Os bezerrões de Fellini
“Os boas vidas”, segundo longa solo de Federico Fellini é uma obra fundamental em sua filmografia por representar o início da delimitação do seu universo peculiar. O título menciona todos os cinco boas vidas (Moraldo, Alberto, Fausto, Leopoldo e Riccardo), todavia o filme é centrado mesmo em Fausto, um deles que por engravidar a bela Sandrina é obrigado a casar-se com ela como reparação do ato. Apesar de uma aparente felicidade conjugal, o casamento não impede que Fausto continue sendo um mulherengo e um farrista inveterado. Todos os boas vidas possuem um arco dramático específico e caráter complementares no enredo. Alberto é bonachão e beberrão; Leopoldo é o intelectual; Riccardo, um cantor decadente; Moraldo é o mais tímido e o mais sonhador. Eles funcionam como escadas para Fausto (Franco Fabrizi), realmente o protagonista do filme, personagem no qual tudo vai fluir e um canal por onde Fellini vai desfiando sua crítica à burguesia decadente do
interior.
Um dos aspectos mais curiosos de “Os boas vidas” é a sua narrativa misteriosa, realizada em terceira pessoa, por alguém que não se identifica até o fim, mas que fala com muita intimidade dos personagens e da cidade. Chegamos até a pensar que em algum momento esse personagem se revelaria, o que não acontece. Friso essa voz por ela ser responsável por uma dose de afetividade e uma melancolia existente no filme, mesmo que o humor acompanhe constantemente a trama. “Os boas vidas” traz um Fellini em pleno processo de amadurecimento e muito atento à sociedade italiana do pós-guerra.
Fellini cria um diálogo interessante com sua origem neorrealista, inverte de certa forma sua lógica ao trabalhar um ponto de vista a partir de uma camada mais abastada, que vive em uma pequena cidade marítima. Vale ressaltar que a aparição de personagens mais pobres é praticamente irrisória durante todo o filme. Mesmo sendo pontual a participação dos mais humildes economicamente é decisiva para situar socialmente os boas vidas. Quando os mais pobres aparecem em cena, Fellini cria uma fagulha instantânea, o contraste torna-se gritante. Isso acontece quando Moraldo conversa com o ainda menino Guido, que acorda às três da manhã para trabalhar na ferrovia da cidade. Mas a cena mais impactante e sensacional é a que Alberto insulta de dentro de um carro trabalhadores numa obra pública, e logo a seguir o carro sofre uma pane e ele apanha dos ofendidos. Fellini nos revela
repentinamente uma feroz luta de classes.
“Os boas vidas” é um filme inteiramente construído pelos seus personagens. Por isso o trabalho dos atores é tão importante para o seu sucesso. Segundo os atores envolvidos, Fellini criava um clima e os deixava à vontade para desenvolver até diálogos. Dava instruções básicas, como caracterização de cada personagem, mas todos podiam até reelaborar suas falas e gestos. Seja como for, Fellini conseguiu um objetivo fundamental em “Os boas vidas”: retratar a vida vazia de homens boêmios marcados pela falta de perspectiva. O caráter machista dos personagens fica muito evidente em diversas cenas, desde a relação que Fausto impõe à Sandrina até o seu assédio irrefreável a qualquer rabo de saia que passasse pelos seus olhos.
Boa parte do filme foi inspirada em histórias vividas por Fellini em Rimini, sua cidade natal. Mas nem tudo em “Os boas vidas” é autobiográfico, muito também provém de tantos outros personagens ligados a sua vida. Esse aspecto onde Fellini mistura imaginação e realidade é um dos pontos altos de sua carreira e “Os boas vidas” é o primeiro lampejo onde isso aparece de forma mais clara. Nele já encontramos uma câmera inquieta, sempre em busca dos seus personagens e na elaboração de uma mise-en-scène caótica, ditada pela imprecisão e pelo espírito convulsivo do povo italiano. Como o próprio Fellini gostava de dizer, o fio tênue que une verdade e mentira é um pouco a característica da italianidade. “Os boas vidas” é o primeiro pontapé, mesmo que ainda incipiente, de um grande legado que o cinema de Fellini deixará para posterioridade: o adjetivo felliniano.
Curiosidade: o título original se refere aos vitelloni, que na Itália são chamados os homens adultos desempregados. Literalmente seriam os bezerrões, aumentativo de bezerros (vitelo), filhotes de boi.
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