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MONDO FELLINI - Ensaio de Marco Fialho


MONDO FELLINI

Texto de Marco Fialho

FELLINI E A REALIDADE RECRIADA - ENTRE O LÚDICO E A IMAGINAÇÃO  

“Sentir-me obrigado a ser absolutamente fiel a uma história real já me tira o prazer de contá-la. ”
Federico Fellini

Fellini está entre um seleto grupo de diretores que conseguiu criar um mundo cinematográfico à sua imagem e semelhança. Mais do que conceber um estilo, Fellini concebeu um universo facilmente reconhecível. Ao vermos uma obra sua logo sabemos identificá-la a autoria, logo percebermos que estamos pisando no mundo de Fellini, mais exatamente no Mondo Fellini. Como poucos, ele soube estabelecer as regras desse mundo de tal forma que logo ganhou um adjetivo próprio: felliniano. Claro que hoje esse adjetivo se confunde com a própria Itália, afinal muito desse mondo tem a cara de seu país de origem.

Mas a Itália de Fellini não era propriamente a Itália, mas sim uma paralela, minuciosamente reconstruída pelo Deus Fellini. Esse mondo Fellini espelhava àquela Itália real, entretanto incorporava lá distorções, um quê de grotesco, de tipos exóticos, exagerados, esbarrando aqui e ali em uma ideia estilosamente barroca, com mulheres obesas sensualizadas e personagens com modos extravagantes. Esse mondo tem algo que transita psicanaliticamente entre sonho, delírio ou imaginação. Nele, a música inconfundível de Nino Rota ajuda a compor um clima que o sintetiza, com um toque circense, mágico, onde alegria e tristeza se irmanam de forma comovente e às vezes até espetacular.

O circo antes de ser uma mera citação ou ilustração em seus filmes, deve ser entendido como parte integrante de sua concepção fílmica. Não era preciso o filme ter o circo por um motivo muito simples, o circo está na própria mise-en-scène felliniana, nos corpos, no humor presente nas cenas, na fantasia do ambiente e sempre no desconcerto da câmera, esta sim sem a bailar como um trapezista, um mágico ou um palhaço. A câmera em Fellini era a própria fantasia e a refirmava incessantemente.

Nascido em 1920, Fellini viveu sua infância e adolescência no período fascista de Benito Mussolini (1922-1945). Seu mondo retratou tipos populares que navegaram pela época fascista, que deixou marcas profundas na Itália contemporânea. O cinema de Fellini sempre esteve atento a criticar e ridicularizar esse universo espalhafatoso, salientado por um fascínio decadente pelo grotesco.

Mas os filmes de Fellini evocam sistematicamente a sua Rimini natal. Adentrar em seu mondo é também passear em reminiscências da infância e adolescência dele nessa piccola cidade italiana e também demarcar um peculiar provincianismo dos habitantes locais como ponto de partida para refletir sobre o mundo.
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FELLINI, O HOMEM DE RIMINI E DE ROMA: o mais felliniano de todos os seres.

Federico Fellini como bom italiano que era gostava de falar, inclusive sobre si mesmo. A história dele, tal como de seus filmes, mistura momentos mágicos e banais. Os pais eram a síntese da família popular italiana. O pai um caixeiro-viajante, vendedor de víveres. Já a mãe era uma dona de casa insatisfeita com as viagens do marido e os constantes adultérios dele, que aproveitava-se da vida nômade para ficar longe da esposa e abusar da poligamia. Como o pai trabalhava no ramo alimentício, Fellini jamais passou perto da fome. Segundo ele a mesa de casa sempre foi abundante em vários tipos de comida.

Nas obras de Fellini permanentemente surgiam críticas, algumas ancoradas no mais puro deboche, à igreja católica, à família e à escola. Esse tripé em nada o agradava. Para ele, as três instituições estavam ligadas à repressão, fosse ela em relação à liberdade de expressão (incluindo as manifestações do corpo), opinião e sobretudo sexual. Fellini narra grandes fantasias eróticas ainda muito criança e da sua dificuldade de se aproximar efetivamente de uma mulher, inclusive um medo mesmo de não saber o que fazer perante uma sem roupa.                        

A paixão de Fellini pelo cinema muito se deu porque sua mãe adorava ver filmes. Fellini narra sua lembrança de como ela chorava, especialmente vendo os filmes da grande referência feminina dela, a atriz Greta Garbo, na qual nutria um verdadeiro encantamento. Lembra que desde os dois anos de idade acompanhava a mãe e sempre considerou o templo-cinema como fosse a própria casa, por se sentir muito à vontade dentro dele.

