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NO MEU LUGAR (2009) Dir. Eduardo Valente


Texto de Marco Fialho

Agora, em 2024, faz quinze anos que Eduardo Valente não dirige um filme. Depois de rever "No meu lugar", de 2009, ficamos a pensar no quanto o cinema perdeu com este fato. Evidente que Valente continua fazendo cinema de muitas outras formas, que continuam e fortalecem o cinema como linguagem e mercado. Mas isso são para outras conversas e oportunidades. Portanto, vamos voltar à discussão do filme, que é nosso objetivo maior aqui.      

O filme propõe uma construção complexa de difícil realização, um dispositivo que permite acompanhar personagens a partir de um acontecimento fatal, que serve como ponto de encontro entre três famílias cariocas em tempos diferentes (embora não tão distantes temporalmente), sem revelações didáticas ou clara delimitação do tempo de cada história. Assim, passado, presente e futuro são expostos em uma única narrativa que recorta o tempo não aleatoriamente, mas com um propósito de refletir elementos do passado e futuro que envolvem um único fato decisivo e detonador de mudanças radicais para os envolvidos. 

Valente foge habilmente de transformar o seu filme em mais um "favela movie" ao propor reflexões mais amplas sobre as três famílias que alinham a narrativa, que aborda distanciamentos temporais e espaciais. Em uma cena, um casal de classe média, Elisa e o atual companheiro avistam da janela da casa uma favela e aproveitam para fazer um comentário negativo sobre ela. Os distanciamentos são muitos e a imagem não deixa dúvidas sobre isso. "No meu lugar" fala desses lugares que coexistem entre si, embora conversem apenas pelo mundo do trabalho, que também ratifica as diferenças sociais entre os personagens. Cada qual em seu lugar, jamais como diálogo, apenas como diferença. Mas o filme mostra como cada um desses núcleos familiares vivem e mostra esses modos de estar no mundo e isso faz muita diferença para o espectador, poder visualizar a história também em seu contexto social.  

"No meu lugar" lentamente vai misturando as histórias e temporalidades dos personagens, em um exercício vigoroso de montagem (Quito Ribeiro), de maneira que aos poucos vamos tendo informações que permitem compreender o todo. É um filme de características excêntricas, pois há um fato que a partir dele as histórias serão expandidas. Valente lança um fato crucial, violento, para dele realizar irradiações, enervações que tensionam a vida das pessoas envolvidas. Como discutir uma sociedade tentando dar conta de suas tensões sem cair no banal, corriqueiro e em julgamentos superficiais? Valente subtrai, sem eliminar por completo doses de emoção, senão "No meu lugar" soaria frio, distante, e quem sabe até vazio. Há um visível controle do aparato emocional, para que se possa extrair uma reflexão que contemple a vida dessas pessoas, portanto, mostrar o ambiente familiar é crucial para que haja um espectro maior da grave questão social do Rio de Janeiro.

O passado em "No meu lugar" está como algo para se pensar o cotidiano do personagem Roberto (Rafael Sil), que mora na favela e trabalha como entregador em um pequeno supermercado, ambos, lar e trabalho, no bairro de Laranjeiras. Qual o contato que Roberto trava com o mundo? Para além de sua vida social, com familiares e amigos, será no trabalho que vai conhecer Sandra (Luciana Bezerra), empregada na casa do casal Guilherme e Elisa (Dedina Bernardelli). Essa construção social entrega as contradições entre dois territórios que só se delineiam pela exploração do trabalho, embora esta esteja, ao máximo, escamoteada do processo. A câmera de "No meu lugar" dá luz ao cotidiano de Roberto, que vive entre o trabalho, a vida em família, diversões, amigos e uma namorada. Talvez seja uma rotina parecida com tantas outras pessoas que moram numa favela carioca, se equilibrando entre as dificuldades econômicas e uma vida social de diversões, mas que quando enxerga uma oportunidade para melhorar de vida se arrisca. para claro, se dar mal. As contradições estão ali, prontas para serem desveladas, e uma fagulha pode acender brutalmente esse pavio. O filme retrabalha tudo isso, dentro de um realismo social, sem esquecer aspectos subjetivos dos personagens, suas motivações e sonhos. A felicidade e a tragédia estão tão próximas, embora os personagens não enxerguem isso, pois eles apenas vivem a suas vidas, sem pensar profundamente no contexto social da cidade na qual estão inseridos.   

