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A DOCE VIDA - La Dolce Vita (1960) - Direção de Federico Fellini

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A monstruosidade da vida moderna

Por Marco Fialho

“A doce vida” é aquele típico filme onde a denominação obra-prima se encaixa com exatidão. Sua ousadia narrativa ainda hoje surpreende. Uma obra que consegue definir de uma só vez um país e o conceito artístico de seu tempo. Mais do que um filme de autor, “A doce vida” é um filme de seu autor, que demarca seu território e sua originalidade perante a qualquer outro diretor de cinema, um diretor a construir um universo, um mundo próprio, o mondo Fellini.    

Uma das sínteses mais instigantes sobre “A doce vida” é a do crítico baiano Walter da Silveira que equipara o brilhantismo cinematográfico do filme com a apreciação da arte dos afrescos nas artes visuais: “Diferentemente do cinema, na pintura, após a contemplação sintética do quadro à distância, é que se passa ao conhecimento analítico de sua composição. Mas, diante dos grandes afrescos, esse método de ver desaparece. Sua amplitude não permite uma primeira visão total: a existência pictórica resulta de um andamento horizontal ou vertical do olhar sobre os seus limites. As partes precedem ao todo. ” (Fronteiras do Cinema - Walter da Silveira, Edições Tempo Brasileiro, RJ, 1966, p. 46 e 47)
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“A doce vida” possui uma estrutura narrativa desafiadora, em especial para os espectadores do início dos anos 1960. Claro que um ano antes, Godard tinha implodido de vez a narrativa clássica em “Acossado”, mas a perfídia de Fellini não deixa de ter seu encanto ao nos fazer mergulhar na experiência de Marcello (alter ego do diretor) em um turbilhão sem fim e propósito, que só faria sentido quando o analisamos no todo. As partes funcionam como se fossem pílulas que lentamente vão nos entregando um grande mal-estar social e existencial, de uma sociedade envenenada por uma ideia de espetáculo tosco da vida burguesa italiana no pós-guerra.

O filme se passa em Roma, durante sete dias e sete noites, em referência aos sete pecados capitais. Aceitar simplesmente isso é limitar “A doce vida” como um mero jogo de combinações numéricas a ser desvendado. Para muito além dessa analogia, o filme viaja sobre nós, nos impõe sua estrutura de maneira inconteste. Quando percebemos já estamos imersos no universo de Marcello Ribini, o jornalista que faz coberturas para um jornal fascista de festas de artistas, famosos e ricos em geral. A atuação de Marcello Mastroianni no filme é algo até difícil de acometermos uma análise à altura. Ele é nosso guia, nosso ímã, quem não nos deixa tirar o olho da tela. Nem o desfile de várias beldades como Anouk Aimée, Anita Ekberg, Nico, Yvonne Furneaux, Valeria Ciangottini, Magali Noël, Ida Galli, Nadia Gray, conseguem tirar seu brilho. A concorrência é alta, mas Marcello Mastroianni está insuperável e onipresente em “A doce vida”.
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Se o filme “Os boas vidas” versava sobre a Rimini de Fellini, “A doce vida” narra muito de sua experiência em Roma, lembrando que ainda bem jovem ele foi morar na capital da Itália. O filme não tem em si uma história que se desenvolve. Ele está calcado muito mais nas experiências do personagem Marcello Ribini e suas relações com a alta sociedade romana. Marcello é um meio, a forma na qual Fellini adentra em uma Itália que começa a se construir a partir de uma imagem forjada por uma mídia embasada no espetáculo da superficialidade.

