Texto de Marco Fialho
O novo filme do cineasta Win Wenders, "Perfect days" é uma joia incrustrada de brilhantes, onde se precisa observar os pequenos detalhes, para poder se admirar a beleza que dela emana. Pode-se dizer que esta é uma obra sobre os encantos do cotidiano, de como o inesperado habita na mais aparente repetição diária, até mesmo quando esta é obstinada, caso de Hirayama, interpretado com muita sensibilidade e delicadeza pelo ator japonês Koji Yakusho.
"Perfect days" foi indicado ao Oscar na categoria internacional, como representante japonês, afastando "Monsters", de Kore-eda, um dos grandes filmes do ano da briga pela estatueta. Aliás, é bom dizer que esse é um filme japonês do cineasta alemão Win Wenders, conhecido admirador dessa cinematografia e fã declarado de Yosujiro Ozu, diretor que inclusive, Wenders tem um filme inteiramente inspirado por ele, chamado "Tokio Ga" (1985), em que o diretor alemão viaja para Tóquio em busca de um lugar que não existe mais: a Tóquio retratada por Ozu em seus filmes. De certa maneira, "Perfect days" não deixa de ser um prolongamento de "Tokio Ga", por buscar entender a complexa Tóquio do século XXI, embora, agora, com mais paciência, persistência e explorando pormenores guardados nos pequenos atos do cotidiano.
O protagonista de "Perfect days" é Hirayama, um homem de meia-idade a executar uma tarefa simples: limpar alguns banheiros públicos nas ruas de Tóquio. O filme fala da dignidade desse ofício, que permite às pessoas se aliviarem de seus apertos fisiológicos em ambientes públicos. Mas "Perfect days" vai além dessa construção narrativa e elabora um profundo pensamento sobre o fazer cotidiano, e nada mais adequado e propício para este fim do que centrar a trama em um cidadão japonês para se abordar o tema, já que é conhecida a tendência dessa cultura milenar em cultivar hábitos rotineiros e se ater a eles com uma precisão única.
Para dar conta dessa missão, Wenders dedica o protagonismo de seu filme inteiramente a Hirayama. A câmera parece enamorada por ele e observa pacientemente os caminhos de seu olhar para o mundo. Os olhos de Hirayama são fundamentais para "Perfect days", e o maravilhamento que sente no exercício de sua rotina, torna-se também o nosso, tamanha a dedicação e capricho pelos quais ele se aplica ao seu ofício. Há uma beleza nesse ritual tanto no trato doméstico quanto no próprio trabalho, ou até mesmo em seus momentos de refeição nos mesmos restaurantes de sempre. É o tempo sendo digerido com toda a paciência possível, sendo vivenciado em sua plenitude, afinal, o cinema é a arte do tempo, como já disse certa vez um grande cineasta russo.
Porém, não é só a mesma rotina que caracteriza as ações de Hirayama. O que se destaca ainda é a leveza e a delicadeza, o esmero com o qual executa todas as suas tarefas diárias, desde as domésticas até como ele limpa meticulosamente todos os banheiros, cuidando tanto do aspecto sanitário quanto da organização do ambiente, sem falar quase nada, apenas saboreando cada pormenor de sua profissão.
O fascínio pelo cotidiano se amplia e ganha outra dimensão nos sonhos de Hirayama, quando as vivências ganham uma textura mais lúdica nas imagens. É como se Wenders conseguisse invadir os sonhos do seu protagonista e nos proporcionasse a partir daí uma série de komorebi (palavra japonesa para o brilhantar de luz e sombras que é criado por folhas a esvoaçar ao vento, a cada instante ele revela imagens e movimentos únicos, conferir na imagem abaixo). Essa ideia do komorebi é central para uma compreensão mais complexa do filme, pois assim é o cotidiano, segundo a observação de Wenders, uma eterna repetição que jamais será igual, por mais que a disciplina nos leve as mesmas ações, os resultados dela não serão iguais.
