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IMAGEM E PALAVRA - Direção de Jean-Luc Godard

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Apenas o fragmento carrega a autenticidade

Crítica por Marco Fialho

Godard é um daqueles diretores que todos sempre acompanham com grande interesse e expectativa. Apesar dos 88 anos, Godard continua sendo o cineasta mais influente do planeta. O mais amado e o mais odiado. Seus filmes trazem sempre algo de inesperado e de diferente. Mais do que um artista, Godard é um pensador contemporâneo que se utiliza da linguagem do cinema para expressar ideias. Nesse último trabalho, "Imagem e palavra", comprova o compromisso com um cinema livre, sem amarras narrativas, como aliás já vem desenvolvendo nos últimos anos. No longa anterior, "Adeus à linguagem", Godard faz um uso inovador do 3D no cinema, mostrando o quanto criativo esse recurso pode ser, e como a grande indústria do entretenimento o vem utilizando de maneira reduzida e pobre, apenas como profundidade e como ilusão de objetos saindo da tela do cinema na direção do espectador. Apenas o fragmento carrega a autenticidade.     

Constata-se em "Imagem e palavra" que Godard não realizou exatamente uma filmagem, pelo menos no sentido mais usual que fazemos dela: ir a campo ou em um estúdio registrar imagens e sons. Parece que Godard parte da instigante ideia de que a contemporaneidade e a humanidade já criaram muitas imagens, assim como já lançaram uma enxurrada de textos e pensamentos sobre os homens. São séculos e mais séculos de registro de imagem, sons, textos e ideias, uma avalanche realmente perturbatória, um sem fim de material já produzido. Assim o nosso mestre franco-suíço, tal como um menino aficcionado por mídias digitais, se apropria de imagens, sons e textos para realizar mais um filme-tratado sobre os nossos dias. Apenas o fragmento carrega a autenticidade.   
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Pode-se afirmar que algumas questões vistas e ouvidas em "Imagem e palavra" são do interesse constante de Godard. Suas obras existem sempre para chamar atenção ao que nos passa despercebido, ou como se diz, batido. Movimento, fragmento, destruição, materialidade, memória, esquecimento, tempo, humanidade, enfim, cito apenas alguns como exemplificação, são temas fugidios em si, que marcam a fragilidade e a fluidez do terreno onde está assentado o cinema. A construção de Godard caminha sempre no sentido de reafirmar uma sensação de incompletude inerente à vida e ao cinema. Essa é a sua poética, o seu expressar diante da humanidade. Daí seus filmes parecerem cada vez mais tratados filosóficos onde o audiovisual é sobretudo o meio de repensar ideias e conceitos contemporâneos. Apenas o fragmento carrega a autenticidade.         

Não casualmente, ele inicia seu mais recente tratado com um desafio: "pensar com as mãos". Manipular imagens e sons a partir de um computador, sem criar imagens "novas", mas sim recriando as existentes, as já produzidas. Essa estrutura de filme muito me faz lembrar da estrutura de seu icônico livro "Introdução a uma verdadeira história do cinema", onde também reconstitui a trajetória do cinema a partir de sua trajetória como espectador e realizador, ele chega a dizer que essa é a verdadeira história do cinema, pois cada um de nós cria a sua de acordo com seu caminho cinematográfico e seu conhecimento adquirido por meio das conexões que faz desse acervo já visto. Por isso mesmo ele junta tanto no livro quanto no filme, imagens de filmes divididos por blocos temáticos criados arbitrariamente pelo próprio Godard. Autoria afinal é isso, mexer com algo que concerne à subjetividade de quem manipula o passado no presente. Preciso então resgatar um pequeno trecho introdutório que Godard faz dessa viagem pelos filmes em seu livro de 1980, pois essa ideia casa bem com algumas ideias que vemos em "Imagem e palavra":
"Desse modo o roteiro (do livro) dividiu-se em vários capítulos ou viagens. A cada viagem eu trazia um pouco da minha história e nela remergulhava, ao ritmo de dois de meus filmes por fim de um mês, mas muitas vezes a água do banho me revelava algo diferente daquilo que na minha memória registrara, isso porque de manhã eram projetados trechos de filmes da história do cinema que na época estavam para mim, relacionados com o que eu fizera. E eu comentava tudo diretamente, diante de três ou quatro canadenses tão perdidos como eu nisso tudo." (p.1) Apenas o fragmento carrega a autenticidade.   
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Essa ideia do manipular sempre esteve com Godard, claro, mas o que eu reflito aqui é a relação da forma livro com "Imagem e palavra". No filme, essa proposta do manipular, como método, resulta em belas imagens reconstruídas. Afinal os minúsculos fragmentos de "A última gargalhada", de Murnau, aparecem na tela para logo surgirem cores sobre o seu P&B. E assim outros filmes aparecem fragmentados, brevemente empoderados para serem mexidos e a seguir se evanescerem. Cinema, essa memória fugidia de quadros que vem e vão em um movimento contínuo. Godard é um diretor que nos faz pensar mais no processo que no o que está posto em si na tela. Possui a plena consciência do breve existir de uma imagem e de um som. Por mais que para nós o que fique são flashes, o filme tende a ser uma resoluta sombra. O tempo da memória é como uma fotografia que vai perdendo algo de sua materialidade, ou que o seu substrato material se modifica com o passar dos dias. Existe sempre algo de original nela, mais assim como em nós, seus cabelos brancos se insinuam perigosamente. Enfim, a materialidade é sempre algo que caminha para o precipício da morte. A potência dessa imagem está em "Palavra e imagem". Apenas o fragmento carrega a autenticidade. 
                 
