MONDO FELLINI
Texto de Marco Fialho
FELLINI E A REALIDADE RECRIADA - ENTRE O LÚDICO
E A IMAGINAÇÃO
“Sentir-me obrigado a ser
absolutamente fiel a uma história real já me tira o prazer de contá-la. ”
Federico Fellini
Fellini está entre um seleto grupo
de diretores que conseguiu criar um mundo cinematográfico à sua imagem e
semelhança. Mais do que conceber um estilo, Fellini concebeu um universo
facilmente reconhecível. Ao vermos uma obra sua logo sabemos identificá-la a
autoria, logo percebermos que estamos pisando no mundo de Fellini, mais
exatamente no Mondo Fellini. Como poucos, ele soube estabelecer as
regras desse mundo de tal forma que logo ganhou um adjetivo próprio:
felliniano. Claro que hoje esse adjetivo se confunde com a própria Itália,
afinal muito desse mondo tem a cara de seu país de origem.
Mas a Itália de Fellini não era
propriamente a Itália, mas sim uma paralela, minuciosamente reconstruída pelo
Deus Fellini. Esse mondo Fellini espelhava àquela Itália real,
entretanto incorporava lá distorções, um quê de grotesco, de tipos
exóticos, exagerados, esbarrando aqui e ali em uma ideia estilosamente barroca,
com mulheres obesas sensualizadas e personagens com modos extravagantes. Esse mondo
tem algo que transita psicanaliticamente entre sonho, delírio ou imaginação.
Nele, a música inconfundível de Nino Rota ajuda a compor um clima que o
sintetiza, com um toque circense, mágico, onde alegria e tristeza se irmanam de
forma comovente e às vezes até espetacular.
O circo antes de ser uma mera
citação ou ilustração em seus filmes, deve ser entendido como parte integrante
de sua concepção fílmica. Não era preciso o filme ter o circo por um motivo
muito simples, o circo está na própria mise-en-scène felliniana, nos corpos, no
humor presente nas cenas, na fantasia do ambiente e sempre no desconcerto da
câmera, esta sim sem a bailar como um trapezista, um mágico ou um palhaço. A
câmera em Fellini era a própria fantasia e a refirmava incessantemente.
Nascido em 1920, Fellini viveu sua
infância e adolescência no período fascista de Benito Mussolini (1922-1945).
Seu mondo retratou tipos populares que navegaram pela época fascista,
que deixou marcas profundas na Itália contemporânea. O cinema de Fellini sempre
esteve atento a criticar e ridicularizar esse universo espalhafatoso,
salientado por um fascínio decadente pelo grotesco.
Mas os filmes de Fellini evocam
sistematicamente a sua Rimini natal. Adentrar em seu mondo é também
passear em reminiscências da infância e adolescência dele nessa piccola
cidade italiana e também demarcar um peculiar provincianismo dos habitantes locais como ponto de partida para refletir sobre o mundo.

FELLINI, O HOMEM DE RIMINI E DE
ROMA: o mais felliniano de todos os seres.
Federico Fellini como bom italiano
que era gostava de falar, inclusive sobre si mesmo. A história dele, tal como de seus filmes, mistura momentos mágicos e banais. Os pais eram a síntese da
família popular italiana. O pai um caixeiro-viajante, vendedor de víveres. Já a mãe era uma dona de casa insatisfeita com as viagens do marido e os constantes
adultérios dele, que aproveitava-se da vida nômade para ficar longe da esposa e
abusar da poligamia. Como o pai trabalhava no ramo alimentício,
Fellini jamais passou perto da fome. Segundo ele a mesa de casa sempre foi
abundante em vários tipos de comida.
Nas obras de Fellini permanentemente
surgiam críticas, algumas ancoradas no mais puro deboche, à igreja católica, à
família e à escola. Esse tripé em nada o agradava. Para ele, as três
instituições estavam ligadas à repressão, fosse ela em relação à liberdade de
expressão (incluindo as manifestações do corpo), opinião e sobretudo sexual.
