UMA ODE À FANTASIA
Por Marco Fialho
“A voz da lua” marca o encontro entre o grande diretor italiano Fellini com um dos maiores humoristas da Itália, Roberto Benigni. Só este fato em si já seria um atrativo à parte. Mas claro que o filme é muito mais do que isso. O maior desafio de Fellini nessa obra é o de tirar Benigni de seu registro habitual, o do clown, para pô-lo em uma proposta mais sóbria, entretanto sem perder a dimensão lúdica e circense que Benigni tão bem incorpora a seu personagem, o lunático Salvini. E a sua atuação é surpreendente, carismática, contida e expressiva. Ele é o condutor nesse barco à deriva que Fellini joga errante ao desconhecido mar, ao sabor de suas vagas imprevisíveis.
Talvez seja “A voz da lua” o filme onde a relação de Fellini com a fantasia seja a mais visível. É justamente em sua obra derradeira que a camada realidade parece se desmilinguir. Desde a primeira cena, onde uma névoa nos induz ao onírico, o senso de realidade passa ao largo. A sensação é de que sonho, memória e fantasia se misturam formando uma sustentação dramatúrgica fluida e imprecisa à história. Curiosamente, Fellini iniciou sua carreira como roteirista junto dos neorrealistas italianos, mas no decorrer da carreira, como diretor, foi se afastando veementemente dessas concepções e acrescentando uma chave que abria portas à fantasia, mesmo quando o espaço em si ainda guardasse algum contato com a realidade, a recriação dela sempre esteve presente como contraponto.

O personagem Salvini é um dos mistérios dessa “A voz da lua”. Ele é antes de tudo um desgarrado, um solitário a vagar pela cidade, pelas suas fantasias, memórias e pelos diversos personagens, em situações bem ao feitio de Fellini, que ao invés de construir um enredo, prefere caminhar por situações inusitadas, sem estabelecer propriamente uma história linear, com início, meio e fim. Enquanto obra, “A voz da lua” pode ser entendida fellinianamente como uma ode ao humano, uma busca pela essência da vida. Não à toa critica o mundo contemporâneo e as mudanças de hábito por ele promovidas, como o de transformar a vida em um grande espetáculo, mas enfatiza nessa espetacularização a artificialidade da mídia, o sensacionalismo dos telejornais, a invasão do mundo pop (em especial a massificação da música) e a podridão da política, prestes a transformar os acontecimentos e as tradições em um joguete nas mãos de todo o tipo de oportunista de plantão. Mas Fellini não deixa de explorar a vida como um arroubo incontrolável, como uma faísca, um farfalhar de emoções incontroláveis e sempre ávida a se impor até nas situações mais absurdas e desoladoras.
Há em “A voz da lua” um traço bergmaniano, de crítica a uma sociedade que de tanto de racionalizar e organizar perdeu o encanto, o seu sopro de virtude e levou os homens a abandonar a comunicação entre os seus. Ao chegar à lua, pisar nela, o homem acabou com um de suas maiores fontes de mistério e encanto. Ao alcançar à lua, enquanto humanidade enclausuramos nossos desejos, permitimos que ela também pudesse ser mais um objeto de espetacularização de nossos ambiciosos poderosos. Salvini é um dos últimos guardiões de um lirismo perdido. Quando descobrimos que ele é considerado apenas um louco pelos seus familiares (apenas nos últimos 20 minutos do filme) já lhe guardamos apreço e carinho. Não casualmente, quando Salvini volta para o seu lar, após ser resgatado pela sua irmã, nos defrontamos com seu quarto e lá está um boneco de Pinóquio. Sim, essa imagem colocada no seu último filme é por demais simbólica. Vale lembrar o quanto Pinóquio é situado por Fellini como sua maior referência artística, como uma obra de permanente inspiração. De certa forma, Ivo Salvini é Pinóquio, a beleza e a expressividade que esse personagem representa no imaginário felliniano.
Mas não se deve esperar de “A voz da lua” uma obra concatenada, com partes articuladas entre si com uma dramaturgia inteligível e tradicional. Antes de tudo, o filme derradeiro de Fellini deve ser concebido como um hino à liberdade, inclusive artística. A única coerência que o filme segue é a de Salvini, isto é, nenhuma. Salvini é um libelo em si a destoar do mundo a sua volta já perdido em sua ânsia de criar acontecimentos grandiosos, até mesmo quando esses não existem, mas que mesmo assim são criados para que algo possa ser visto e transformado em produto. Por isso, Salvini diz: “não consigo entender as pessoas”, todavia, a recíproca também é verdadeira. Fellini leva seu filme na corda bamba entre a crítica social e a fantasia, sem jamais descambar para o discurso direto que esvaziaria a sua proposta narrativa.
Visto aos olhos do século 21, o filme “A voz da lua” chega a ser profético ao mostrar-se cruel perante o poder avassalador e vazio que os meios de comunicação já assinalavam em 1990, ao mesmo tempo que despertavam a fúria narcisista incontrolável dos indivíduos. O filme pode até não ser o mais conciso trabalho de Fellini, entretanto possui momentos preciosos, basta acompanhar o belíssimo trabalho de Benigni, com seu Ivo Salvini. E quando ele filosoficamente diz “se fizermos um pouco de silêncio, talvez possamos entender algo”, o que podemos apreender é que fora da dita normalidade muito há o que aprender, principalmente se pararmos para observar a beleza do mundo a nossa volta, inclusive a voz da lua insistindo a nos dizer que “nada se sabe, tudo se imagina”.
💛
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