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FECHAR OS OLHOS (2023) Dir. Víctor Erice


Texto de Marco Fialho

Víctor Erice talvez seja um dos cineastas de sua geração que menos dirigiu longas. Mas também pudera, os que realizou são valiosos. Antes de "Fechar os olhos", seu mais recente filme, o último trabalho havia sido "O Sol do Marmelo", de 1992, há mais de trinta anos. Nesse interregno, o diretor não ficou no imobilismo, filmou alguns curtas e dividiu direção em trabalhos coletivos, aqueles temáticos em que cada diretor contribui com um curta e a soma deles dá um longa. O azar é todo nosso, apesar que essa paciência pode refletir a qualidade desses quatro poucos longas que vimos em tela nesses quase 60 anos de carreira.  

Recentemente, escrevi sobre "O Sul", obra-prima surpreendente, de 1983 (o filme está disponível na plataforma Filmicca e o link para ler o meu texto é esse: O SUL (1983) Dir. Víctor Erice (cinefialho.blogspot.com). Mas é melhor irmos direto falar de seu último trabalho, pois deve ter sido isso que o atraiu para este texto. Para início de conversa, "Fechar os olhos" é uma obra sobre o cinema, mais precisamente, sobre o poder de encantamento e transformação que o cinema pode acometer a cada um de nós. As camadas com que Erice desenvolve a história são múltiplas, embora ele consiga unificá-las em uma única cena final. A concisão, conscientemente planejada, de "Fechar os olhos" é algo raro de acontecer, e somente um cineasta que domina os meios em plenitude, digo não só os técnicos, mais ainda os intelectuais, isso pode ser possível. Não é só o fazer, mas fundamentalmente, o pensar cinema, a orquestração como um todo, saber a hora de cada nota entrar e sair, dar a entonação precisa, conferir alma no lugar exato que ela evocar, reter o ritmo, pacientemente, para tudo explodir em nós, não na tela.    
O filme trabalha com todos os elementos basilares do cinema: a memória, a afetividade, o registro histórico, a dubiedade e o reflexo. A metalinguagem está igualmente presente em "Fechar os olhos", um filme dentro do filme, um exercício de colocar o cinema no centro do próprio enredo. Discutir o cinema a partir do cinema, de tudo o que ele pode lançar de luz para a humanidade quanto mistério, dúvida, impacto, e sobretudo, existência. Que tal começar o filme com imagens de "O olhar de despedida", realizado por Miguel Garay (o protagonista de "Fechar os olhos"), um escritor e cineasta interrompido, que não finalizou essa sua segunda obra, desde o desaparecimento do ator Julio Arenas? 

Vale mencionar que a cena do filme dentro do filme é repleta de significados. Nela, é dito para o detetive (interpretado pelo ator Julio Arenas) não esquecer da imagem que está numa fotografia, assim como é citado que o nome da propriedade é "Triste-le-roi", ou em português, "O Rei triste", a peça de xadrez mais triste do que as outras no tabuleiro. A fotografia e a peça do Rei serão objetos fundamentais na trama, em especial na relação afetiva entre Julio Arenas e Miguel Garay, afinal, cinema é memória, vida também. O protagonista desse filme, quer tentar cumprir uma última meta: olhar para uma filha que não conviveu. Seu pedido é aparentemente simples, ele quer apenas olhar para ela antes de partir desse mundo. O lugar do olhar aqui como um elemento significante, como uma espécie de simbolismo de afetividade. Um lugar crucial para Erice, pontuar qual o lugar desse olhar para a humanidade.     

Depois do filme dentro do filme, eis que vem a televisão dentro do filme, com seu sensacionalismo e ansiosa por uma história que venda e fature. Se o filme se dedica a tentar entender Julio Arenas, o seu desaparecimento, se está vivo ou morto. Da cena ao fato, e do fato ao personagem, esse é o trajeto que Erice vai desenhando, com um lápis caprichoso, que maciamente imprime um mistério, um suspense crescente de uma beleza cativante. Erice penetra no fato, para desfazê-lo e torna-lo algo simbolicamente profundo. Mergulha o fato no tempo e o desfaz, o transformando em sentimento, significado e emoção.

E que personagem é Max, o cara que domina o mundo da película, esse mundo sensível e em extinção, o antípoda do digital, um homem imerso no passado, numa outra ideia de textura e material, que traz de novo para o nosso mundo a imagem da moviola, esse aparato comum do cinema de 35mm, e que expressa uma outra visão do mundo, mais analógica e consciente do aspecto fantasmagórico do cinema. Ali os vultos surgem vívidos, para desaparecerem logo depois. Mas se há uma máquina capaz de reter os fantasmas, ou pelo menos suas aparições, essa é a moviola. Nela se pode admirar um vulto por horas e horas. O filme ali vai e volta, num prenúncio do que seria o videocassete, com suas pausas, retrocessos e avanços na imagem. A moviola manipula o tempo no cinema, brinca com ele, o bagunça e o arruma, tem o dom de orientar e desorientar, por isso é fascinante.            