Apesar do medo que Fellini tinha dos palhaços na infância, aos cinco anos de idade ele chegou a passar quase um dia inteiro com uma trupe circense que visitava Rimini. As lembranças desse momento ficaram marcadas nele para sempre, especialmente a sensação inesperada de tocar os pelos de uma zebra, o que não deixa de ser uma visão bem felliniana. O tratamento recebido pelos artistas da trupe foi de tamanha delicadeza e atenção, que ele quase se esqueceu de voltar para casa ao final do dia.

Fellini amava histórias em quadrinhos, e por tabela adorava desenhar. Desde bem criança desenvolveu essa habilidade. Durante as chatas aulas da escola ficava desenhando. Seu maior talento eram as caricaturas. Ele costumava dizer que passava com boas notas porque o pai doava muitos produtos alimentícios para os professores, que assim, olhavam as medíocres notas de Fellini com mais benevolência.

Aos dez anos de idade a mãe de Fellini precisou visitar um tio em Roma (a família dela era originalmente de lá) e Fellini diz que foi paixão à primeira vista pela cidade e prometeu a si mesmo que moraria ali o mais cedo que conseguisse. “Vim ao mundo quando vi Roma pela primeira vez”. E assim o fez logo que completou 18 anos de idade. E foi vendendo desenhos, charges e caricaturas para algumas revistas e jornais que começou a sobreviver sozinho em Roma.

Quando já morava em Roma e já namorava Giulietta Masina, a 2ª guerra mundial estava em curso e a pressão para o recrutamento de soldados para servir nas frentes de batalha era imensa. Fellini passou por dois momentos tensos envolvendo um possível alistamento, e os dois muito bizarros. Ele conta que estava dentro do prédio do alistamento quando começou um bombardeio e uma grande correria. Fellini aproveitou-se da confusão para correr e fugir do exército. Nesse caso, ironicamente, ele teria sido salvo da guerra pela própria guerra. A outra oportunidade ocorreu num momento onde o exército passou a realizar várias blitzs nas ruas, em busca de pegar jovens em condições de participar da guerra. O risco era iminente e Fellini evitava sair de casa para não ser surpreendido. Bastou uma saída, um mínimo descuido, para ficar encalacrado em um cerco policial que buscava justamente encontrar pessoas para serem recrutadas para lutar no front para que ele fosse capturado. Para a sua sorte, todos os soldados eram alemães. Mas novamente o inusitado aconteceu. Quase na hora do caminhão partir com todos os civis aleatoriamente recrutados, inclusive o próprio Fellini, ele pula do veículo e abraça um distraído soldado alemão como se o tivesse reconhecido de algum lugar. O soldado ficou tão atônito ao ser chamado efusivamente de Fritz por Fellini, que malandramente se passou por um velho amigo do soldadinho. E foi assim que ele mais uma vez escapou do recrutamento, mesmo tendo corrido o risco de levar um tiro pelas costas de algum assustado soldado alemão. Pode até ser que essas duas inusitadas histórias não sejam verdadeiras, mas não podemos negar o quão engraçado e pitoresco elas são, e poderiam estar presentes tranquilamente em um dos filmes do diretor.

Todos que acompanham ou conhecem minimamente a obra de Fellini, sabem do seu apreço por enxertar fragmentos de sonhos nas histórias que narrava. Mas o que poucos sabem é o quanto o mestre italiano efetivamente sonhava, e de forma impressionante conseguia lembrar com exatidão de todos os sonhos. Como comum em seus filmes o erotismo era uma das facetas oníricas mais frequentes dos sonhos e sempre com mulheres corpulentas que demonstravam autoridade. Daí podemos calcular o quanto foi fácil para ele criar um filme como “A Cidade das Mulheres”, onde o tempo todo o personagem de Marcello Mastroianni vivenciava cenas das mais esdrúxulas envolvendo as mulheres mais decididas e vingativas. O medo de Fellini das mulheres, muitas vezes narrado em suas biografias, parece assombrá-lo até a idade mais madura, e os filmes pelo jeito o ajudavam no exorcismo dos traumas e assombros vividos desde a infância com o sexo feminino. Não casualmente, as mulheres expressavam nele um sentimento dúbio, um misto de voluptuosidade e temor.

