Texto de Marco Fialho
"A lua nasceu" é uma obra clássica do cinema japonês, em que se destacam aspectos ritualísticos na filmagem e isso faz toda a diferença para a construção narrativa. Partindo de um roteiro do mestre Yasujiro Ozu, sente-se o seu olhar em diversos momentos, seja pelo universo temático envolvido seja pela presença de atores e atrizes que figuraram em suas obras. No plano da direção, algumas cenas parecem evocar descaradamente Ozu.
A trama abarca a relação familiar entre duas irmãs, a jovem viúva do irmão e pai viúvo, Sr. Asai (Chishû Ryû), que pacientemente, e às vezes com uma leveza irônica e perspicaz, contempla a chegada de alguns pretendentes amorosos que rodeiam a sua casa. A protagonista de "A lua nasceu" é Setsuko, a filha mais nova do Sr. Asai, que atua como cupido para a tímida irmã Ayako, mas acaba se apaixonando por Shoji, um jovem preguiçoso e meio sem rumo na vida.
O pano de fundo da história é a acelerada modernização capitalista do Japão na pós segunda guerra mundial e o seu impacto nas relações sociais e nas tradições. O personagem do jovem Amamiya, que mora em Tóquio, representa o novo Japão tecnológico e está em Nara, uma das cidades em que se passa a trama, para levar a tecnologia da micro-onda sonora para a cidade vizinha de Osaka (mais populosa). Um dos sonhos de Setsuko é conhecer a grande Tóquio, que a cada ano cresce exponencialmente.
Há enquadramentos em "A lua nasceu", que a diretora Kinuyo Tanaka se inspira diretamente em seu mestre Ozu, em especial a famosa câmera baixa tão celebrada e mencionada por vários críticos, responsável por não hierarquizar os personagens e objetos de cena, lhes conferindo uma significativa equidade visual entre todos os elementos em cena. Nessa ideia de mise en scène, a câmera fica parada e distante, possibilitando aos personagens um espaço privilegiado de movimentação e aos espectadores uma ampla visão do quadro, com atenção especial aos cenários e interiores das casas, ainda marcados pela arquitetura tradicional japonesa, com suas portas de correr, as mesas baixas e seus tatames no chão. Se, em boa parte do filme Tanaka se inspira abertamente em Ozu, em outros ela insinua dar passos próprios, usufruindo de uma câmera que também se arrisca em movimentar-se dentro da cena. Outros momentos de rebeldia estilística igualmente pode ser observada na montagem, com o uso de cortes mais insinuantes e rápidos, deliberadamente inspirados nos dramas ocidentais.
Mas queria me deter nos rituais, pois eles me parecem conter um significado maior do que o da mera representação cultural. Aqui, bem ao modo Ozu, os rituais expressam uma maneira de ver o mundo, uma espécie de resistência às mudanças que estão em curso nos anos 1950. Claro, que de um ponto de vista histórico, desde o final do século XIX, o Japão já vinha convivendo com dois mundos: o do passado e do futuro. Entretanto, alguns artistas mais críticos, caso de Tanaka e Ozu, podem lançar questionamentos sobre esses avanços tecnológicos e os abalos produzidos nos costumes milenares do passado. O presente é o melhor lugar para se falar desses conflitos temporais, pois é nele que a vida pende ora para o passado ora para o futuro.
Cada cena de "A lua nasceu" vislumbra um ritual. Não casualmente, o filme começa e termina com um ritual, ambos evocados por cantos que inspiram algo sagrado. Porém não é só isso, os rituais estão presentes a todo instante. Os gestuais, a maneira de se instalar uma simples conversação, o detalhe em filmar os objetos de cena, os sons e a natureza. Tudo aqui entrega uma ode a um passado incrustado no cotidiano, como se fora uma ferrugem difícil de arrancar.
Mas "A lua nasceu" pode ser visto como a própria invenção do amor. De como os sentimentos se moldam também por circunstâncias, muitas delas criadas artificialmente por outros. Setsuko inventa o amor entre Amamiya e Ayako, cria até cenário perfeito para ele aflorar: uma bela noite de lua cheia. Tem momentos que o drama de Tanaka se aproxima do melodrama, subgênero poderoso à época em vários países, dos Estados Unidos ao México. A música também reforça esse flerte narrativo, com os violinos irrompendo em diversas cenas, um primor.
"A lua nasceu" traz reflexões super interessantes para o mundo de 1955, em especial o do Japão, embora possa ainda nos dias de hoje, levantar discussões pertinentes sobre qual mundo queremos para nós. Se os jovens tinham quase certeza de que era possível se ter felicidade no ambiente urbano (empoeirado e caótico como diz o pai de Setsuko ao final do filme), em especial quando se pensa nas ilusões construídas por uma modernidade agitada e barulhenta, onde os olhares se encontram quase sempre fugidios e remotos. Ao final, há um ritual típico da tradição Nô, com uma canção em que a natureza, as estações do ano são lembradas para celebrar o ciclo contínuo da vida. Os rituais estão ali para não deixar que o passado seja apenas um quadro preso na parede, meramente envolto a uma moldura antiquada e mofada. Saímos do filme pensando muito acerca desses rumos excessivamente tecnológicos que o mundo tomou lá atrás, e que entretanto, agora, nos sufocam tanto. Tanaka e Ozu, com perspicácia, conseguiram prever alguns desses sinais e se pronunciaram por meio de suas poderosas obras cinematográficas.
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