Não casualmente, pode-se dizer que fantasmagoria, em "Fechar os olhos", é mais do que personagem, é concepção mesmo. A começar pela fotografia de Valentín Álvarez, que a todo instante está a expressar personagens como fantasmas. É quase assustador, se não fosse puro fascínio. Aos poucos vamos descobrindo esse aspecto fantasmagórico da trama e a fotografia está ali a nos apontar as sombras de cada um, a cor que atua como um véu, a esconder a plenitude. "Fechar os olhos" é o cinema como luz fugidia, revela os fantasmas que cada pessoa carrega, nada mais universal do que constatar isso como espelho necessário que o cinema tão bem traduz. A imagem é o enigma, jamais sabemos o que realmente estamos vendo, assim como Miguel Garay, caminhamos no impreciso, na desconfiança sobre as ações humanas. A complexidade dos indivíduos estão expostas, até onde vão as mentiras, as representações, e como chegamos à verdade? Nesse ponto somos todos Garay a passear insones pelo mundo. Será que somente o mundo fugidio das sombras cinematográficas poderiam revelar algum frisson sobre a existência? 

Cada personagem que entra em cena, traz elementos importantes para esse personagem-fantasma que é Julio Arenas, são ângulos que entregam detalhes, surpresas valiosas, é o tempo que vai se costurando anacronicamente, um tempo que surge sem linearidade, como memória e fragmento. Quando surge Lola, a personagem de Soledad Villamil (belíssima, sedutora e enigmática), ela vislumbra como um fantasma, pelo menos a fotografia sugere fortemente isso, além de um encantamento, afinal, ela foi amante tanto de Arenas quanto de Garay. Ela parece situada em um limbo, um lugar que lembra mais o etéreo do que o terreno. Ela é um vulto vindo do passado, não pertence mais ao presente, sua imagem surge em sépia, tépida, como que ressuscitada, e ainda sedutora o bastante, uma assombração fascinante. Quando ela encara Garay e lhe emana um riso suave, talvez mais uma lembrança do que um sorriso, só resta a ele retribuir e dar uma bicada no whisky para ratificar que o território ali não é o do terreno. O whisky funciona como uma espécie de passaporte. Quem sabe o álcool o ajude a tirar o corpo do chão? De repente, a imagem dela sai de cena, apaga-se, como se a bebida tivesse feito efeito em Garay.

Madrid é um tipo de cidade-fantasma para Garay. Ele tem um tipo de depósito, onde guarda coisas do passado em Madrid. As memórias estão todas ali nesse depositório de coisas-lembranças. É um lugar de detonação, onde Garay guarda a si mesmo. Entulhos, pequenas caixas (sim, essas são fundamentais em qualquer filme sobre memória, sobre revisitar o passado) que despertam sentimentos, capazes de paralisar o fluxo e de abrir outros inimagináveis, que assim como as caixinhas, estavam escondidas na memória com suas teias. É um lugar de assombração, com pouca luz, com baús desbravadores do inconsciente e com um relógio de pulso parado no tempo. Assim, um filho morto ganha luz, em retratos e postais inesperados, e um flipbook que simula a chegada do trem em Ciotat, primeira imagem pública e fantasmagórica do cinema com os irmãos Lumière. As imagens do flipbook em movimento precedem a de Garay dormindo no trem, que aparece em fusão. Serão sonhos em pedaços de papéis e sonhos? São pequenas preciosidades de 'Fechar os olhos", que mostram sonhos coletivos e individuais se misturando nas estações que o cinema criou para todos e que Erice resgata com o coração na mão para a sua trama.

O sonho de coletividade está presente ainda na comunidade que Garay mora à beira-mar, em um terreno que deixam eles morar, mas que pode ser vendido a qualquer momento. Viver em um trailer velho e improvisado talvez diga algo sobre como somos mais provisórios, uma breve passagem pelo tempo e que chamamos de vida. A discussão sobre nomes, que lá no filme de abertura de Garay esteve presente, retorna no acampamento. O jovem casal, cuja mulher está grávida discute acerca de qual nome colocar no rebento. Nomes são fluidos, não são escolhidos pelos pais, mas sim pelos percalços da vida, tem os apelidos que vão desenhar algo diferente do previsto inicialmente. Erice mais uma vez está a pontuar sobre o controle ou descontrole sobre a vida. São detalhes, mas são expressivos. Mais uma peça na engrenagem fílmica do diretor sobre a brevidade do tempo. 

Mas o grande encontro de "Fechar os olhos" é o do diretor Garay com o seu ator desaparecido, Julio Arenas. Os fantasmas estão mais uma vez em cena, pois o que se vê é uma imagem desfocada daquele Arenas. O passado não existe mais, nem de certa maneira o próprio Arenas. Víctor Erice então revela de vez a fluidez do mundo. A vida em sua imprecisão, com sua régua desigual e imprevisível. Mas no meio de tudo tem o cinema, essa entidade fantasmagórica que ronda a vida humana na Terra há mais de 100 anos. Se Erice iniciou seu filme com um filme, porque não completar o ciclo da mesma maneira? Garay exibe a parte final do filme "O olhar de despedida", afinal, ele só tinha a primeira e a última sequência filmada. O cinema como uma peça de um quebra-cabeça imaginário, como mais um truque barato do prestidigitador Méliès. A ilusão da imagem de um trem fantasma atravessando eternamente a nossa plataforma cinematográfica, irrompendo a magia que mesmo que fundada na mentira, é a que encanta o mundo e o desperta para a vida. Erice emula o cinema e o olhar que nos conecta com nossa interioridade. É só fechar os olhos e sentir. Víctor Erice realiza uma das grandes obras-primas do cinema.  

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