Texto de Marco Fialho
Apesar de bem desconhecido no Brasil, "Para sempre uma mulher", filme dirigido por Kinuyo Tanaka, é uma obra-prima do cinema japonês do pós-guerra. Com maestria, a diretora trabalha exemplarmente o drama da trama, o contornando com total habilidade, sem cair no melodrama. Tanaka explora os meandros do drama da protagonista Fumiko, aprofunda todas as possibilidades oferecidas pelo arco dramático da personagem. Uma aula de como desenvolver um roteiro e como a direção pode expandi-lo.
Fumiko é interpretada por Yumeji Tsukioka, em um trabalho impressionante, pode-se dizer raro, destemido e sem freio, de uma entrega absoluta. Fumiko é uma personagem que vai fundo no universo feminino do pós-guerra, que casa por pressão familiar, vive um casamento infeliz, embora encontre coragem para se divorciar e iniciar uma nova vida, se revelando uma poeta reconhecida e de grande talento. Tanaka constrói a partir daí um drama vigoroso, realista ao extremo, mas sem deixar de pontuar a trama com nuances poéticas expressivas.
O que mais impressiona em "Para sempre uma mulher" é como Tanaka realiza um drama com os recursos de uma narrativa clássica muito bem desenvolvida, pensada em suas minúcias. A trajetória de Fumiko possui uma força fora do comum. Há nela, uma capacidade criativa incontestável e Tanaka vai introduzindo os haikai de Fumiko de uma maneira que amplia a nossa visão sobre ela. A personagem enfrenta diversos obstáculos inerentes a uma mulher daqueles tempos. Assim, o adultério do marido, a paixão reprimida por um outro poeta (Taku), a criação dos filhos, a doença incurável e a audácia de encarar tudo isso de frente. Fumiko é uma feminista descortinada pela própria vida.
A beleza de "Para sempre uma mulher" é de uma ordem rara. Jamais esqueceremos o trabalho preciso de Yumeji Tsukioka, em especial pela emoção que essa atriz permeia sua personagem. Tem cenas absolutamente impagáveis, como a que ela diz para Kinuko, a esposa do poeta, que sempre sonhara tomar banho na banheira dele e que o amava profundamente. Não há uma troca de olhar, tudo acontece pelas palavras ditas ao léu enquanto a fumaça do banho encobre os fatos e deixa tudo se esvanecer por si só. A maneira na qual Fumiko enfrenta a doença e a ausência dos seios, extraídos após o avanço de um câncer demolidor e irreversível é de arrepiar até o mais insensível do espectador. Tanaka atinge a um grau de realismo incomum, o dos sentimentos. Tudo soa tão verdadeiro e factível, sem jamais perder a ternura.
Tanaka nos brinda com cenas impecáveis, algumas com um pequeno espelho na mão de Fumiko. A diretora parece iluminada ao escolher os planos desse filme, todos pensados com uma exatidão surpreendente. Não vi um plano que fosse gratuito em "Para sempre uma mulher". Todos são de uma precisão narrativa incontestável. O uso da música também, sempre colaborando para despertar a emoção certa no espectador.
Quando Fumiko começa a tratar do câncer, o filme se encaminha para o trágico e Tanaka administra todos os detalhes para que o filme não desande para algo apelativo. Daí surge a força de Fumiko, a originalidade de suas ações e a verve artística que a impulsiona corajosamente para o enfrentamento do sofrimento. É a inteligência da personagem Fumiko que eleva o drama de "Para sempre mulher". Os diálogos de Tanaka são preciosos, são ourivesaria pura. Em determinado momento ela diz: "Eu não quero ser uma poeta, eu prefiro ser uma mulher", se referindo a dor de ter perdido os seios. Quando um jornalista vem de Tóquio para entrevistá-la, o filme parece ganhar um novo vigor e beleza. O que Tanaka realiza nessa última parte do filme não é algo corriqueiro, é de um primor estilístico e narrativo raríssimo de se ver no cinema. E olha que estamos a discutir o cinema dos anos 1950, um filme japonês que o Ocidente não conhecia nem o mínimo ainda, embora o inverso era verdadeiro, já que no Japão se exibia filme dos Estados Unidos desde sempre.
Vale registrar alguns detalhes realmente relevantes desse filme extraordinário, como as conversas íntimas entre o poeta Taku e a poeta Fumiko. A troca de olhares entre eles é de uma força dramática incomparável. Tudo está ali não só nos diálogos como também nas entrelinhas. Tanaka demonstra ser uma diretora de ator/atriz invejável. Tudo é tão límpido na cena, mesmo que cada personagem consiga guardar sempre algo de misterioso de sua personalidade. A ideia clara de cena não torna os personagens uniformes ou planos, muito pelo contrário, os mostra mais complexos, humanamente mais contraditórios e inseguros.
"Para sempre uma mulher" expande com sua dramaturgia a ideia de amor ao possibilitar que ele se apresente em variadas facetas. Ao que tudo indica, Tanaka queria filmar esses amores, as suas formas de expressão e reconhecimento. Se no começo do filme o amor está enevoado, impreciso e claudicante, no decorrer da narrativa ele se expande e se revela possível de muitas maneiras. Tanaka mostra que o amor acontece em detrimento ao outro, ele nunca é solitário, ele depende de uma relação interpessoal. Se o amor entre mãe e filhos está presente, o de Fumiko pela amiga Kinuko se consolida em progressão, mesmo quando esta última descobre sobre a paixão enrustida do falecido marido por Fumiko. Ainda tem o amor entre Fumiko e o repórter, que se desenvolve a partir dos seus poemas. Outro amor a não ser desconsiderado é de Fumiko pela poesia, que ao mesmo tempo está completamente envolvido pelas vivência dela. O amor, enfim, pode ser visto, se não como um personagem, como um elemento definidor das relações no filme.
Se o amor é importante para definir "Para sempre uma mulher", a poesia também o é. Tanaka quase sempre impregna a ação do filme com os belos poemas de Fumiko. E não são poemas quaisquer. São do tipo haikai, sínteses de uma expressão cultural do Japão. São constituídos de imagens, e por isso, possuem um aspecto cinematográfico, apesar de serem milenares. Não casualmente, o próprio mestre do cinema russo, Sergei Eisenstein os incorporou às suas teorias sobre montagem, sugerindo combinações de seus versos como inspiração para a organização dos planos filmados. Outra base do haikai é a observação do mundo, o que faz do poeta ser igualmente um pensador da vida e um filósofo.
"Para sempre uma mulher" faz de Fumiko uma protagonista de muita força dramática e de uma personalidade única, em especial para o seu tempo em que as mulheres ainda eram vistas como importantes apenas para as funções domésticas. Claro que a Segunda Guerra Mundial modificou isso e Tanaka teve a sensibilidade de registrar essa crucial transformação social. Quero terminar essas minhas reflexões explanando o quanto me impressionou o olhar de Yumeji Tsukioka como Fumiko. Ele parecia dizer sempre algo a mais, como se a atriz tirasse do fundo da alma um sentimento indescritível em palavras, mas que pode ser perfeitamente sentido por nós. É um trabalho especial, de um requinte dramático incomensurável. Uma forma de beleza que está para além das palavras, das imagens, mas reconhecíveis em outras instâncias do ser.
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