É assim com Hirayama, um esforço para se ter uma rotina, que sempre revela nuances distintivas. O maior exemplo disso são as músicas que toca em seu trajeto diário no carro, ele escolhe sempre uma fita cassete diferente para tocar. Essa é a maneira que Wenders encontrou para rechear organicamente seu filme com música, em especial a norte-americana, com Velvet Underground, The Animals, The Kinks, entre outras. Reparem como tudo em seu caminho constantemente muda, por mais que os lugares se repitam. Até a torre muda de cor e de ângulo em diversas tomadas, que variam de acordo com o horário e do tempo do dia. É bom lembrar, que Win Wenders é um especialista em filmar road movies em sua carreira, e por isso sabemos o quanto o caminho pode ser transformador, dinâmico e como esse processo se torna o motor de um mundo sempre em movimento, por mais que o percurso seja realizado por bicicleta, motocicleta ou carro.
E quando a sua rotina é alterada pela chegada de uma outra pessoa? É o que acontece quando a sobrinha de Hirayama chega fugida em sua casa. Todos os movimentos corporais dele se modificam, até o ato de molhar as plantinhas de estimação muda. Wenders, assim vai mexendo no dia a dia do protagonista, o redimensionando dentro de pequenas alterações que ocorrem em sua vida. E o que assistimos no final das contas é a alma de um personagem, o fulgor e o brilho dela sendo emanada aos nossos olhos pelo cinema de Wenders.
E a rotina dos livros de Hirayama? Por mais que esse seja um hábito corriqueiro, uma pratica antes de dormir, os títulos vão mudando, as páginas vão igualmente se virando, revelando novas facetas da mesma história. E tem ainda o mesmo banco da praça, que traz sempre novas perspectivas e os tradicionais e únicos komorebi. As fotos registram momentos que podem até parecer serem iguais, mas Wenders mostra que sempre tem um detalhe diferente. Esse é o algo mágico que o diretor busca nessa narrativa, um encanto que só as nuances de cada dia permite alcançar.
Mas penetrar no cotidiano é saber como conviver com as diferenças, mesmo que seja para reafirmar as distâncias, como no caso da relação dele com a irmã, uma reconciliação sempre é possível sim e um abraço afetuoso pode reconectar laços antes perdidos, embora sabedor da importância de manter cada qual em seu quadrado. É um afeto possível, que os japoneses, argutos como são, lidam até com facilidade.
Em seus detalhes e sutilezas, "Perfect days" pode ser compreendido como um filme transformador, que na aparência parece ser simples, mas que na sua falsa letargia está a fervilhar como um intestino que não para nunca, que está ali sempre a digerir qualquer pedaço de comida ou líquido que por ali passa. E hoje sabemos que o bom trato intestinal é derivado da quantidade certa de alimentos, nem muito nem pouco, mas constante. É o viver como um aprendizado igualmente constante. Mas não tente, por isso, achar que existe nisso tudo uma fórmula mágica. É o mesmo de se perseguir uma sombra e tentar capturá-la ou mesmo atingi-la de alguma forma. Inclusive, a cena das sombras é uma das mais interessantes de "Perfect days". E a maior prova dessas transformações diárias são as vividas pelo próprio Hirayama, quando ao volante do seu carro, ouvindo Felling Good, experimenta a beleza de um pôr-do-sol, misturando riso e choro de uma só vez. É a vida chegando com intensidade para dizer suas palavras mais doces e amargas em uma única frase. O cotidiano com Hirayama é a vida em estado bruto, além de ser uma arte.
Comentários sensíveis e observadores
ResponderExcluirObrigado, Ceci!
ExcluirComo sempre perfeita a tua escrita. Tão sensível quanto o filme.
ResponderExcluirRosemary Timpone.
Adorei sua crítica. Me estimulou a ver o filme. Obrigada
ResponderExcluirObrigado querida. Um abraço!
Excluir