Texto de Marco Fialho
"Os colonos", de Felipe Gálvez, antes de tudo, realiza uma excelente síntese sobre o processo exploratório ocorrido na América do Sul, mesmo que o filme seja praticamente todo passado no Chile. Não à toa vem sendo associado aos filmes de faroestes norte-americanos, por se utilizar de conhecidos planos do gênero, como os grandes planos gerais, que abarcam o espaço em sua amplitude, embalados por uma música épica e impactante de Harry Allouche, também muito inspirada nas trilhas dos filmes de faroeste, que acompanha firme essa história dura, importante de ser contada e recontada infinitas vezes.
Na história, três personagens são contratados por um grande proprietário de terra local para abrir caminho para o mar: Alexander MacLennan (Mark Stanley), um soldado travestido de tenente; Bill (Benjamin Westfall), um mercenário norte-americano; e Segundo (Camilo Arancibia), um mestiço bom de tiro, que também serve de guia para a expedição. Segundo é o grande personagem deste filme, será por meio dele, que as principais discussões surgirão durante o desenvolvimento da trama. O diretor Gálvez, se utiliza dele para introduzir o tema do extermínio dos povos originários do Chile, em nome de uma riqueza econômica de um único e poderoso homem da Terra do Fogo, José Menéndez (Alfredo Castro).
Como já disse, o que está por trás dessa saga é o extermínio dos povos originários que habitavam há séculos o território que depois viria a ser o Chile. Gálvez divide o seu filme em algumas partes, como "O rei do ouro branco", O mestiço" e "O porco vermelho". A verdade é que a cada novo capítulo vamos tendo contato com o genocídio praticado pelo ganancioso homem branco, cuja presença de Menéndez é significativa como elemento responsável pelo extermínio indígena no Chile. Aos poucos, vamos descobrindo que a grande finalidade da expedição é realmente massacrar os povos que eles pejorativamente chamam de índios, e às vezes até de animais selvagens.
"Os colonos" ainda pode ser compreendido como um filme que retrata a jornada de autodescoberta de Segundo, que a princípio, se mostra um indígena bem catequisado e até relativamente conformado com a ideia de superioridade da civilização europeia e branca. Entretanto, a sua ficha vai caindo no percurso, quando vê o ódio de Bill, o pistoleiro norte-americano, que não suporta os selvagens "índios". Tem uma cena bem simbólica, em que Segundo precisa atirar em alguns indígenas, mas não o faz, talvez por algum resquício de irmandade que ainda lhe resta. Ao invés disso, mira sua arma para Bill. Mesmo que não puxe o gatilho para atingi-lo, fica evidente que o seu desejo de mata-lo está ali presente e bem vivo. Segundo ainda é humilhado pelo falso tenente em alguns momentos, sendo inclusive obrigado a transar com uma indígena capturada em um confronto.
A masculinidade estéril e egocêntrica é também questionada em "Os colonos". Quando os três viajantes cruzam com uma tropa de soldados, os desafios de superioridade surgem e jogos como queda-de-braço, tiro ao alvo e lutas de boxer são praticados à exaustão, sem nenhum objetivo aparente, a não ser para reafirmar a masculinidade dos personagens.
Entretanto, a grande virada de "Os colonos" ocorre quando Segundo conhece Rosa ou Kiepja (Mishell Guana), que realiza trabalhos forçados e obrigada a se deitar com toda a tropa de um grupo paramilitar, comandado pelo coronel Martin (Sam Spruell), um assassino despudorado. Situações bizarras acontecem, como um estupro e um assassinato. Rosa convida Segundo a uma fuga e esse fato será responsável por ressignificar a vida de ambos. O filme se passa no intervalo entre 1901 e 1908, mas essa temporalidade é o bastante para que a história de séculos do Chile seja passada a limpo e posta em revisão.
"Os colonos" põe em confronto basicamente três grupos sociais, cada qual com seus interesses: o poder local (um tipo de caudilho), o poder central na capital e a população de indígenas e mestiços. Incrível como o diretor Felipe Gálvez elabora com habilidade uma síntese da história social chilena. O filme discute o massacre de centenas de indígenas, que oficialmente se afirma ser de 100 mortos por envenenamento, mas Segundo, que presenciou o massacre, afirma ser mais de 300 pessoas, o que fez com que Alexander entrasse para a história como "o porco vermelho".
Na parte final de "Os colonos" temos a figura de Vicuña, um representante do governo central, que vem negociar uma trégua entre as duas partes, tentar conter a violência desmedida de Mendérez e as defesas possíveis realizadas pelo povo Ona. Rosa e Segundo, nessa altura vivem isolados, distantes da política belicista tanto do governo quanto do caudilho. A cooptação é visível e câmeras de cinema são trazidas para a criação de uma imagem conciliadora do casal, ao mostrar ambos, domesticados, espetacularizados bebendo chá inglês. Porém, existirá mesmo essa possibilidade de apaziguamento, depois de tanto extermínio? Gálvez deixa no ar a pergunta feita por Vicuña a Rosa, quando esta se nega a beber o simbólico chá inglês: "você quer ou não fazer parte dessa nação?" A resposta fica ecoando pela plateia, afinal, essa pergunta deveria ser refeita, só que agora por Rosa: "nós indígenas, já fizemos ou faremos parte algum dia, dessa nação?"
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