Texto de Marco Fialho
O cinema alemão é sempre surpreendente, capaz de revelar obras diferenciadas e inusitadas. É o caso de "A Camareira", segundo longa do diretor Ingo Haeb. Por meio de uma personagem, a camareira Lynn, o diretor lança imagens que por si esboçam um viés no mínimo curioso sobre a sociedade alemã do início do século XXI, em especial a relação entre o mundo do trabalho e o mundo íntimo. Esse é um típico drama cômico, capaz de revelar um mundo que caminha a passos largos para a impessoalidade e dominado pelo asséptico, e Ingo Haeb pode ser visto como um cineasta a questionar um determinado status quo que tende a uma crescente indiferença frente ao humano.
Desde a primeira cena de "A camareira", o que vemos é a fascinante personagem Lynn tentando entender o mundo com seu espírito curioso e sistematicamente se assustando com ele. A direção de Ingo Haeb é de um raro primor na composição dos planos, a maioria deles fixos ou com delicados movimentos de câmera perfeitamente calculados. Pode-se dizer que Ingo Haeb é um diretor atento à mise-en-scène, que gosta de pensá-la com uma atenção especial. A maior mostra disso é como os atores se movimentam em cena, com marcações muito evidentes e precisas. Tudo que está em cena é de uma intencionalidade impressionante. Não há rigorosamente um vaso com plantas colocado a esmo, nem há um único objeto casual em nosso ângulo de visão, nada é gratuito e isso agrega um prazer a mais para nós espectadores. Os atores se movimentam de maneira sempre a salientar um close ou a chamar a atenção para si, e a câmera está a postos para cintilar a riqueza de uma significante profundidade de campo. Parece haver um diálogo permanente entre ambiente e personagem. O uso da dimensionalidade do espaço aqui é ambicionada e posta em execução com maestria, servindo sempre para sublinhar um novo traço da personalidade de Lynn ou para expor um importante detalhe do ambiente ou até para vislumbrar duas ações concomitantes.
Nota-se ainda na narrativa de Ingo Haeb, uma ideia de arquitetura cinematográfica na maneira de pensar as cenas e planos. Ele mostra o universo de Lynn sem jamais dar explicações ou julgamentos, apenas nos nutre de informações, deixando as interpretações a nosso bel-prazer. A cada cena, é como se Ingo estivesse dando passos para melhor conhecer Lynn. Ingo é um voyeur observando uma voyeur, e por tabela, nos transforma igualmente em voyeurs. As cenas de Lynn escondida debaixo da cama, onde vislumbramos ângulos incomuns e conversas que ouvimos em off, são uma aula de cinema de tão bem filmadas que são. Há sempre um humor contido, represado nos personagens e ações, mas que explodem em nós com muita força, como na cena em que Lynn está na banheira de casa emulando cenas de BDSM (abreviação de Bondage, dominação, submissão e sado-masoquismo), que presenciou horas antes no hotel.
"A camareira" não seria possível sem a interpretação intensa de Vicky Kriebs, que é especialmente uma atração à parte, de uma meticulosidade à altura da própria personagem Lynn, urdida em um equilíbrio que mescla com maestria secura, timidez e um olhar cativante, uma combinação bem difícil de realizar. Não casualmente, Ingo Haeb decide narrar o filme a partir das consultas de Lynn com um psicólogo (que aliás, jamais sai do extracampo). Aliás, os personagens masculinos quase não aparecem ou são como um vulto em cena, assombrações, meras aparições. Quanto a Lynn, desde as primeiras cenas fica explícita uma dificuldade dela adaptar-se ao mundo vigente, chegando ela a dizer que "esse é um mundo de mentiras". Entretanto Lynn não faz o tipo violento, apenas o esquisito, para o nosso deleite voyeurístico. Ela, com seu detalhismo profissional, limpa não só os quartos de hotel, mas igualmente os pertences dos hóspedes, experimenta suas roupas, dentre outras esquisitices.
Essa ousadia de Lynn descortina muito de seu caráter aventureiro, tão reprimido por um mundo do trabalho que exige dedicação, submissão e correção dos empregados. É interessante observar que a câmera só começa a se movimentar quando Lynn deixa aflorar seus instintos de curiosidade, de querer saber mais sobre a intimidade das pessoas que estão hospedadas no hotel. O hotel em si, não deixa também de ser um não lugar. Ele não é casa das pessoas, ele é algo transitório, um espaço que permite aflorar alguns comportamentos desviantes, e Lynn se coloca à espreita nele na sua busca em aprender mais sobre um mundo oculto que as pessoas não revelam socialmente em público. Vale ainda observar como o uso da câmera baixa passa a ser um elemento a mostrar o mundo sob perspectivas pouco usuais, o que permite a visão de detalhes normalmente escamoteados, ou pelo menos, habitualmente não tão visíveis. Pisões propositais, pormenores de sapatos, papéis secretos e tantos outros objetos jogados no chão ou pelos cantos, que na maioria das vezes não estão no foco nem na vida, nem no cinema. É como descobrir um novo mundo pela mudança de perspectiva.
