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AS FILHAS DO FOGO - Direção Albertina Carri



Resultado de imagem para as filhas do fogo 2019
O empoderamento do sexo selvagem feminino

Crítica por Marco Fialho

"A pornografia é o erotismo dos outros"

                                                         Guillaume Apollinaire

"As filhas do fogo" é no mínimo um dos filmes mais diferentes do ano. Dirigido por Albertina Carri, a obra tem sim aqui e ali seus altos e baixos, suas irregularidades, mas como negar que nela há algo de impactante e que de certa forma faz muitas pessoas saírem constrangidas da sala de cinema. Em ocasião da morte de Domingos Oliveira, ouvi uma frase dele que achei que se encaixa mais do que nunca a "As filhas do fogo": "que a arte coloca no mundo coisas que antes não estavam lá".

A ideia de fazer um road movie com onze mulheres se "pegando" durante duas horas é algo surpreendente, ou não é? Ouvi algumas críticas falarem que o filme é mais sexo do que enredo e fiquei a pensar nisso. Eu diria que isso é um fato mesmo, uma constatação, mas o mais interessante seria pensar o porquê que isso acontece, para tentar ir além dessa simples evidência. Para mim, esse é um filme coerente, especialmente porque ele realiza a própria ideia que suscita a viagem das personagens, a produção de um filme pornô, não um pornô qualquer, mas sim um pornô com sapatões.

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Durante a viagem encontros acontecem, assim como ótimos e estimulantes reencontros. A todo momento a opressão social em cima não apenas da mulher, mas principalmente de seu corpo fica estampado para quem quiser contestar. Um fato, os homens são todos escrotos (maniqueísmo? Pode até ser, mas tudo ocorre com tanta convicção pela direção que se torna isso ao meu ver menor). Entretanto elas não são umas mocinhas indefesas. Elas são pura atitude, partem pra cima e ganham até na porrada dos "valentes" homens.

Há problemas de roteiro, sim com certeza há, afinal, o filme apresenta pouco conteúdo. Mas será que é imprescindível para o filme tanto discurso assim? "As filhas do fogo" é sobretudo um filme de ação. Nele as meninas correm atrás do que acreditam. Suas insatisfações transformam-se em ações, inclusive em ações sexuais. E nesse quesito elas não estão para brincadeiras. Rola consolo, fetichismo, sadomasoquismo e o escambau. A palavra de ordem é a liberdade sexual, o sexo grupal e com parceiras as mais variadas. No final da história, o carro roubado para se dar a largada para a viagem, é abandonado e uma van assume o lugar. Na estrada, o comboio só aumenta e chega a 11 meninas.
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Um dos aspectos que merecem destaque são os corpos femininos, já que eles são os grandes protagonistas dessa história. E tem de tudo: gordinhas, magrinhas e trans. Por isso afirmo que invés de gastar um discurso, há algo que efetivamente se realiza, que reafirma os valores intrínsecos ao filme. Libertar a si mesmo e ainda fomentar que outras mulheres possam fazer o mesmo. Por isso o grupo só aumenta e a prática do amor livre entre elas soa como um processo inerente à práxis que move esse curioso e amoroso coletivo.

Mesmo sendo um filme basicamente interpretado por mulheres (os homens são meros coadjuvantes mesmo), "As filhas do fogo" pode chocar, inclusive o público feminino. Isso porque o filme traz para a discussão o que seria um filme pornô. Seriam as cenas explícitas que caracterizam o pornô? Ou seria algo que está por trás do que é efetivamente filmado, isto é, do sexo explícito? Essa reflexão em si já seria um grande mérito desse filme tão desafiador, até mesmo para o nosso tempo de hoje (que parece querer regredir em relação à libertação dos corpos).

Ainda que todos os argumentos contrários ao filme sejam verdadeiros e válidos, acredito que não se pode o demolir por completo, em especial pela coragem de Albertina Carri em realizar uma obra tão desafiadora como "As filhas do fogo". E ainda tem a sequência final na casa de campo. Ali uma seara de fantasias são experimentadas pelas personagens e nela a câmera participa, em um plano-sequência incrivelmente bem realizado, como uma luxuosa convidada a passear por cômodos e corpos com um prazer incontido. Há então um ápice, tanto cinematográfico quanto no plano dos corpos, com direito a uma ousada cena final de masturbação individual, sem cortes, como jamais assisti no cinema. Uma cena que basta por si e que realiza uma síntese perfeita para o filme: o corpo e o prazer estão apenas nas mãos da mulher e ninguém mais pode tirar isso dela.     

Visto no Espaço Itaú de cinema 4, em 23/03/2019.

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