As inseguranças em relação às mulheres só foram amainadas no encontro com Giulieta Masina, musa, esposa e companheira de vida. Não que Fellini fosse o ás da fidelidade, pois sabemos que não era mesmo, mas precisamos reconhecer que no decorrer da vida essa relação foi um dos pontos mais altos. Giulietta ajudou Fellini a perder ou amenizar o pavor pelas mulheres. Essa segurança conquistada as duras penas foi um dos pontos cruciais para que Fellini pudesse deslanchar na complicada carreira de diretor de cinema.

Nos dez primeiros anos da filmografia felliniana, podemos assinalar pelo menos três filmes que dizem muito sobre as angústias dele como homem e profissional, obras que espiritualmente são significativas de sua própria trajetória. Trata-se de uma trilogia realmente especial (“Os boas vidas”, “A doce vida” e “Oito e meio”), onde Fellini assume sempre um alter ego para pensar as clivagens ocorridas na vida adulta. Em “Os boas vidas” ele aborda o momento incerto de crescimento e de afirmação profissional, aquele momento onde se precisa tomar a difícil decisão de sair de uma cidade pequena para tentar viver como jornalista numa cidade grande. Em “A doce vida” Fellini se aproveita das vivências como jornalista em Roma para refletir o papel da espetacularização da mídia e da sociedade romana como um todo. E por último, em “Oito e meio”, ele parte das próprias angústias como diretor de cinema, das cobranças intermináveis pelo sucesso e da crise de criação para discutir o fenômeno artístico na contemporaneidade. Estudar essa tríade talvez seja mais importante do que qualquer biografia ou autobiografia já realizada sobre Fellini. O seu eu mais profundo estava ali no somatório dessas três obras. Como ele bem gostava de dizer, foi nos filmes onde se despiu por completo, com desejos e sonhos mais secretos. Assim era Fellini, um artista capaz de expor as próprias entranhas por meio de filmes.

Como então pensar em Fellini sem lembrar da forma com que ele criou um estilo, uma escrita própria por meio da câmera. A câmera em Fellini funciona realmente como uma caneta. Seu dom para o desenho se transpôs para a forma de manejar a câmera nas cenas, como se com ela desenhasse não só o que vemos, mas também o que sentimos. Depois de realizar três obras de caráter mais autobiográfico (Os boas vidas, A doce vida e 8 e 1/2) a mise-en-scène felliniana amadureceu e consolidou-se como estilo. Claro que esse estilo não se encerrava pelo uso da câmera, mas ele se constituiu em um dos aspectos centrais de uma concepção fílmica mais abrangente, que incorporou outros elementos preciosos como a colaboração da música de Nino Rota; dos diálogos sempre exagerados e pouco reveladores da trama, que muitos diziam sobre o vazio da sociedade; e a profusão de personagens sempre a entrar e a sair de cena sem muita cerimônia. Muitos críticos demoraram a perceber o quanto Fellini, ao seu modo, atribuiu muito valor a um formalismo, que o método felliniano de se fazer cinema atentava, e muito, para a criação e recriação da realidade, e que o cuidado dele com a mise-en-scène foi sempre de um detalhismo ao nível do insuportável. Figurino, decórs, câmera, atuações dos atores e atrizes, fotografia, roteiro, montagem e música sempre transfiguraram uma acurada percepção de Fellini do mundo no qual queria construir, o seu mondo próprio. Não casualmente, tudo nele contribuía para construir uma identidade artística intensa, a ponto de termos que nomeá-la involuntariamente como felliniana.       
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OS TIJOLOS DA EDIFICAÇÃO FELLINIANA - notas sobre algumas influências literárias e cinematográficas.

Comecemos pelo fim cronológico. Em se tratando de Fellini, o fim pode ser apenas um caminho, um apontamento para se chegar em novos inícios reconstruídos, delineamentos, rabiscos em busca de uma forma. Pode parecer estranho, mas será apenas uma opção de método. Os sonhos também são assim, parecem palpáveis até revelarem-se nuvens e Fellini era sabedor disso. Será que eles assim os são, apenas nevoeiros passageiros? Pode ser que sim, mas o que importa é o dado corpóreo que eles trazem, aquele desenho momentâneo, um modificar constante, um algo de imprecisão calcado sempre em alguma materialidade. Se o cinema de Fellini é enganador, o seu mondo também o é, e essa análise estará em conformidade com ele, em um constante brincar da realidade com o lúdico e o falso.

