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"O PASTOR CLÁUDIO" E "O SILÊNCIO DOS OUTROS"

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O dia em que o imenso Oceano Atlântico virou um córrego: o encontro entre Cláudio Guerra e as vítimas do franquismo.

Por Marco Fialho

"Canta, mas canta triste
Porque tristeza é o que se tem pra contar

Chora, mas chora rindo
Porque é valente quem nunca se deixa quebrar

Ama, o morro ama
o amor aflito, o amor bonito que pede outra história"

Trecho extraído da canção "Feio não é bonito", composta por Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri e gravada por Nara Leão no álbum "Nara - Me - 10", lançado no simbólico ano do golpe civil-militar de 1964 pela gravadora Elenco. Disco igualmente simbólico por trazer pela primeira vez ao grande público a força dos sambas de Zé Kéti, Cartola e Nelson Cavaquinho. A epígrafe também podia ser trecho de Luz Negra do Nelson Cavaquinho: "A luz negra de um destino cruel / Ilumina o teatro sem cor / onde estou desempenhando o papel / De palhaço do amor"                 
 
Coincidentemente em menos de uma semana assisti a dois filmes, um espanhol e outro brasileiro, que falavam a mesma língua. Não a espanhola ou a portuguesa, mas sim a da reparação e da justiça tardia. O filme espanhol chama-se "O silêncio dos outros", dirigido pela dupla Almudena Carracedo e Robert Bahar (tendo Pedro Almodóvar como um dos produtores); e o brasileiro "Pastor Claudio", dirigido por Beth Formaggini. Em ambos os casos, e cada um a seu modo, podemos dizer que estamos defronte de um acerto de contas dos dois países com a sua história recente. Tanto um quanto outro são documentários cujos realizadores assumem suas posições ideológicas, o que a meu ver é necessário nesse caso, dado ao tamanho da barbárie que envolve os dois momentos políticos em questão, assumindo mesmo como um dos papéis do filme documentário o trabalho de resgatar ocultamentos históricos perpetrados pelos vencedores. Cada filme a seu modo é marcado de alguma forma pela contundência política. É muito difícil para o espectador sair incólume ao final dessas obras.           

Entretanto, há uma diferença crucial entre os dois filmes na escolha dos pontos de vista. Enquanto "O silêncio dos outros" resgata as vozes das famílias vitimadas pelo regime franquista, "Pastor Cláudio" dá voz ao mea culpa do próprio algoz, o ex-delegado do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) Cláudio Guerra e atual pastor evangélico. Todavia há uma similitude importante que tangencia os filmes. Em 1977, após quase 40 anos de ditadura franquista a Espanha estabeleceu o pacto do esquecimento, e aqui do outro lado do oceano, no Brasil, se instituiu a abertura ampla, geral e irrestrita. Os dois países, então, oficialmente optaram por realizar uma transição para a democracia onde hipocritamente o passado foi jogado para debaixo do tapete.
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 Imagem do filme "O silêncio dos outros"

"O silêncio dos outros" registra a luta de alguns reminiscentes da militância contra o regime do General Franco e como um deles conseguiu com sua insistência implacável reabrir o processo que permitiu então julgar os crimes cometidos durante a época de exceção, no que contou com importante ajuda de uma advogada da Anistia Internacional, mesmo que toda a peleja judicial tenha sido implementada a partir da Argentina, já que as leis espanholas não permitiam o enfrentamento dessa querela do passado. O que os diretores do filme fazem então é deixar que a câmera fique à mercê da incansável odisseia de familiares pela recuperação dos corpos dos seus aguerridos entes. Essa luta é ampliada para além dos corpos, ela se dá também em prol da substituição do nome de logradouros com nomes de personagens históricos assassinos.   

O fato mais incomum de "Pastor Cláudio" está em sua construção, que se dá pelo depoimento de um ex-agente do regime opressor e isto faz com que o sombrio e a monstruosidade apoderem-se de todas as cenas, já que o protagonista vai friamente desferindo confissões cada vez mais aterrorizantes ao entrevistador Eduardo Passos, psicólogo e ativista pelos direitos humanos, que como um sereno e perturbado inquisidor vai metralhando perguntas e dúvidas ao seu oponente. O cenário é simples, entrevistado e entrevistador estão frente a frente em uma sala escura, iluminada apenas pela luz de um projetor que mostra imagens do passado obscuro a serem comentadas pelo assassino Cláudio Guerra. O curioso é que toda essa projeção incide sobre parte do corpo dele, o que nos oferece uma dupla consequência: de um lado vemos a deformação de seu rosto com a pixelização da imagem; e de outro cria-se uma enorme sombra escura (bem apropriada aliás) dele na tela, como se ela estivesse ali para reafirmar duplamente seus atos tanto no passado quanto no presente. 
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Imagem do filme "Pastor Cláudio"

Já o filme espanhol trabalha diretamente com a dor de familiares que anseiam ainda por enterrá-los e isso injeta nele uma enorme carga emocional. Os diretores fazem questão de mostrar as ossadas enterradas coletivamente e as filma em detalhe (vemos até as balas de revólver ainda entre os ossos das vítimas), assim como também o faz com os sentimentos dos familiares, quando ouvimos seus choros e gritos de revolta e impotência perante os restos mortais de seus entes. Há sim nisso tudo uma potência imagética cortante, o que fustiga em nós uma enorme angústia e uma dolorosa dificuldade de assistir aquelas cenas tão cruas. A crueldade do regime é constantemente reforçada ao nível do insuportável pelos diretores, a ponto de vermos balas não só nos corpos, mas também numa das estátuas de pedra especialmente esculpidas para homenagear os desaparecidos (leia-se assassinados) durante o longo período franquista. Em off ouvimos: "agora sim, o buraco aberto pelo tiro completou a obra do artista". Representação e realidade estão equânimes, materializam a violência física e espiritual daquele longo e penoso período histórico.