Fellini narra grandes fantasias eróticas ainda muito criança e da sua dificuldade
de se aproximar efetivamente de uma mulher, inclusive um medo mesmo de não
saber o que fazer perante uma sem
roupa.
A paixão de Fellini pelo cinema
muito se deu porque sua mãe adorava ver filmes. Fellini narra sua lembrança de
como ela chorava, especialmente vendo os filmes da grande referência
feminina dela, a atriz Greta Garbo, na qual nutria um verdadeiro encantamento.
Lembra que desde os dois anos de idade acompanhava a mãe e sempre considerou
o templo-cinema como fosse a própria casa, por se sentir muito à vontade dentro dele.
Apesar do medo que Fellini tinha dos
palhaços na infância, aos cinco anos de idade ele chegou a passar quase um dia
inteiro com uma trupe circense que visitava Rimini. As lembranças desse momento
ficaram marcadas nele para sempre, especialmente a sensação inesperada de tocar
os pelos de uma zebra, o que não deixa de ser uma visão bem felliniana. O
tratamento recebido pelos artistas da trupe foi de tamanha delicadeza e
atenção, que ele quase se esqueceu de voltar para casa ao final do dia.
Fellini amava histórias em
quadrinhos, e por tabela adorava desenhar. Desde bem criança desenvolveu essa
habilidade. Durante as chatas aulas da escola ficava desenhando. Seu maior
talento eram as caricaturas. Ele costumava dizer que passava com boas notas porque
o pai doava muitos produtos alimentícios para os professores, que assim, olhavam as medíocres notas de Fellini com mais benevolência.
Aos dez anos de idade a mãe de Fellini precisou visitar um tio em Roma (a família dela era originalmente de lá) e
Fellini diz que foi paixão à primeira vista pela cidade e prometeu a si mesmo
que moraria ali o mais cedo que conseguisse. “Vim ao mundo quando vi Roma pela
primeira vez”. E assim o fez logo que completou 18 anos de idade. E foi
vendendo desenhos, charges e caricaturas para algumas revistas e jornais
que começou a sobreviver sozinho em Roma.
Quando já morava em Roma e já
namorava Giulietta Masina, a 2ª guerra mundial estava em curso e a pressão para
o recrutamento de soldados para servir nas frentes de batalha era imensa.
Fellini passou por dois momentos tensos envolvendo um possível alistamento, e
os dois muito bizarros. Ele conta que estava dentro do prédio do alistamento
quando começou um bombardeio e uma grande correria. Fellini aproveitou-se da
confusão para correr e fugir do exército. Nesse caso, ironicamente, ele teria
sido salvo da guerra pela própria guerra. A outra oportunidade ocorreu num
momento onde o exército passou a realizar várias blitzs nas ruas, em
busca de pegar jovens em condições de participar da guerra. O risco era
iminente e Fellini evitava sair de casa para não ser surpreendido. Bastou uma
saída, um mínimo descuido, para ficar encalacrado em um cerco policial que
buscava justamente encontrar pessoas para serem recrutadas para lutar no front
para que ele fosse capturado. Para a sua sorte, todos os soldados eram alemães.
Mas novamente o inusitado aconteceu. Quase na hora do caminhão partir com todos
os civis aleatoriamente recrutados, inclusive o próprio Fellini, ele pula do
veículo e abraça um distraído soldado alemão como se o tivesse reconhecido de
algum lugar. O soldado ficou tão atônito ao ser chamado efusivamente de Fritz
por Fellini, que malandramente se passou por um velho amigo do soldadinho. E
foi assim que ele mais uma vez escapou do recrutamento, mesmo tendo corrido o
risco de levar um tiro pelas costas de algum assustado soldado alemão. Pode até
ser que essas duas inusitadas histórias não sejam verdadeiras, mas não podemos
negar o quão engraçado e pitoresco elas são, e poderiam estar presentes
tranquilamente em um dos filmes do diretor.
