e de histórias que vão fluindo entre as gerações. Há um conflito carinhoso sempre no ar, provocações e pequenos ressentimentos que surgem ali e acolá pelas duas vozes que nos chegam. Há uma ideia de duplo, pois as vozes possuem semelhanças genéticas e por vezes isso causa momentâneas desorientações. Evidente que trata-se de um filme muito pessoal, basta ver nos créditos a quantidade de funções que Gaitan assume no filme, e o quanto se fala em várias formas de solidão, e as imagens mostram muito essas solidões, com mulheres jovens sempre sós a percorrer florestas e jardins, além de planos da casa que sugerem o mesmo sentimento. Como diz Gaitan, a avó foi estrangeira onde quer que estivesse, nunca se sentiu inteiramente à vontade onde quer que fosse. "O Canto da Amapolas" possui uma essência profundamente feminina, são duas mulheres falando de uma terceira e comum as duas que falam, uma pela memória outra pela curiosidade e fascinação. Os homens são periféricos, quase não são citados, apenas episodicamente. Quando a mãe fala de seu livro "A volta de Elisa" mais uma vez o quebra-cabeça identitário se estabelece enquanto mãe e filha se conectam pela arte, elemento fundamental de liga e amor entre as duas. Mas Gaitan não sustenta o filme apenas na voz over, trabalha muito bem as texturas de cada imagem, algumas estáticas em uma fotografia em P&B e outras vindas de um super 8, ambas a nos estranhar sensorialmente. Não sabemos nada acerca da produção das imagens filmadas, quem são as pessoas e o que elas representam na história. São mulheres ou em lagos, campos de amapolas vermelhas ou uma que aparece iluminada com um intenso vermelho que lembra a de uma sala de revelação fotográfica. Em algumas cenas, seus corpos ora nus ora vestidos são explorados por uma câmera indiscreta que por vezes vai em busca desses corpos. 

Em "O Canto das amapolas" a emoção está sempre a rondar, pois ela passeia pelo jardim, pelas falas, pelo passado que parcialmente se desenha, com toda a imprecisão que lhe é peculiar e característico, como um jogo de quebra-cabeças sempre a lhe faltar alguma peça, embora Gaitan e a mãe resolvam muito bem um bando de informações que nem sempre se completam, em especial quando a discussão sobre arte se instaura no tabuleiro do jogo fílmico. A mãe cita os cavalos azuis do pintor Marc Chagall, e o quanto é importante essa recriação da vida pela arte, que nada mais é do que uma espécie de libertação pela imaginação. A arte pode criar um cavalo azul, ela tem autoridade inerente para tal, para recriar o mundo à maneira do artista, e se assim lhe provier, fundar um outro mundo, mesmo que esse se efetive somente pelo exercício feliz de um processo imaginativo. De repente, a mãe revela que está "filosofando", que está inventando narrativas e histórias e então abre-se um abismo em nós sobre o pensar a vida, a arte da vida e do mundo. De repente a mãe diz: "Dizem que fazer a pintura Pollock é fácil, mas ninguém consegue fazer um Pollock". O que ela quer dizer é que a intenção do gesto do artista é único e inimitável, cada um tem uma marca idiossincrática e intransferível. 

"O Canto das Amapolas" reafirma uma visão imprecisa do mundo e o quanto a arte existe para sublinhar as incertezas e o caminhar tortuoso das pessoas. A cultura judaica está repleta desses exemplos, de histórias de pessoas que flanaram pelo planeta em busca de si mesmos e tentando compreender e dar sentido ao caos do mundo. A narrativa de Gaitan nos enche de estranhamentos, ora eles são sonoros (sobretudo imponentemente musicais), ora são imagéticos (com livres recriações de personagens soltos no tempo e às vezes até retornando em uma câmera reversa, caso da menina na floresta a correr em direção à câmera e depois retroagir pelos recursos de montagem do cinema), ora orais, como saber em uma fala breve que a mãe em um determinado momento está em um hospital. Nesse ponto, a profusão de imagens na janela faz sentido, pois é dela que o pouco mundo de fora se revela e adentra como vento para o recinto do apartamento. Pensei aqui na imagem de uma lápide, bastante recorrente no filme e no discurso da mãe sobre não ter medo da finitude. Afinal, a única certeza que temos é que alguma lápide nos esperará em algum tempo futuro. A imprecisão está mesmo à solta a todo momento.

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