Por Marco Fialho
A obra única, derradeira e genial de Hu Bo
A longa duração do filme "Um elefante sentado quieto" pouco importa, ou melhor, importa, e muito, pois cada minuto de seus 254 minutos é valioso e preciso, fragmentos preciosos que levamos para casa ao final desse drama ao mesmo tempo tão intimista (existencial) e social. Cada plano é executado com um rigor impressionante. Uma obra-prima que parece ser de um experiente cineasta, mas que foi realizada pelo jovem Hu Bo, de apenas 29 anos.
O diretor Hu Bo suicidou-se logo após terminar o filme. É incrível a existência de uma dor sincera que o diretor consegue impingir a cada tomada de "Um elefante sentado quieto". Inclusive, no filme ocorrem dois suicídios, o que mostra o quanto o tema estava presente em seu pensamento. A atmosfera do filme fica a cargo de uma fotografia descolorida, onde as cores esmaecidas possuem um desagradável tom esverdeado, que muito lembra aquela carne em processo de putrefação. Até o vermelho dos uniformes escolares parece mortificado de tão insosso que nos vislumbra. A ambiência é completada por uma atmosfera sonora onde predomina o silêncio angustiante de que algo maior e terrível está para acontecer. A trilha musical só aparece muito pontualmente, como na bela cena em que o senhor Wang Jin (Congxi Li) vai conhecer um asilo para talvez lá passar o resto de sua vida, porém se depara com um ambiente de morte prematura. A câmera subjetiva de Wang, junto com a música, delineia muito bem a presença das sombras naquele lugar.
A câmera revela-se um artifício importante para o filme. Apesar de sempre está em movimento e colada nos atores, ela não trepida como vemos muitas vezes em filmagens com essas características. A sua execução é milimetricamente calculada, com destaque para o foco manual em todas as cenas, onde fundo e primeiro plano se revezam continuamente e perfeitamente, desenhando jogos dramáticos impressionantes, inclusive muitas vezes com uso espetacular do extra-campo como pouco se vê em outras produções atuais. A relação do que está em foco com o que não está é sempre muito expressiva e Hu Bo utiliza isso com raro esmero narrativo. O trabalho de câmera é fundamental para sua dramaturgia inteiramente presa aos atores. Ela mostra que o mundo só faz sentido a partir deles, e por isso sua mise-en-scène está condicionada também pela perspectiva deles. A decadência e a sujeira de todas as locações ampliam a nossa sensação de infelicidade presente naquele contexto cinzento e sub-industrial. A morte parece andar à espreitar as vidas que ali se aventuram viver. O desconforto é latente e os amores contidos e sempre frustrados pelo egoísmo e o individualismo. E todos estão no mesmo barco, sem exceção.
Os diversos planos-sequências conseguem capturar o aprisionamento e as encruzilhadas de cada personagem abordado na trama. Cada um tem sua história. Os personagens mais velhos já sabem, tem consciência, de que eles são os espelhos dos adolescentes, que o ciclo de cada um já contém uma tragédia anunciada, por isso há uma reflexão que permeia a obra sobre os destinos de cada um. Frases como "Por que você é tão positivo quanto ao futuro?"; "você acha que a vida vai mudar, mas não vai"; "minha vida é um container de lixo; "A vida de todo mundo é assim"; "vida miserável, sempre foi assim. Eu sou assim. Você é assim"; "o mundo é asqueroso"; "Você pode ir aonde quiser, mas não vai encontrar nada diferente. Tem que aprender a viver com o que tem aqui"; e "o mundo é um terreno baldio" são exemplos da certeza de que vivemos em um túnel com poucas possibilidades de saída, como se tivéssemos que aprender a lidar com nossas convalescenças diárias.
O que Hu Bo nos entrega é cinema em seu estágio mais pleno e maduro, de uma concisão narrativa que nos põe completamente em sintonia com os personagens, ou melhor, nos amarra às suas dores e angústias mais lancinantes. O diretor ao invés de nos propor um distanciamento, nos induz a uma aproximação, uma partilha e uma relação de empatia com os personagens retratados. Destaque para as interpretações dos quatro protagonistas, todas impecáveis entregues em tom correto, onde vemos em cada cena a mão exata de Hu Bo. Outra protagonista dessa obra são as sombras. O tempo todo ela está a insinuar o que vemos, a delinear os corpos repletos de angústias acerca do viver. Tempos sombrios inspiram personagens e ações que lhes são compatíveis. Mas é essa tensão inclemente que nos prende do primeiro ao derradeiro plano.
Hu Bo consegue montar um filme, todo passado em um dia cinzento, chuvoso e nublado, onde tanto o narrar quanto o tema estão profundamente entrelaçados, o que faz de "Um elefante sentado quieto" uma obra excepcional, completa esteticamente. O diretor não descuida também de inserir algo de metafórico em seu filme. Se vivemos em um mundo assombrado pelo demônio da violência e do caos, a tal cidade de Manzhouli parece representar a esperança de que existe algum lugar para se acreditar. Alimenta em nós a sensação de que algo de surpreendente possa acontecer em nossas vidas, como a existência fascinante de um elefante que vive serenamente sentado e que seria a grande atração da cidade. O que vemos é um cartaz promocional anunciando um circo justamente em Manzhouli. Seria esse elefante uma referência a um passado mítico e espiritual presente na milenar cultura chinesa e cada vez mais abandonada por uma vida contemporânea, dominada pelo imediatismo e onde os valores elevados estariam abandonados? O desejo de interiorizar essa busca mítica possui uma poética em si e quem sabe poderia se desdobrar em futuras obras de Hu Bo. Mas infelizmente essa é outra dúvida insolúvel a habitar apenas no terreno do eterno mistério.
Todavia, se vida é busca, o primeiro passo para se chegar a algum lugar é sair do imobilismo. E é justamente isso o que esse "Um elefante sentado quieto" mais nos inspira, buscar saídas em meio ao caos da vida que nos impuseram.
Visto no Cine Arte UFF, em 30/03/2019.
Cotação: 5/5
Sensível comentário, Marco Fialho. Só faz crescer o impacto das imagens, e o enigma presente do princípio ao fim: quanto vale a vida diante do trágico cotidiano? Sem fronteiras, "Um elefante sentado quieto" é o grito que nos surpreende e nos interroga.
ResponderExcluirAdriana, grato pelo comentário. Realmente daqueles filmes que ficam conosco, de tão especial e impactante que é.
ResponderExcluirTá na minha lista Marco. Vou ver com certezaaaaaaa. É a Márcia, abraços prá vocês
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