Todos que acompanham ou conhecem
minimamente a obra de Fellini, sabem do seu apreço por enxertar fragmentos de
sonhos nas histórias que narrava. Mas o que poucos sabem é o quanto o mestre italiano
efetivamente sonhava, e de forma impressionante conseguia lembrar com exatidão
de todos os sonhos. Como comum em seus filmes o erotismo
era uma das facetas oníricas mais frequentes dos sonhos e sempre com
mulheres corpulentas que demonstravam autoridade. Daí podemos calcular o quanto
foi fácil para ele criar um filme como “A Cidade das Mulheres”, onde o tempo
todo o personagem de Marcello Mastroianni vivenciava cenas das mais esdrúxulas
envolvendo as mulheres mais decididas e vingativas. O medo de Fellini das
mulheres, muitas vezes narrado em suas biografias, parece assombrá-lo até a
idade mais madura, e os filmes pelo jeito o ajudavam no exorcismo dos traumas e assombros vividos desde a infância com o sexo feminino. Não
casualmente, as mulheres expressavam nele um sentimento dúbio, um misto de
voluptuosidade e temor.
As inseguranças em relação às mulheres só foram amainadas
no encontro com Giulieta Masina, musa, esposa e companheira de vida.
Não que Fellini fosse o ás da fidelidade, pois sabemos que não era mesmo, mas
precisamos reconhecer que no decorrer da vida essa relação foi um dos
pontos mais altos. Giulietta ajudou Fellini a perder ou amenizar o pavor
pelas mulheres. Essa segurança conquistada as duras penas foi um dos pontos
cruciais para que Fellini pudesse deslanchar na complicada carreira de diretor
de cinema.
Nos dez primeiros anos da
filmografia felliniana, podemos assinalar pelo menos três filmes que dizem
muito sobre as angústias dele como homem e profissional, obras que espiritualmente
são significativas de sua própria trajetória. Trata-se de uma trilogia
realmente especial (“Os boas vidas”, “A doce vida” e “Oito e meio”), onde
Fellini assume sempre um alter ego para pensar as clivagens ocorridas na vida adulta. Em “Os boas vidas” ele aborda o momento incerto de crescimento e
de afirmação profissional, aquele momento onde se precisa tomar a difícil
decisão de sair de uma cidade pequena para tentar viver como jornalista numa
cidade grande. Em “A doce vida” Fellini se aproveita das vivências como
jornalista em Roma para refletir o papel da espetacularização da mídia e da
sociedade romana como um todo. E por último, em “Oito e meio”, ele parte das próprias angústias como diretor de cinema, das cobranças intermináveis pelo sucesso
e da crise de criação para discutir o fenômeno artístico na contemporaneidade.
Estudar essa tríade talvez seja mais importante do que qualquer biografia ou
autobiografia já realizada sobre Fellini. O seu eu mais profundo estava ali no
somatório dessas três obras. Como ele bem gostava de dizer, foi nos filmes onde
se despiu por completo, com desejos e sonhos mais secretos. Assim era
Fellini, um artista capaz de expor as próprias entranhas por meio de filmes.