"A camareira" trata de um mundo estranho e dúbio, que embora se mostre ordenado na superfície, pode soar imprevisível quando adentramos em seus meandros mais profundos e soturnos. Daí o voyeurismo ser um relevante instrumento dessa revelação, desse mundo que muitos preferem deixar oculto. Entretanto, o amor, ou a semente dele, pode brotar até no lodo, na pedra ou quem sabe pode surgir em meio a tantas esquisitices. O voyeurismo de Lynn a leva até a misteriosa Chiara (Lena Lauzemis), o que amplia e aguça o espírito voyeurístico da plateia, pois vale lembrar e frisar, que esse é um filme milimetricamente pensado para o espectador. A câmera se move sempre lentamente, ou para cima, para baixo ou para os lados, mas sempre a provocar no espectador uma expectativa de que ela mostrará sempre um algo a mais. Por isso, "A camareira", pode ser entendido como um estudo sobre a sedução do olhar, que sobretudo não se esquiva à possibilidade do olhar ser também uma provocação, pois o voyeur quer ver, antes de tudo, algo proibido, ou interditado, pelo status quo.
Daí a fotografia de "A camareira" ser tão cristalina ao mostrar dois modos nos quais o mundo se apresenta para nós: o da superfície e o do subterrâneo. E somos capazes de observar na imagem, as nuances ambíguas desse universo contraditório. Vemos na superfície uma imagem mais límpida, já no subterrâneo, uma imagem que destaca as sombras e o escuro. Essa correlação de mundos, muito me lembrou o filme "Veludo azul" (guardadas as devidas proporções devido a extrema violência existente nessa obra de Lynch e praticamente ausente em "A camareira"), em especial a construção consciente de dois mundos: um idealizado na superfície, e outro situado no subterrâneo, capaz de revelar comportamentos inusitados.
Um bom filme como "A camareira" ainda pode ser um um exemplo de educação dos sentidos. E o que dizer do quanto esse filme se delicia com os pormenores sonoros, em especial os relacionados ao ambiente. Em alguns momentos, somos levados a assumir a perspectiva de Lynn, e ficamos assim, atentos aos sons que vem do corredor do hotel quando ela está no quarto, ou no som que vem do banheiro quando ela debaixo da cama. Isso sim é explorar o cinema e as suas possibilidades de aguçar os sentidos de quem o assiste. Ingo Haeb mostra o quanto aprendeu direitinho essa lição com o mestre Alfred Hitchcock ao estimular deliberadamente as sensações do público, de saber trabalhar com habilidade o suspense de um filme. Lembrando que suspense para o mestre Hitchcock acontecia quando o público possuía informações que algum personagem não tinha, criando a partir daí uma tensão. Lembrando que a maioria dos diretores trabalha mais com a ideia de surpresa, que é quando o público tem a mesma informação do personagem (o que possibilita, por exemplo, os sustos nos filmes de terror).
"A camareira" deve ser vista como uma valorosa obra cinematográfica por conseguir falar culturalmente da Alemanha sob um viés de uma trabalhadora de um hotel, que está sempre perto de clientes mais abonados que ela, mas cujo distanciamento espacial está determinado pela posição que cada um ocupa na hierarquia social. Arrumar o quarto de uma pessoa não significa se relacionar diretamente com essa pessoa, pois há uma notória divisão econômica entre os personagens, embora essa estratificação exponha uma invisibilidade social de Lynn, o que se choca, no filme, com o seu desejo de felicidade. É perspicaz e extraordinário a maneira com que o diretor Ingo Haeb abrace a ideia de que nós espectadores possamos sentir o mundo pelo viés dessa cativante camareira. Esse é o maior poder do cinema, escolher não só a história que se quer contar, mas principalmente, a perspectiva dela, sem desviar o olhar de qualquer sinal de alteridade. Expor uma narrativa capaz de descortinar o mundo sob uma ótica oblíqua, que nos permita, ao final da sessão, olhar novamente o mundo para não mais ver o mesmo de antes.
Lendo todas críticas desse blog pra aplicar esse conhecimento nos meus próximos projetos! kk
ResponderExcluirNão vi o filme…mas quase vi através do seu olhar! Lindo texto!
ResponderExcluirObrigado pelo comentário. E não perca o filme! 📽️
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