Mas sim, voltemos ao já enunciado fim. Em 1993, ano de sua morte e um mês após ter sido agraciado por um Oscar pelo conjunto da obra, Fellini conversou sobre sua vida, obra e influências com dois jornalistas italianos (Goffredo Fofi e Gianni Volpi). Essa entrevista resultou em um livreto espetacular chamado “A arte da visão”. Pode ser considerada uma de suas últimas impressões sobre o universo e as artes em geral e onde consegue do alto da maturidade falar de diversos temas que lhe são muito caros. A grande revelação deste livro está na fala sobre as maiores influências artísticas. Talvez, a palavra influência seja até pesada demais. Seria melhor se disséssemos o quanto algumas obras foram importantes do ponto de vista da estética, do estilo e das narrativas para o estabelecimento e formação do modus operandi de Fellini como cineasta.

Curioso que quando Fellini aborda os autores “influenciadores”, ele foge de citar cineastas. O entrevistador fala de Rossellini e Fellini faz uma curva e desvia para Homero. Parecendo entender Fellini, a pergunta se encaminha para a literatura e vem então o deslanchar orgástico do diretor sobre diversos literatos. O que é muito comum quando nos defrontamos com cineastas possuidores de um universo fílmico bem próprio, serem mais as referências fora do cinema e para esse lugar que Fellini nos leva, um lugar onde a imaginação é ilimitada, sem fronteiras, com dimensões imprecisas e embrenhadas pela subjetividade. Antes de situar Fellini no cinema é preciso situá-lo primordialmente no campo da cultura, pois é nesse território mais alargado onde sua obra está poderosamente inscrita.

Ao começar a enumerar os autores, Fellini não detalha onde cada um deles o contagiou nem de que forma. Mas basta analisar um a um deles para ficar bem evidente. O primeiro citado é surpreendente, o clássico da literatura infanto-juvenil Pinóquio, escrito por Carlo Collodi. A surpresa pode não ser tanta se pensarmos o quanto esse livro dialoga incisivamente com sua obra, nos faz pensar no seu lançar-se à imaginação, de como ela amalgamada com a realidade consegue extrair algo de mágico, em um jogo subjetivo libertário, onde só o aprendizado irrefreável importa como situação inerente e involuntário ao ser humano. Irremediavelmente Fellini estava sempre preocupado no indivíduo e como ele interage com a sociedade, o ponto de partida e de chegada sempre foi o indivíduo. O coletivo para Fellini está presente como elemento de interação, não de explicação. Por isso as obras dele, em especial as mais maduras, não se caracterizavam como puramente sociológicas, antropológicas ou históricas (incluindo os filmes de época), apesar de conter algumas contaminações desse tipo.

A rigor, Fellini foi um cineasta essencialmente de cunho psicológico (mesmo que não seja no mesmo sentido de Ingmar Bergman, por exemplo), há que se reconhecer nos personagens traços decisivos, referenciando aqui as recorrentes cenas de delírios e sonhos evocadas nas obras, sobretudo uma inclinação junguiana, como o próprio já assumiu, o lado contraditório e nebuloso no qual trabalha a ideia de artista, da relação entre sonho, recordação e razão, e quanto tudo isso é caro a nós como indivíduos. Mas uma vez, a resultante está em um embate impreciso, obscuro e sempre trágico entre o sujeito e o mundo, entre o indivíduo e o coletivo. Carl Jung exprime bem o aspecto simbólico desse mecanismo: “uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem tem um aspecto ‘inconsciente’ mais amplo, que nunca é precisamente definido ou inteiramente explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-lo ou explicá-lo. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do alcance da nossa razão.” (O homem e seus símbolos - 2ª edição, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2008, p. 19).

Nesse embate, como esquecer então da imensa contribuição de Kafka para se analisar os efeitos materiais provocados nos corpos dentro de uma sociedade onde a experiência humana foi completamente posta abaixo por uma sucessiva mecanização do mundo do trabalho e de nosso cotidiano, nos colocando em um labirinto de caminhos insolúveis.

Outro nome a ser mencionado como importante por Fellini é o de Luigi Pirandello, o famoso dramaturgo italiano, que tão bem traduziu o mal-estar do homem moderno e a sua difícil tarefa de lidar e tentar conciliar socialmente com as máscaras interior e exterior, sempre amparado pelo humor. Um homem que não cabe no mundo que lhe é dado, mas que contraditoriamente é obrigado a viver nele. E um dos pontos da obra felliniana é o da cisão do homem numa sociedade burguesa que preza permanentemente as aparências. Pode-se dizer que Pirandello está sempre a sombrear a obra do mestre Fellini, como uma referência filosófica norteadora.

