Texto de Marco Fialho
No cinema, abarcar o todo é uma ilusão, é impossível. Jamais conseguiremos apreender tudo o que está posto em um filme. O cinema é sempre uma experiência limitada, tanto ao olhar de quem fez quanto de quem viu, um recorte sempre parcial, na maioria das vezes, apaixonado, que involuntariamente fazemos.
O cinema não pode ser visto por um prisma absoluto, a crítica também não, nem as mais elogiosas ou as mais detratoras. Essa perspectiva cabe igualmente ao ramo da pesquisa sobre ele. A partir de um filme podemos ter tantos pontos de partida que fica até difícil mensurar. Existem análises de historiadores, psicólogos, advogados, pedagogos, sociólogos e tantos outros estudiosos. Mas existe também pesquisadores como Mariza Gualano, especialista em pinçar frases de filmes e compila-las em um novo contexto temático.
E lá se vão muitos anos em que Mariza Gualano se dedica a esse trabalho. São muitos e variados livros de frases que a autora já publicou. O mais antigo que me recordo é "Ouvir estrelas", que adquiri há alguns anos em um sebo. Ainda nem imaginava que um dia eu conheceria a doce pessoa por trás daquele livro de frases tão interessantes, que vamos lendo uma atrás da outra, como em compulsão, a mesma que é assistir a um filme atrás do outro.
Acredito que dentre os amantes do cinema, cada um expressa sua cinefilia de um jeito e esse foi o de Gualano, o de observar e pesquisar frases que ela julgava fundamentais nos filmes. Fiquei a pensar se não eram as frases que a escolhia, nesse movimento quase espírita que o cinema tão bem encarna. Mariza é realmente uma expert no assunto. Já levou suas pesquisas para a gastronomia (Royale com Queijo), para o sexo no cinema (Quanto mais Quentes Melhor), para as cartas no cinema (Mensagens para Você). Imagina, nem o mestre do cinema onírico, o nosso Federico Fellini escapou dos olhares perspicazes de Gualano para as frases e diálogos, o que pode ser conferido no livro "Para Fellini, com Amor".
FALTAVA O CINEMA BRASILEIRO
Agora, o novo alvo de Gualano é o nosso cinema, livro que ela preciosamente chamou de "Pérolas Brasileiras: almanaque das melhores frases e diálogos do cinema nacional", que ajunta um material riquíssimo sobre o pensamento que há na produção cinematográfica realizada no Brasil. Gualano divide o seu livro por temas e assim vamos às vezes rememorando e em outras conhecendo frases de filmes que não vimos, mas ficamos logo fissurados para assistir.
Quanto mais avançamos na leitura de "Pérolas Brasileiras", vamos reconhecendo a própria riqueza do nosso cinema, como os realizadores vislumbraram um país em determinada época, como o viam e o quanto também o reinventaram pelo cinema. O livro permite que detectemos um modo de ver o Brasil, o muito da desesperança histórica, e o permanente humor sarcástico dos cineastas como resposta ao absurdo provocado pelo abismo da desigualdade social orquestrada por uma elite tacanha e cruel.
O verbete "cinema" traz muitos desses exemplos citados acima. Frases como "Cinema é um troço escuro que você fica lá dentro vendo a vida dos outros em vez de cuidar da sua e perde duas horas de vida" (Selton Mello em "O filme da minha vida" (2017), dirigido por ele mesmo (p. 73). Ou ainda a provocadora frase de Louise Cardoso em "Leila Diniz" (1987), de Luiz Carlos Lacerda: "Esses caras do Cinema Novo são uns chatos. Dão uma porrada de entrevista para explicar o filme. Aí a gente vai ver, não tem porra nenhuma a ver com o que eles disseram." (p. 67)
Mas pegue um verbete aleatório, como o da "morte". Lá tem frases como "Talvez seja melhor morrer do que perder a vida", dita por Caio Blat como Frei Tito em "Batismo de sangue" (2007), de Helvécio Ratton. Ou a bela "Acho triste morrer porque não vou ver mais a Avenida Rio Branco", dita pelo personagem de Marco Nanini em "Suprema felicidade" (2010), de Arnaldo Jabour.
No livro de Gualano, as frases vão dizendo sobre o país e os cineastas sobre o cinema do país. "Pérolas Brasileiras" nos permite observar a complexidade do quanto o nosso cinema pensa o país em sua diversidade, mas também nas diferentes épocas em que os filmes foram produzidos. Frases de filmes mais comerciais são misturados com outros mais autorais, as diferenças estão ali às claras, como cada cineasta abordou determinado tema em sua época.
Dá para observar também que o nosso cinema tem frasistas proeminentes. Talvez o mais profícuo seja Domingos Oliveira, apontado por muitos como o Woody Allen brasileiro, tal a facilidade que tinha de formular frases de efeito. E algumas são realmente lapidares, como "A felicidade é um tributo à solidão", em "Feminices" (2004) (p.141) ou "quando eu descobri que não podia viver duas paixões ao mesmo tempo, quase me matei", de Aconteceu na quarta-feira (2019) (p. 239).
Mas esse é um livro onde as camadas podem ser muitas. Você pode ler essas frases de muitas maneiras. Nelas, você pode identificar problemáticas brasileiras antigas, como o machismo, a violência contra a mulher, o irracionalismo generalizado de nossa cultura, do patriarcalismo, a pobreza como eterna raiz dos problemas sociais. Se tem hora que o cinema compartilha ou reforça o pensamento conservador, ele também o denuncia, o expõe com toda a sua potência.
Esse é um livro que muito se pode dizer sobre ele. A sua diversidade temática e cinematográfica é latente, mais do que visível. Você pode lê-lo de uma maneira própria, como por exemplo, escolhendo temas mais sociais ou outros mais etérios, a ordem não importa. Você pode escolher palavras aleatórias e sair lendo. A diversão ou a reflexão é garantida. Cada leitor vai se afinar ou gostar mais de um ou outro verbete. O que eu mais gostei foi o "pobre". Desde a famosa frase de Ariano Suassuna em "Auto da Compadecida" (2000): "A esperteza é a arma dos pobres" (p.261) até a retumbante de "Quem matou Pixote" (1996): "Quem nasceu pra Pixote nunca chega a James Dean" (p. 258), esse verbete fala muito de um cinema que mesmo quando não quer falar das diferenças sociais brasileiras, acaba esbarrando nela, afinal, nosso cinema bebe dessa água, até inconscientemente.
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