Em relação à violência em "Pastor Cláudio" ela se revela tão somente e absurdamente no plano físico. A dor é mais nossa do que dos familiares, afinal vimos apenas um ente, a esposa de Itair Veloso, em busca de seu corpo para enterrar. Beth Formaggini projeta as imagens de Claudio Guerra depondo para a Comissão Nacional da Verdade (CNV), projeto alavancado pela então Presidenta Dilma Rousseff, em que ele visita a Usina de cana-de-açúcar onde o próprio Cláudio pessoalmente incinerava os corpos de diversos líderes do Partido Comunista Brasileiro (PCB). O depoente com toda a frieza do mundo narra, e com detalhes, os requintes de crueldade desses momentos assustadores, inclusive os assassinatos à sangue frio que cometia ao desferir à queima-roupa tiros fatais em opositores do regime. Segundo o próprio, ele o fazia como um bedel obediente dos algozes, quase como se fora também uma vítima do sistema assassino. Mas a sedução pelo poder estava ali presente, firme e forte. Cláudio Guerra de repente dispara: "eu mandava no Espírito Santo, era temido". Mais do que arrependimento e salvação, esse algoz busca hoje não ser pego nem morto, o que ele quer é sobreviver, mesmo tendo um passado mais do que condenado e perverso.     
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Imagem do filme "O silêncio dos outros"

Os depoimentos de Cláudio Guerra aterrorizam sob qualquer ponto de vista imaginável. Já nos créditos iniciais, a diretora esclarece que Cláudio solicita que segure uma bíblia durante a entrevista. Será que ele acredita mesmo que essa simples atitude o livrará de todos os seus atos canhestros do passado? O próprio título do filme sugere uma ironia, pois como enquadrar um executor, um assassino como um líder religioso? Como o que temos é somente a sua fala, o peso do passado não se esvai simplesmente por estar no presente coberto sob o "sagrado" título de pastor. Soa até doentio e hipócrita. O filme revela sobretudo como é importante que falemos do nosso passado. Cláudio fala dele, porém está dizendo que os esquemas permanecem ainda hoje (no caso em 2015, data de sua entrevista), que os grupos beneficiados na época da ditadura são os mesmos, nunca perderam seus privilégios, mesmo após o seu fim em 1985. Mas ele entrega que não eram só os militares a mandar no país, também os empresários e banqueiros sempre estiveram presentes nas armações e havia treinamentos especiais ministrados pela CIA, ou por alguém que já havia passado por lá. Os quatro anos que nos separam do depoimento de Cláudio Guerra revelam uma força impressionante do passado em nossos dias. Nossas raízes do atraso estão incrustadas em cada palavra proferida por esse ex-serviçal da ditadura. Em seu discurso estão as milícias, cuja origem está na Organização Scuderie Le Cocq (esquadrão da morte e fundado em 1965), onde Cláudio Guerra cita um de seus fundadores, Sivuca, criador da horrenda frase "bandido bom é bandido morto". Não omite que o esquema criminoso transferiu hoje todo o seu arsenal e tecnologia para cima das populações pobres e negras. Não temos aqui como esquecer o próprio assassinato da vereadora Marielle Franco e as relações dos mesmos grupos de extermínio, hoje nossos milicianos. "Pastor Cláudio" relaciona passado e presente com muita potência e o faz sem essa pretensão, pois em 2015, ainda era Dilma presidenta do país, e nem em nosso pior pesadelo da época o presidente em 2019 seria Jair Bolsonaro.

Ideologicamente todos esses regimes de exceção estão sempre à sombra de uma suposta ameaça comunista, utilizada corriqueiramente como cortina de fumaça para a implantação de políticas de ódio e extermínio de opositores. "O silêncio dos outros" e "Pastor Cláudio" são documentários fundamentais, por exporem métodos violentos e assassinos de uma elite política preocupada em garantir privilégios classistas de latifundiários, empresários e banqueiros. Não dá mais para esconder nossas entranhas, elas estão abertas demais, sem véu, é só ver para crer.
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Imagem do filme "O silêncio dos outros"

Portanto, o que mais impressiona é que esses dois filmes, um realizado na Espanha e outro no Brasil, em um estalar de dedos, concretizam uma sólida ponte que nos permite rapidamente cruzar o imenso Oceano Atlântico como se fosse um córrego fácil de atravessar. Assim, em uma simples piscadela a Espanha se avizinha ao nosso Brasil, e o melhor, isso tudo ocorre porque existe o cinema como instrumento que possibilita executar tal movimento dubiamente doloroso e mágico.

"O Silêncio dos outros" foi visto no Estação Net Rio 2, no dia 07/03/2019. Cotação: 4/5
"Pastor Cláudio" foi visto no Espaço Itaú de Cinema 3 (cabine de imprensa), no dia 11/03/2019. Cotação: 4/5           

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