Havia um encantamento de Fellini pela narrativa do escritor Giovanni Verga, autor do clássico “Os Malavoglia” e um dos precursores do chamado “verismo”, famoso ao retratar a vida dos camponeses da Sicília, incorporando inclusive seus dialetos à sua escrita. Fellini mostrou-se muito sensível a como a força arrasadora do progresso triturou os mais humildes (no campo e na cidade) e as contradições socio-econômicas estavam implacavelmente presentes nas obras. Se pode ser dito que Fellini nunca foi um cineasta político, não se tem como negar o quanto suas obras foram permeadas profundamente por uma visão acurada do social, e Verga, tem muito peso nessa direção.

Sempre é muito proferido pela crítica acerca do gosto de Fellini pelo estilo barroco em muitos de seus filmes. Muito dessa influência veio pelas leituras apaixonadas que fazia do escritor Tomasso Landolfi, de cunho existencial e muito influenciado pelos escritores russos como Gogol e Dostoievski, dos quais traduziu várias obras. O seu gosto pelo fantástico e o grotesco existencial dessas obras tocou Fellini, que era fascinado pelo estilo e também pela personalidade misteriosa do autor.

O escritor, jornalista e poeta Aldo Palazzeschi foi outra alma a passear no imaginário felliniano. Sua obra pode ser caracterizada por uma análise profundamente social, onde o fantástico se encontra sistematicamente com o humor. Uma de suas obras mais significativas “Irmãs Materassi” é um retrato ora engraçado ora terno, traços tão bem incorporados à poética de Fellini.

Mas Fellini também enaltece Carlo Emilio Gadda, o célebre escritor antifascista. A admiração era tanta que Fellini não se acanhava ao chamá-lo de Planeta Gadda. Seu romance “Quer pasticciaccio brutto de via Merulana” (1957) propõe um estudo da sociedade italiana do final dos anos 1920, a partir de um roubo e um posterior assassinato em um prédio localizado no Centro de Roma. Pobres e ricos são retratados no decorrer do enredo e com isso Gadda explora as diferenças entre as classes, frisando em especial a peculiaridade de cada linguajar. Tudo no livro se esboça como uma grande confusão, com múltiplos personagens e não há apenas um único ponto-de-vista, e sim diversos. Essa forma de narrar muito se aproxima a de Fellini, essa profusão de personagens entrando e saindo de cena constantemente, como um documentário social da vida de uma cidade.

Será que o que identificamos de tão original em Fellini vem de outras plagas, de outras narrativas que não são as cinematográficas? A afirmação pode soar e até mesmo conter alguma dose de exagero, pois não imputar nada ao cinema seria de um absurdo completo, afinal a opção para expressar-se artisticamente sempre foi a do cinema. Fellini foi um filho direto do neorrealismo, de certo um parentesco em primeiro grau. Foi roteirista de clássicos dessa tendência cinematográfica, como “Roma, cidade aberta” e “Paisá”, ambos de Rossellini, obras fundamentais para a existência de um cinema moderno da Itália, desgarradas das grandes produções realizadas nos estúdios da Cinecittá. Não à toa, igualmente os primeiros filmes de Fellini possuíram a marca neorrealista, embora fosse um Fellini vivendo ainda a infância de seu cinema. Mas deve-se registrar que desde essa infância ele apresentou sempre elementos para além do neorrealismo, uma dose de lirismo no desenvolvimento dos personagens, um eclodir de subjetividades que já o lançava paralelamente para fora daquela estética dominante, um sinal, um rastro de autonomia a perseguir nas obras futuras e que viria a explodir em “A doce vida” (1960). Importante mencionar que “Noites de Cabíria” (1957) é o desfecho magnífico dessa primeira fase, onde a ideia do lírico chega a um patamar dramatúrgico elevado muito devido ao amadurecimento de Giulieta Masina como atriz.


FELLINI E O CINEMA DE SEU TEMPO

Falar que Fellini é um dos artistas mais originais e influenciadores do século 20 não é nenhum exagero. Fellini foi muito mesmo: popular, crítico, engraçado, nostálgico, autorreferente, circense, emotivo, criativo, lúdico, surreal e vanguardista. Ele representava muitos mundos, mas todos esses mundos estavam profundamente impregnados de seu mundo, sempre tão próprio. Daí as fantasias dele também parecerem tão nossas.