Como então pensar em Fellini sem lembrar
da forma com que ele criou um estilo, uma escrita própria por meio da
câmera. A câmera em Fellini funciona realmente como uma caneta. Seu dom para o
desenho se transpôs para a forma de manejar a câmera nas cenas, como se com ela
desenhasse não só o que vemos, mas também o que sentimos. Depois de realizar três obras de caráter mais autobiográfico (Os boas vidas, A doce vida e 8
e 1/2) a mise-en-scène felliniana amadureceu e consolidou-se
como estilo. Claro que esse estilo não se encerrava pelo uso da câmera, mas ele
se constituiu em um dos aspectos centrais de uma concepção fílmica mais abrangente, que incorporou outros elementos preciosos como a colaboração da música de Nino Rota; dos diálogos sempre
exagerados e pouco reveladores da trama, que muitos diziam sobre o vazio da
sociedade; e a profusão de personagens sempre a entrar e a sair de cena sem
muita cerimônia. Muitos críticos demoraram a perceber o quanto Fellini, ao seu
modo, atribuiu muito valor a um formalismo, que o método felliniano de se fazer cinema atentava, e muito,
para a criação e recriação da realidade, e que o cuidado dele com a mise-en-scène foi sempre de um detalhismo ao nível do insuportável. Figurino, decórs, câmera, atuações dos
atores e atrizes, fotografia, roteiro, montagem e música sempre transfiguraram uma
acurada percepção de Fellini do mundo no qual queria construir, o seu mondo próprio. Não
casualmente, tudo nele contribuía para construir uma identidade artística intensa, a ponto de termos
que nomeá-la involuntariamente como
felliniana.

OS TIJOLOS DA EDIFICAÇÃO FELLINIANA
- notas sobre algumas influências literárias e cinematográficas.
Comecemos pelo fim cronológico. Em
se tratando de Fellini, o fim pode ser apenas um caminho, um apontamento para
se chegar em novos inícios reconstruídos, delineamentos, rabiscos em busca de
uma forma. Pode parecer estranho, mas será apenas uma opção de método. Os
sonhos também são assim, parecem palpáveis até revelarem-se nuvens e Fellini
era sabedor disso. Será que eles assim os são, apenas nevoeiros passageiros?
Pode ser que sim, mas o que importa é o dado corpóreo que eles trazem, aquele
desenho momentâneo, um modificar constante, um algo de imprecisão calcado
sempre em alguma materialidade. Se o cinema de Fellini é enganador, o seu mondo
também o é, e essa análise estará em conformidade com ele, em um constante
brincar da realidade com o lúdico e o falso.
Mas sim, voltemos ao já enunciado
fim. Em 1993, ano de sua morte e um mês após ter sido agraciado por um Oscar
pelo conjunto da obra, Fellini conversou sobre sua vida, obra e influências com
dois jornalistas italianos (Goffredo Fofi e Gianni Volpi). Essa entrevista
resultou em um livreto espetacular chamado “A arte da visão”. Pode ser
considerada uma de suas últimas impressões sobre o universo e as artes em
geral e onde consegue do alto da maturidade falar de diversos temas que lhe
são muito caros. A grande revelação deste livro está na fala sobre as
maiores influências artísticas. Talvez, a palavra influência seja até pesada demais. Seria
melhor se disséssemos o quanto algumas obras foram importantes do ponto de
vista da estética, do estilo e das narrativas para o estabelecimento e formação
do modus operandi de Fellini como cineasta.
Curioso que quando Fellini aborda os
autores “influenciadores”, ele foge de citar cineastas. O entrevistador fala de
Rossellini e Fellini faz uma curva e desvia para Homero. Parecendo entender
Fellini, a pergunta se encaminha para a literatura e vem então o deslanchar
orgástico do diretor sobre diversos literatos. O que é muito comum quando nos
defrontamos com cineastas possuidores de um universo fílmico bem próprio, serem mais as referências fora do cinema e para esse lugar que Fellini
nos leva, um lugar onde a imaginação é ilimitada, sem
fronteiras, com dimensões imprecisas e embrenhadas pela subjetividade. Antes de
situar Fellini no cinema é preciso situá-lo primordialmente no campo da
cultura, pois é nesse território mais alargado onde sua obra está poderosamente inscrita.
