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AMMONITE (2020) Dir. Francis Lee


Texto de Marco Fialho

O título do filme de Francis Lee investe em um duplo sentido: um relativo à paleontologia, em que ammonite é um tipo de fóssil na qual a personagem Mary Anning (Kate Winslet) se dedica arduamente; em outro sentido, o título faz referência à própria personalidade introvertida e antissocial da pesquisadora, já que as ammonites são fósseis em formato de conchas. "Ammonite" se propõe a discutir essa personagem misteriosa de Mary, sua relação tanto com a sociedade quanto com a sua rotina como paleontóloga. 

Mary Anning vive reclusa, em uma pequena cidade marítima em Lyme Regis, sul da Inglaterra, hoje conhecida como Costa Jurássica, graças ao trabalho dessa grande pesquisadora. Mas o filme dá uma guinada quando entra em cena Charlotte Murchison (Saoirse Ronan), mulher de um negociante interessado nas pesquisa de Mary. A história vai lentamente assumindo uma faceta romântica, com o envolvimento amoroso dessas duas mulheres fragilizadas por um mundo excessivamente masculino, tão duro quanto as pedras que Mary precisa encarar para realizar suas pesquisas.

Esse é mais um trabalho de grande cuidado da atriz Kate Winslet, ela empresta à personagem a aspereza necessária, conduz o filme lhe dando o ritmo pretendido por Francis Lee. Se pode argumentar que o comportamento de Mary é por demais rígido e inflexível, mas creio que se trata de uma conduta de uma mulher daquele território, onde o vento forte e o rigor do inverno determinam posturas mais duras. 

Mas há ainda uma diferença social a ser assinalada em relação aos personagens do filme. Os londrinos ricos (a família Murchison) e os costeiros vivendo humildemente (Mary e sua mãe viúva), vendendo pequenos souvenires para os minguados turistas, numa loja improvisada na própria casa. Charlotte e Mary, um amor atormentado pela disparidade de classe. Essas nuances sociais podem ser vistas na fotografia, quase toda em luz de vela, que salienta inclusive o amor proibido encampado pela história, inteiramente passada na atmosfera conservadora da Inglaterra do século XIX. 

Muito se tem comparado "Ammonite" a "Retrato de uma jovem em chamas", de Céline Sciamma, mas as semelhanças param no romance lésbico e por também se passar em uma época em que se sublinhava o caráter puritano e antiquado da sociedade. Há em "Ammonite" uma maior secura e a ausência de uma sutileza bastante latente no filme de Sciamma. O final apoteótico de "Retratos de uma..." não é perseguido por Francis Lee, que prefere optar por algo mais aberto e misterioso. Gosto muito da opção de Francis Lee de trabalhar com planos próximos de Mary, aproveitando assim a performance detalhista de Kate Winslet em cada cena. 

"Ammonite" consegue impor a personagem Mary como uma força da natureza e isso faz de sua direção algo bem delineado, justamente por saber que o poder do filme está na atuação de Kate Winslet. Há algo de cru em cada imagem proposta por Lee, inclusive nas cenas de amor. Escolher retratar o mundo a partir da visão de Mary é o maior acerto de Lee. Ficamos impactados pela maneira como os problemas surgem e como ela os encara, sempre com uma verdade e uma coragem que distingue ela dos outros personagens. 

A força de Mary é encorajadora, mesmo que ela se esforce para viver numa concha, mergulhada no amor pelo trabalho e pela descoberta de um mundo que já existiu. O mundo dos vestígios, dos pequenos sinais definem Mary, assim como determina o nosso fascínio por ela. Há uma cena que pode ter passado despercebida por muitos, mas que é fundamental em "Ammonite". Mary adentra no museu em Londres, e vê logo de cara, quadros com os rostos dos grandes pesquisadores. Todos são homens, mas ela também está no museu com suas descobertas fascinantes devidamente registradas. O apagamento de sua imagem está ali, exposto, pelo diretor Francis Lee, a lembrança que aquele mundo ainda precisa mudar e muito.

Comentários

  1. Muito interessante. Sua resenha foi um bom convite para assistir o filme!

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  2. Também gostei muito desse filme, até porque eu pouco sabia de paleontologia, e fiquei fascinada. As atuações são ótimas e sua visão é excelente.
    Eu particularmente, ainda estou refletindo sobre a coragem da Mary, algo no relacionamento entre ela e a mãe, também pode te-la levado a se fechar como uma concha, visto que ela não teve coragem de levar o primeiro amor adiante, uma cena importante que nos esclarece sua dificuldade em assumir um envolvimento emocional.
    Um filme que encerra na tela mas fica martelando nosso pensamento.

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