Há na trama, um personagem primordial para retratar o Rio de Janeiro, seja qual for o território que se aborde: o do policial (Marcio Vito), representante do poder público, e muitas vezes, o elemento interposto entre o cidadão de classe média e o da favela. O que na teoria pode "resolver" os conflitos momentâneos. O filme fala um pouco do despreparo que quem mora no Rio conhece bem, de um profissional que anda armado e pode decidir desfavoravelmente em situações nas quais tudo está por um triz e o seu mau treinamento pode decidir pela vida ou morte de várias pessoas. Mas Valente mostra como decisões equivocadas podem acarretar a infelicidade desses profissionais que também são humanos, erram e precisam lidar com o peso de sua consciência. O filme começa em um close desse personagem, que daqui a poucos instantes decidirá quem continua a viver e quem vai morrer. A câmera, na hora fatal, não expõe o fato, não entra no recinto da morte, talvez esteja posicionada como deveria estar o policial, do lado de fora, aguardando por reforços para se abrir uma negociação mais razoável para resolver o conflito, e assim, quem sabe, poupar vidas. 

A casa na qual ocorreu o assassinato, pode ser vista como um dos personagens, pois nela está a chave da trama, o passado, o presente, mas não o futuro de nenhum personagem. Há nesse personagem, um quê de fantasmagórico, nele temos elementos de aparições e marcas sinistras de um passado recente. Tal como os filmes clássicos de terror, personagens chegam na casa e o passado está ali pronto para dar sinais de vida, está à espreita, assim como os seus fantasmas. A família de Guilherme retorna, mas agora Elisa precisa resolver questões práticas, para quem sabe se desfazer da casa. Ela empacota coisas, esvazia a casa, porém na sua chegada há lençóis cobrindo os móveis da sala e dos quartos, tudo soa bem sinistro. Com ela, chega o atual companheiro e os dois filhos. Valente filma tudo como um filme de terror soft, disfarça ao máximo, pois nem tudo está às claras mesmo. Um desenho feito pelo filho mais novo em volta de um buraco de bala na parede soa como uma filigrana importante. Como cada um lida com essas tragédias que parecem sempre serem tão inesperadas? E as crianças, como superam essas perdas aparentemente tão casuais? A vida está sempre por um fio, apesar de estarmos alienados dos processos diários de exclusão e conflito da cidade que vivemos. Tudo parece longe, embora esteja bem evidente sob as nossas vistas.    

"No meu lugar" explora muitas camadas desse drama, dentre tantas e infinitas que há nesse universo tão complexo que é viver em uma cidade fraturada, onde armas de fogo estão mais perto do que imaginamos. As favelas estão aí, sendo violentadas até hoje, com tiroteios, políticas públicas e privadas de extermínio da população majoritariamente preta que vive nesse território. O filme de Valente esbarra em tudo isso, resgata uma luta de classes que acontece diariamente na cidade do Rio de Janeiro, que produz uma violência desmedida por falta de uma política pública consequente. "No meu lugar" traça um mosaico temporal e social de um mundo onde a roda gira e não poupa ninguém. Os fantasmas dessa história ficam perambulando pelas esquinas da nossa consciência, avisando que a discussão e o diálogo são os caminhos para a construção de novas relações sociais. O filme mostra que a nossa vida privada e social não estão tão apartadas como imaginamos corriqueiramente.             

Comentários

  1. Excelente texto. Também chama a atenção a questão de como se formam as relações no lugar de cada núcleo das histórias. Excelente filme.

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    Respostas
    1. Exatamente, ótima observação. Cada núcleo da história traz nuances de como cada realidade, uma bem diferente da outra, afeta a percepção de cada personagem diante de um mundo que parece ser o mesmo para todos, mas decididamente não o é, e o filme trabalha muito bem com essas camadas com a devida sutileza.

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