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TODOS NÓS DESCONHECIDOS (2023) Dir. Andrew Haigh


Texto de Marco Fialho

"Todos nós desconhecidos" me parece uma obra perfeita para se discutir uma tendência de um tipo de filme em voga nos nossos dias. Tudo nele atende a um propósito comercial muito evidente, de emocionar o público de maneira calculada e nesse ponto de vista é certeiro e eficiente, em especial porque aqui se envolve e se costura milimetricamente aspectos emocionais à narrativa do filme. Sei que essa afirmação pode atrair muitas discordâncias, mas ela é necessária de ser colocada justamente nesse instante, em pleno ano de 2024.

Vamos começar com a camada mais vista e mais evidente que o filme nos traz, a espírita, que costura toda a trama, de modo a ser uma escora poderosa de sustentação da própria narrativa. Apesar de ficar na dúvida se realmente era uma menção ao espiritismo, ou se tudo não faria parte do imaginário do protagonista Adam (em uma interpretação realmente muito delicada de Andrew Scott). Mas cheguei à conclusão de que em última instância, sendo imaginação ou espiritismo, ambos os casos não determinaria uma clivagem na essência, pois o cerne da questão se daria pela visão de Adam das coisas e acontecimentos tanto do passado quanto do presente. A grosso modo, podemos dizer que em nenhum momento, o diretor Andrew Haigh assume que a narrativa assumiu o ponto de vista da história que Adam estava escrevendo.

Outra questão importante de ser dita. Essa reflexão que estou a fazer não impacta no fato da produção ser esmerada, ter méritos técnicos indubitáveis, realizada com seriedade e competência. Pensemos que a própria escolha dos dois atores principais é bem estratégica, afinal Paul Mescal e Andrew Scott estão em ascensão no mercado audiovisual, são nomes propícios para atrair público para as salas de cinema. Sim, estou tocando em outro ponto sensível no cinema de hoje, a escolha do elenco e a capacidade dele ser um ímã irresistível de uso do marketing. 

Mas creio que o elenco é apenas uma pequena parte de uma estratégia muito maior, inserida numa ideia de que esse filme precisa, ao final, ser fofo e ganhar o público pela emoção, com um argumento que se perde por um roteiro que cede às tentações do mercado. E nesse aspecto, o mais interessante em "Todos nós desconhecidos" é o quanto a direção tenta fugir ao máximo do melodrama (ou estaria o atualizando de alguma maneira?), com planos mais ralentados e bem fotografados (nota-se uma fotografia sempre jogando com o contraste da frieza do azul com o quente do alaranjado), que flertam com o chamado cinema de arte, mais preocupado com o campo estético do que comercial. Essas estratégias narrativas, a meu ver, caem por terra nas cenas finais, francamente melodramáticas e tendenciosamente bregas. O que dizer dos dois abraçados virando uma estrela no céu, há algo mais clichê e sem gosto do que se filmar essa sequência como foi filmada? E ela encerra o filme, o desfecha de maneira a se apelar afrontosamente ao emocional do espectador. 
                   
Claro que há cenas de memória, de contemplação e amor de uma forma geral bem feitas e caprichadas. Reitero que não estou aqui para jogar o filme no bueiro da história, apenas quero apontá-lo como uma tendência, inclusive algumas estão no Oscar e sendo idolatradas como as últimas bolachas do pacote. Necessito olhar para o filme em seu todo, não só para os seus apelos fáceis e com intenções de fisgar o coração do espectador, de deixar a consciência sempre obliterada. "Todos nós desconhecidos" está para mim em um ramo do drama soft, com diferencial do romance LGBT (que não é o central da história), aquele filme que vamos assistir no cinema, deixamos umas lágrimas a tentar manchar o tapete, mas que depois secam tanto nos olhos quanto no veludo do carpete. Vale ressaltar ainda a trilha musical de "Todos nós desconhecidos", bastante clichê, tanto na parte de música original quanto na das músicas não originais, ambas bem convencionais, não apresentando maiores surpresas.    

Quanto à história, se formos realmente nos debruçar à ela, veremos que não é nada demais, um filho que perde prematuramente os pais e tenta recomeçar sua vida tentando conviver com os traumas do passado e de olho em um futuro, quiçá esperançoso e afetivamente favorável. Ele é um escritor de cinema (assim definido pelo filme), que trava conversas complexas com os pais sobre sexualidade, profissão, sucesso, relacionamentos, momentos felizes e outros traumáticos de sua vida, despertados pela casa abandonada em que viveu com os pais. Flerta com o único vizinho, afinal mora em um grande prédio habitado apenas por ele um vizinho que também é gay. Esse prédio pode ser visto como uma metáfora da solidão das grandes cidades, o filme, no caso, se passa em Londres. 

As informações acima sequer chegam a formar um spoiler, já que o filme se passa mais pela imaginação de Adam do que por fatos objetivos de sua vida. Se precisamos falar sobre superficialidade no cinema, esse é um bom filme-pretexto para tal, por ser bem-acabado, todo certinho na forma, mas que ao final apresenta um sumo bem reduzido e ralo, além de bem cafoninha, mas que vale conferir para se discutir uma boa parte do cinema comercial do século 21. 

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