E também há a destruição da imagem pela palavra ou pelo som, ou no mínimo o seu tencionamento. As obras de Godard sempre foram impregnadas pelas citações. Em "Imagem e palavra" são elas que dão inteiramente as cartas. Basta observar os créditos de imagens, filmes, sons e escritos enxertados sem a menor cerimônia e isso sem contar os seus próprios filmes que são introduzidos em diálogo com os outros materiais. Mas o mais interessante é o aspecto destrutivo que Godard impinge a essas citações. Fora de seus contextos originais elas estão resignificadas, ou mais, revividas como uma fênix dentro da proposta do diretor, para em seguida caírem novamente no bueiro do esquecimento. Apenas o fragmento carrega a autenticidade.
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Em uma época onde a imagem fala por si e possui estatuto de verdade inconteste, ainda existe Godard, o mago da reconstrução e da relativização do que vemos e sentimos. Lembro aqui um pensamento de Paul Virílio exposto em seu livro "Máquina de visão" sobre o excesso de máquinas de registro instantâneo de imagem no mundo contemporâneo:
"vontade de tudo ver, de tudo saber a cada instante, em todo lugar, vontade de iluminação generalizada, uma outra versão científica do olho de Deus que proibirá para sempre a surpresa, o acidente, a irrupção do intempestivo." (p.99)
Qual seria então o estatuto corpóreo da imagem? Godard exprime com exatidão quase absurda o oposto dessa visão totalizadora da imagem, tal como está posto por Virílio. "Imagem e palavra" então refuta e questiona veementemente a faceta mais perene dessa ideia. Apenas o fragmento carrega a autenticidade.

O efeito vaporizador da imagem proposto por Godard é essencialmente mais poético, singelo e simbólico. Ele confere à imagem uma situação transitória, pois ela existiria em um movimento descontínuo de aparição/desaparição, como algo vivo, mas sempre fugidio. Por isso, em um filme de Godard não apreendemos nunca tudo que é mostrado visualmente e sonoramente. Cinema, vida e pensamento se confundem em sua obra. Esse todo jamais é algo orgânico. Godard brinca com as texturas dos filmes, adultera-os inclementemente, comete o sacrilégio, pois sabe o quanto eles são nuvens de um novo céu, de uma outra história. Mas o território das ideias não é diferente, Rimbaud, Tolstói, Victor Hugo, Dostoieviski, Montesquieu e tantos outros passeiam na tela, seja como escritura mesmo ou na própria voz de Godard, que inclusive não permitiu a tradução de tudo que se fala no filme. Afinal, o homem está sempre apto a destruir. Como diz o próprio Godard: "representação é violência", portanto, arte também é violência. Apenas o fragmento carrega a autenticidade. 
Imagem relacionadaMas como então contar a história do mundo, se os poderosos já a contam a sua maneira? O que caberia então aos que estão fora da seara de quem efetivamente fabrica a versão oficial? Eis que no filme surge o fictício Emirados de Dofa, terra árabe sem petróleo (Arábia feliz), conforme narrou o escritor Albert Cossery. Esse é Godard, aquele que tira da cartola o coelho inesperado. Mesmo sem riquezas, Dofa tem seu político ambicioso e desejoso de poder. Godard então propõe uma arquelogia do poder e pergunta: "os árabes podem falar?" Ou estariam sempre à mercê da voz alheia? Mas afinal "o mundo não se interessa pelo mundo árabe. O mundo árabe é decoração". é misticismo barato para ser vendido na esquina. Ben Kadem é um político de Dofa, mas fala em nome do povo. E Godard rebate: "a língua jamais será a linguagem". Entretanto antes, Godard aborda a história do cinema. Mas qual história? E vem mais perguntas: A história eurocêntrica? E a dos pobres, dos derrotados, e como os filmes pornôs estão na presentes nela? As guerras, a terra, os trens, sim os trens (a história do homem assim como a do cinema passa por eles - movimento, desenvolvimento técnico, transporte, pessoas...cinema). Enfim, quem está dentro e quem está fora dela? Apenas o fragmento carrega a autenticidade.

Por isso em Godard o que mais importa são as reticências, o que está inconcluso, o que está para ser reescrito. Por isso ele afirma ao final: "apenas o fragmento carrega a autenticidade". O fragmento é para o cinema o que o gene é para a biologia. Ele é parte e é o todo. Não à toa, o fragmento é a matriz e o cerne da concepção godardiana. "Imagem e palavra" não só reafirma essa ideia como a encampa na integralidade. O cinema com Godard sempre será outro: a história do menino e seu brinquedo favorito.

Visto no Estação Net Rio 2, em 16/03/2019.
Cotação: sem cotação.                                                                   

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