
O fogo de reviver
Crítica por Marco Fialho
"Reviver" é o segundo filme da trilogia de viagem da dupla de diretores Cavi Borges e Patrícia Niedermeier. Em comparação ao primeiro filme, "Salto no vazio", "Reviver" possui uma produção mais simples e uma narrativa igualmente sem grandes rebuscamentos. Mas vale destacar o quanto o filme é saturado de singelezas e poesia.
Apesar de ter um fiapo de história, "Reviver" deve ser desfrutado como um filme de ordem mais sensorial e muito devido às cenas onde Patrícia Niedermeier empresta o corpo para desenhar uma atmosfera sempre repleta de momentos lúdicos. Os movimentos de Patrícia magnetizam a tela, transformam cada aparição pura em poesia e movimento, tamanha a desenvoltura que apresenta em cena, seja ao som dos atabaques maranhenses seja numa cena reflexiva em plena duna da praia.
Assim como em "Salto no vazio", há em "Reviver" o uso de narrativa em off, que a princípio identificamos como a da própria protagonista, mas que no decorrer do filme vamos percebendo que pode não ser dela, mas sim uma viagem imaginária do roteirista Greg (Jorge Caetano), que precisa desesperadamente entregar um roteiro encomendado pelo produtor (Alexandre Dacosta), que tem como mote um devaneio sobre o paradeiro da artista plástica Maria Guaranis (Patrícia Niedermeier), que depois de ter a casa incendiada, desaparece sem deixar vestígios. Aliás as cenas dela são sempre muito bonitas plasticamente, em especial a antológica que ela corre na direção do mar ao som de uma icônica canção de David Bowie. Essa é aquela imagem que não conseguimos descolar da cabeça de jeito nenhum, tamanha a sinergia que ela inspira.
A relação da personagem Maria Guaranis com o fogo, se esboça como uma linha condutora da narrativa. Do fogo do apartamento ao calor do corpo, a sua capacidade de renovar e provocar mudança está presente durante todo o filme. O papel do roteirista Greg é capturar a essência dessa mulher, que se vislumbra livre, excêntrica e possuidora de uma força surpreendente. Ele encontra-se em um labirinto. Afinal como sair dele quando tudo que se tem é tão pouco palpável e indiciário. Mas a arte tem mistérios e descaminhos sedutores. Como lhe diz seu amigo Braga, "para sair do labirinto é preciso antes entrar nele." Resta a Greg viver essa história, mergulhar nos abismos de Maria Guaranis para que eles também sejam seus. O que se tem são fragmentos, e a partir deles, a história precisa ser remontada, reconstruída. Com isso, cria-se uma metáfora sobre o próprio fazer artístico. Viver não é tão distante assim de se fazer arte. Em ambos são necessários dois movimentos ambíguos: partir do que se tem e ao mesmo tempo morrer para poder renascer. Daí a importância do fogo. "O fogo queima e ilumina". Uma coisa, assim como um sentimento, nunca é uma apenas ela em si, mas muito mais, se desmembra em outras e mais outras, em um eterno movimento. Afinal, "ser livre é morrer" como anuncia Greg. A arte é essa eterna fênix a morrer e renascer indefinidamente. O homem morre, a arte não. A arte é um poderoso vestígio que uma geração deixa para outra. São testemunhos de um tempo não mais acessível, a não ser por pela representação artística.
Mas para que tudo caminhe é necessário um fluxo, e o grande acerto dos diretores está nos planos amplos, realizados muitas vezes em sequência (sobretudo os do apartamento de Greg) onde se respeita e sublinha o fluir das atuações dos atores. Aos planos soma-se ainda as paisagens do Maranhão: as imagens do belo centro histórico (muito bem fotografado), da luz nas praias e dunas que inundam nossa visão. O tempo também se faz personagem, pois saber esperar é um artifício do zen, é condição sine qua non de aprendizado. Como Maria Guaranis escreve logo no início do filme "foi, nunca será de novo". Nada mais budista do que essa sentença-pensamento. O produtor tem que esperar a inspiração de Greg e Maria Guaranis, que precisam esperar o seu próprio renascimento, que tudo indica está mais na inspiração de Greg do que nela, pois a imagem dela nada mais é do que uma projeção feita pelo roteirista.
Mas afinal quem é Maria Guaranis? Em uma única e belíssima imagem ela aparece andando calmamente para o infinito de um ancoradouro, mas essa imagem inscreve em si uma duplicidade, pois a vemos também sincronicamente invertida na tela. Mas se o mundo não é tão simples como aparenta, qual seria então a imagem a ser vista? Sabe-se que a confusão ótica é física, já que é o cérebro que acerta as imagens vistas invertidamente. Qual seria então a imagem correta, a invertida ou a que o cérebro acerta? Essas são perguntas que "Reviver" traz à tona, a do mistério e da subjetividade.
Há na proposta de "Reviver" uma impregnação da narrativa etnográfica, que sinteticamente é entendida aqui como a criação de uma ficção a partir de uma experiência de vida, ou de uma realidade vivida e depois recriada pelo sujeito. Mas afinal, não podemos dizer que assim é o próprio cinema, um contar e recontar de histórias, sensações e enredos, um viver e um reviver, um eterno reacender de uma fogueira? E mais do que isso, o encontro de uma alma contagiada pelo fogo de outra? Só dessa forma o roteiro de Greg se fez, quando enfim a brasa de Maria Guaranis se comungou com a dele. A magia é realmente viva e verdadeiramente quente.
Visto no Estação Net Botafogo 1, durante a mostra "Estreias Cariocas", em 16/03/2019.
Cotação 3/5
Que beleza......que belo! Um dos presentes mais belos que ganhei na vida!!!! Muito emocionada! Muito emocionante .....a arte vale nesses momentos.......
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