Ao começar a enumerar os autores,
Fellini não detalha onde cada um deles o contagiou nem de que forma. Mas basta
analisar um a um deles para ficar bem evidente. O primeiro citado é
surpreendente, o clássico da literatura infanto-juvenil Pinóquio, escrito por Carlo Collodi. A surpresa
pode não ser tanta se pensarmos o quanto esse livro dialoga incisivamente com
sua obra, nos faz pensar no seu lançar-se à imaginação, de como ela amalgamada
com a realidade consegue extrair algo de mágico, em um jogo subjetivo
libertário, onde só o aprendizado irrefreável importa como situação inerente e
involuntário ao ser humano. Irremediavelmente Fellini estava sempre preocupado
no indivíduo e como ele interage com a sociedade, o ponto de partida e de
chegada sempre foi o indivíduo. O coletivo para Fellini está presente como
elemento de interação, não de explicação. Por isso as obras dele, em especial as
mais maduras, não se caracterizavam como puramente sociológicas, antropológicas
ou históricas (incluindo os filmes de época), apesar de conter algumas
contaminações desse tipo.
A rigor, Fellini foi um cineasta
essencialmente de cunho psicológico (mesmo que não seja no mesmo sentido de
Ingmar Bergman, por exemplo), há que se reconhecer nos personagens traços decisivos,
referenciando aqui as recorrentes cenas de delírios e sonhos evocadas nas
obras, sobretudo uma inclinação junguiana, como o próprio já assumiu, o lado
contraditório e nebuloso no qual trabalha a ideia de artista, da relação entre
sonho, recordação e razão, e quanto tudo isso é caro a nós como indivíduos. Mas
uma vez, a resultante está em um embate impreciso, obscuro e sempre trágico
entre o sujeito e o mundo, entre o indivíduo e o coletivo. Carl Jung exprime
bem o aspecto simbólico desse mecanismo: “uma palavra ou uma imagem é simbólica
quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta
palavra ou esta imagem tem um aspecto ‘inconsciente’ mais amplo, que nunca é
precisamente definido ou inteiramente explicado. E nem podemos ter esperanças
de defini-lo ou explicá-lo. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a
ideias que estão fora do alcance da nossa razão.” (O homem e seus símbolos -
2ª edição, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008, p. 19).
Nesse embate, como esquecer então da
imensa contribuição de Kafka para se analisar os efeitos materiais provocados
nos corpos dentro de uma sociedade onde a experiência humana foi completamente
posta abaixo por uma sucessiva mecanização do mundo do trabalho e de nosso
cotidiano, nos colocando em um labirinto de caminhos insolúveis.
Outro nome a ser mencionado como
importante por Fellini é o de Luigi Pirandello, o famoso dramaturgo italiano,
que tão bem traduziu o mal-estar do homem moderno e a sua difícil tarefa de
lidar e tentar conciliar socialmente com as máscaras interior e exterior,
sempre amparado pelo humor. Um homem que não cabe no mundo que lhe é dado, mas
que contraditoriamente é obrigado a viver nele. E um dos pontos da obra
felliniana é o da cisão do homem numa sociedade burguesa que preza
permanentemente as aparências. Pode-se dizer que Pirandello está sempre a
sombrear a obra do mestre Fellini, como uma referência filosófica norteadora.
Havia um encantamento de Fellini
pela narrativa do escritor Giovanni Verga, autor do clássico “Os Malavoglia” e
um dos precursores do chamado “verismo”, famoso ao retratar a vida dos
camponeses da Sicília, incorporando inclusive seus dialetos à sua escrita.
Fellini mostrou-se muito sensível a como a força arrasadora do progresso
triturou os mais humildes (no campo e na cidade) e as contradições
socio-econômicas estavam implacavelmente presentes nas obras. Se pode ser
dito que Fellini nunca foi um cineasta político, não se tem como negar o quanto
suas obras foram permeadas profundamente por uma visão acurada do social, e
Verga, tem muito peso nessa direção.