Como tantos cineastas de seu tempo, passou pela Segunda Grande Guerra Mundial, e essa experiência o marcou, assim como a toda uma geração. Fellini fugiu da guerra com valentia, com a força típica de um artista que só sabia encarar uma luta apenas: a da arte como expressão de diálogo com o mundo. E se a guerra para a Itália simbolizou uma derrota, para o cinema foi a glória. O cinema italiano do pós-guerra encarnou e propiciou tudo o que veríamos a seguir. Se tornou o cinema com mais diretores famosos da Europa e demarcou a cisão que estava em curso com as narrativas clássicas, ditadas pelo cinema norte-americano, e mais precisamente o hollywoodiano.

O neorrealismo italiano tirou as câmeras dos empedernidos e embolorados estúdios da Cinecittá, e contaminado pelo frescor das ruas, as incorporou como tema, e simetricamente também como palco, abraçando as tristes histórias que delas emergiam. As ruínas materiais serviram de cenário e de arcabouço de uma esperança que precisava renascer das cinzas. Uma nova escola ou uma nova forma de conceber o fazer vieram de experiências reais, por isso os atores também precisavam muitos vir das ruas. Assim, profissionais e amadores se amalgamaram (para utilizar a palavra cunhada pelo crítico francês Andre Bazin, que escrevia sobre o neorrealismo no calor da hora) para renascer um novo cinema italiano.

Quando Fellini migrou da imprensa para o cinema, o fez justamente como roteirista de dois diretores significativos do neorrealismo, Alberto Lattuada e Roberto Rossellini, dois cineastas com os quais Fellini muito aprendeu e que por isso reverenciava sempre como mestres. Não à toa, suas primeiras obras ainda traziam as marcas desse significativo e influente movimento. Era impossível no panorama pós-guerra europeu não ser manchado com pelas viçosas tintas dele.

Em volta do neorrealismo floresceu não apenas o interesse por fazer cinema, mas também por pensá-lo de forma mais significativa e veemente. Revistas de cinema, como o até hoje prestigioso Cahier du cinéma (criada em 1951) fomentaram o pensamento crítico sobre o novo cinema italiano, mas sem esquecer e menosprezar o clássico norte-americano. Podemos identificar duas influências transformadoras no período: a força renovadora de Cidadão Kane (1941), que só chegou na Europa depois do fim da guerra em 1945; e os primeiros filmes neorrealistas de Rossellini, De Sica e Visconti. Da crítica francesa nasceram Godard, Rohmer, Truffaut, Rivette e Chabrol, fundadores no final dos anos 1950, da Nouvelle Vague, junto com o neorrealismo, o mais influente movimento estético do cinema do século 20, que implodiu os ditames clássicos, inclusive os da continuidade narrativa. As novas ondas invadiram os cinemas de todo o mundo a partir dos 1960, em alguns casos foram pequenas marolas, mas em outros, grandes tsunamis. A insatisfação com as regras proliferara de tal forma que aos poucos foram sendo assimiladas pela grande indústria do cinema.

Esse era o clima efervescente do cinema italiano e Europeu no qual Fellini vivia e transitava. Um cinema em franca libertação dos seus códigos e preceitos formadores, um contexto onde havia abertura para inovações e experimentações narrativas e estéticas. Quando Fellini faz seus primeiros filmes mais ousados (“A doce vida” e “Oito e meio”), os revolucionários “Acossado” (Godard) e “Hiroshima Mon Amour” (Resnais) já estavam circulando indisciplinadamente, obras que viriam ser cults e futuros clássicos. Em 1961, isto é, logo após “A doce vida”, Resnais realizou uma das obras mais inaugurais da história do cinema, uma libertação estrutural da literatura, com seu “O ano passado em Marienbad”, a forma cinema em sua plenitude. Toda essa atmosfera criativa, aberta inclusive ao vanguardismo, muito facilitou Fellini a filmar sua obra-prima, o “Oito e meio”. Com “Oito e meio”, Fellini seria então Fellini, um artista pleno em seu estilo, com uma originalidade inconteste. Ao se ver brevemente um filme de Fellini, logo se identificava uma marca, um algo assim um tanto quanto felliniano.

ps. Texto finalizado em 28/05/2019, especialmente para um catálogo em homenagem ao centenário de Federico Fellini.

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