As peregrinações de Marcello Ribini pelas festas deixam claro que a ideia de Fellini era abordar o vazio transpirados nesses ambientes luxuosos, o quanto a vida nesses ambientes se esvai incessante e ininterruptamente. O bloco que mais isso se explicita é o da atriz e musa norte-americana Sylvia, deslumbrada pelo exotismo italiano e o ambiente festivo. Fellini a cada nova cena demonstra a vertigem de uma sociedade urbana do Século 20, a hecatombe de um mundo ditado pelas aparências burguesas e ainda bem assentado nos resquícios de uma nobreza decadente, são camadas de tempo que o diretor habilmente cerzi a cada nova cena filmada.
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Um personagem bem importante no fiapo de trama proposta por Fellini é Steiner. Ele tem um papel muito simbólico no filme. Ele é rico, bem-sucedido, mora em uma casa fantástica e tem uma família modelar, com esposa e dois filhos adoráveis. Para Marcello ele é um exemplo a seguir. Na prática, essa vida perfeita não é tão bem azeitada assim. Em um diálogo entre Marcello e Steiner, esse último desabafa sobre esse mundo deveras idealizado: “Às vezes à noite, esse silêncio, essa escuridão, me oprime. Temo a paz acima de tudo. Parece uma aparência que oculta o inferno. Penso o que verão, amanhã, meus filhos. Dizem que o mundo será maravilhoso. Mas como, se basta um telefonema anunciando o fim de tudo. Deveríamos nos libertar de paixões e sentimentos na harmonia da obra de arte realizada. Naquela ordem encantada conseguiríamos nos amar tanto e vivemos soltos. Além dos tempos. Soltos! ”

“A doce vida” é o primeiro filme de Fellini onde a mise-en-scène assume uma faceta originalmente felliniana, onde diversos personagens aparecem e desaparecem da tela dentro de uma atmosfera caótica. Esse approach narrativo, calcado na perturbação sensitiva, conforma o cinema felliniano, onde música climática, câmera inquieta e movimentação dos atores no cenário ditavam uma estética essencialmente felliniana. Em todos os blocos Fellini nos mostra sua visão crítica acerca da sociedade burguesa italiana, a objetificação humana em um mundo sórdido e existencialmente vazio. Não casualmente, Marcello é o cerne do filme. Ele é o elemento destoante, que embora almeja ser, está na esfera do nunca será. Em "A doce vida" as relações se vaporizam, pois os prazeres imediatistas comprazem o homem em um determinado momento, mas não o encerra, deixa nele um imenso buraco na alma, impreenchível, impenetrável e inatingível.
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A cena da sétima noite vislumbra o quanto Fellini tinha o foco na decadência da sociedade romana. A dura realidade do crime de Steiner, racionalmente inexplicável, de um homem rico, aparente realizado e modelo de felicidade, que mata seus filhos assombra a todos. A sociedade não está mais preocupada com as motivações, mas sim com o espetáculo que pode eclodir desse fato inusitado. O absurdo passa a ser a meta social, um fato abominável deve ser superado por algo ainda mais bizarro e assustador. Na mesma noite tudo é possível, o striptease inesperado de uma mulher que até o dia anterior era uma conservadora esposa, as agressões e uma perversidade ao corpo feminino, a bebedeira sem limite, enfim, uma permissividade sem freio, machista e homofóbica, como se todos os filtros estivessem desativados e qualquer arbitrariedade fosse possível naquele momento. A atmosfera caótica é comandada por uma música inventiva de Nino Rota.

Mas como um artista de primeira linha, Fellini consegue terminar sua obra com uma metáfora impressionante. Todos os personagens da sétima noite saem ao amanhecer para fora da casa, que ficava à beira-mar. Lá eles vêm os pescadores retirar do mar um animal monstruoso da água. Inesperadamente Fellini nos oferta uma imensa metáfora, a de um ser monstruoso que surge ali para a perplexidade de todos. O mais curioso é que esse ser monstruoso está morto, mas mantém os olhos abertos, como se os encarasse. Fellini parece dizer que o monstro do fascismo ainda paira no ar, aparentemente morto, porém a espreitar a todos, como uma aberração e sob formas das mais diversas e cotidianas.       

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