Sempre é muito proferido pela
crítica acerca do gosto de Fellini pelo estilo barroco em muitos de seus
filmes. Muito dessa influência veio pelas leituras apaixonadas que fazia do
escritor Tomasso Landolfi, de cunho existencial e muito influenciado pelos
escritores russos como Gogol e Dostoievski, dos quais traduziu várias obras. O
seu gosto pelo fantástico e o grotesco existencial dessas obras tocou Fellini, que era
fascinado pelo estilo e também pela personalidade misteriosa do autor.
O escritor, jornalista e poeta Aldo
Palazzeschi foi outra alma a passear no imaginário felliniano. Sua obra pode
ser caracterizada por uma análise profundamente social, onde o fantástico se
encontra sistematicamente com o humor. Uma de suas obras mais significativas
“Irmãs Materassi” é um retrato ora engraçado ora terno, traços tão bem
incorporados à poética de Fellini.
Mas Fellini também enaltece Carlo
Emilio Gadda, o célebre escritor antifascista. A admiração era tanta que
Fellini não se acanhava ao chamá-lo de Planeta Gadda. Seu romance “Quer
pasticciaccio brutto de via Merulana” (1957) propõe um estudo da sociedade
italiana do final dos anos 1920, a partir de um roubo e um posterior
assassinato em um prédio localizado no Centro de Roma. Pobres e ricos são
retratados no decorrer do enredo e com isso Gadda explora as diferenças entre
as classes, frisando em especial a peculiaridade de cada linguajar. Tudo no
livro se esboça como uma grande confusão, com múltiplos personagens e não há
apenas um único ponto-de-vista, e sim diversos. Essa forma de narrar muito se
aproxima a de Fellini, essa profusão de personagens entrando e saindo de cena
constantemente, como um documentário social da vida de uma cidade.
Será que o que identificamos de tão
original em Fellini vem de outras plagas, de outras narrativas que não são as cinematográficas? A afirmação pode soar e até mesmo conter alguma dose de
exagero, pois não imputar nada ao cinema seria de um absurdo completo, afinal a opção para expressar-se artisticamente sempre foi a do cinema. Fellini foi
um filho direto do neorrealismo, de certo um parentesco em primeiro grau. Foi
roteirista de clássicos dessa tendência cinematográfica, como “Roma, cidade
aberta” e “Paisá”, ambos de Rossellini, obras fundamentais para a existência de
um cinema moderno da Itália, desgarradas das grandes produções realizadas nos
estúdios da Cinecittá. Não à toa, igualmente os primeiros filmes de Fellini possuíram a
marca neorrealista, embora fosse um Fellini vivendo ainda a infância de seu
cinema. Mas deve-se registrar que desde essa infância ele apresentou sempre
elementos para além do neorrealismo, uma dose de lirismo no desenvolvimento dos
personagens, um eclodir de subjetividades que já o lançava paralelamente para
fora daquela estética dominante, um sinal, um rastro de autonomia a perseguir nas obras futuras e que viria a explodir em “A doce vida” (1960). Importante
mencionar que “Noites de Cabíria” (1957) é o desfecho magnífico dessa primeira
fase, onde a ideia do lírico chega a um patamar dramatúrgico elevado muito
devido ao amadurecimento de Giulieta Masina como atriz.
Falar que Fellini é um dos artistas
mais originais e influenciadores do século 20 não é nenhum exagero. Fellini foi
muito mesmo: popular, crítico, engraçado, nostálgico, autorreferente, circense,
emotivo, criativo, lúdico, surreal e vanguardista. Ele representava muitos
mundos, mas todos esses mundos estavam profundamente impregnados de seu mundo, sempre tão próprio. Daí as fantasias dele também parecerem tão nossas.
Como tantos cineastas de seu tempo,
passou pela Segunda Grande Guerra Mundial, e essa experiência o marcou, assim
como a toda uma geração. Fellini fugiu da guerra com valentia, com a força
típica de um artista que só sabia encarar uma luta apenas: a da arte como expressão de diálogo com o mundo. E se
a guerra para a Itália simbolizou uma derrota, para o cinema foi a glória. O cinema
italiano do pós-guerra encarnou e propiciou tudo o que veríamos a seguir. Se
tornou o cinema com mais diretores famosos da Europa e demarcou a cisão que estava em
curso com as narrativas clássicas, ditadas pelo cinema norte-americano, e mais
precisamente o hollywoodiano.
O neorrealismo italiano tirou as
câmeras dos empedernidos e embolorados estúdios da Cinecittá, e contaminado
pelo frescor das ruas, as incorporou como tema, e simetricamente também como palco, abraçando as tristes
histórias que delas emergiam. As ruínas materiais serviram de cenário e de arcabouço de uma
esperança que precisava renascer das cinzas. Uma nova escola ou uma nova forma
de conceber o fazer vieram de experiências reais, por isso os atores também
precisavam muitos vir das ruas. Assim, profissionais e amadores se amalgamaram
(para utilizar a palavra cunhada pelo crítico francês Andre Bazin, que escrevia sobre o neorrealismo no calor da hora) para renascer um novo cinema italiano.
Quando Fellini migrou da imprensa
para o cinema, o fez justamente como roteirista de dois diretores significativos do neorrealismo, Alberto Lattuada e Roberto Rossellini, dois
cineastas com os quais Fellini muito aprendeu e que por isso reverenciava
sempre como mestres. Não à toa, suas primeiras obras ainda traziam as marcas
desse significativo e influente movimento. Era impossível no panorama
pós-guerra europeu não ser manchado com pelas viçosas tintas dele.
Em volta do neorrealismo floresceu
não apenas o interesse por fazer cinema, mas também por pensá-lo de forma mais
significativa e veemente. Revistas de cinema, como o até hoje prestigioso Cahier
du cinéma (criada em 1951) fomentaram o pensamento crítico sobre o novo
cinema italiano, mas sem esquecer e menosprezar o clássico norte-americano. Podemos
identificar duas influências transformadoras no período: a força
renovadora de Cidadão Kane (1941), que só chegou na Europa depois do fim da
guerra em 1945; e os primeiros filmes neorrealistas de Rossellini, De Sica e
Visconti. Da crítica francesa nasceram Godard, Rohmer, Truffaut, Rivette e
Chabrol, fundadores no final dos anos 1950, da Nouvelle Vague, junto com
o neorrealismo, o mais influente movimento estético do cinema do século 20, que
implodiu os ditames clássicos, inclusive os da continuidade narrativa. As novas
ondas invadiram os cinemas de todo o mundo a partir dos 1960, em alguns casos
foram pequenas marolas, mas em outros, grandes tsunamis. A insatisfação com as
regras proliferara de tal forma que aos poucos foram sendo assimiladas pela
grande indústria do cinema.
Esse
era o clima efervescente do cinema italiano e Europeu no qual Fellini vivia e
transitava. Um cinema em franca libertação dos seus códigos e preceitos
formadores, um contexto onde havia abertura para inovações e experimentações
narrativas e estéticas. Quando Fellini faz seus primeiros filmes mais ousados
(“A doce vida” e “Oito e meio”), os revolucionários “Acossado” (Godard) e
“Hiroshima Mon Amour” (Resnais) já estavam circulando indisciplinadamente, obras
que viriam ser cults e futuros clássicos. Em 1961, isto é, logo após “A
doce vida”, Resnais realizou uma das obras mais inaugurais da história do
cinema, uma libertação estrutural da literatura, com seu “O ano passado em Marienbad”,
a forma cinema em sua plenitude. Toda essa atmosfera criativa, aberta inclusive
ao vanguardismo, muito facilitou Fellini a filmar sua obra-prima, o “Oito e
meio”. Com “Oito e meio”, Fellini seria então Fellini, um artista pleno em seu
estilo, com uma originalidade inconteste. Ao se ver brevemente um filme de Fellini,
logo se identificava uma marca, um algo assim um tanto quanto felliniano.
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