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1917 - Direção de Sam Mendes

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Uma bela e anacrônica sinfonia cinematográfica         

Por Marco Fialho

Quando nos dizem que um determinado filme foi filmado em plano-sequência, ou vários deles, logo penso se a opção faz sentido para aquela obra ou se trata de uma mera opção exibicionista de seu diretor, vide o superestimado "Birdman" (2014), dirigido por Alejandro González Iñárritu. Felizmente, em "1917", não é esse o caso. A ideia do diretor Sam Mendes é bem clara: a de que os espectadores sintam o quanto a relatividade da noção de tempo se faz presente em determinadas situações, em especial quando agimos contra o relógio. Esse artifício cinematográfico da ação de "1917" está condicionada a um prazo temporal que muito me fez lembrar do clássico de western "Matar ou morrer" (1952), de Fred Zinnemann, com a diferença que neste o relógio é um protagonista efetivo da trama e tudo segue essa marcação de tempo. Em "1917", não, assim como os cabos Schofield (George MacKay) e Blake (Dean-Charles Chapman) ficamos sempre na dúvida se eles chegarão a tempo em seu destino. Ambos precisam avisar a um regimento que está na cidade ao lado para que não faça um ataque a priori planejado, pois descobriu-se que era uma armadilha dos alemães. A inspiração de Mendes partiu da experiência de seu avô como mensageiro durante a Primeira Guerra Mundial.

Em "1917" o que predomina são os ditames da narrativa clássica, em que se estabelece para um personagem um objetivo a ser cumprido e passamos então a acompanhar os obstáculos para que a missão desse herói seja efetivada. Registra-se aqui o emprego da palavra herói, porque nada mais é do que isso, mais um filme americano calcado no ato heroico de um personagem, por mais que este seja um anônimo cabo e não um militar de alta patente. Mas até aí não existe novidade, já que existem vários filmes que enaltecem o heroísmo dos soldados.
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O que então vem despertando tanto interesse em torno desse "1917"? Creio que seja sua excelência técnica, o detalhismo na construção dos planos-sequências muito bem perpetrados por Mendes, nos fazendo viver a angústia dos cabos ingleses Schofield e Blake. Como em todos os filmes calcados na ideia de um continuum espaço-tempo, há sempre os momentos de cortes planejados normalmente em uma cena onde há o imperativo da tela escura, e "1917" utiliza-se justamente desses recursos de cortes para nos criar uma sensação do filme ser um único plano-sequência.

Podemos pensar a realização de um plano-sequência comparativamente a de uma execução de uma sinfonia, em que vários instrumentos tocam ao mesmo tempo, mas o que importa é como nos soa a audição do conjunto, mais do que o som de cada instrumento isolado. Nesse ponto é preciso reconhecer a grandiosidade deste "1917". Não à toa esse é um filme cujo cenários foram todos construídos ao ar livre (só de trincheiras, a produção construiu mais de 1 Km). Há uma coordenação impecável dos elementos técnicos, o que surpreende e cativa o espectador. Como um excelente filme clássico, "1917" trabalha muito bem com a ideia de criar uma identificação do público com os seus protagonistas. Há ainda uma transferência de protagonismo muito bem executada. No início, temos Blake como o protagonista enquanto Schofield serve apenas como um escada. Porém, do meio para o fim, Sam Mendes inverte esse processo de forma tão espontânea que sequer se nota que Schofield passa a ser o novo protagonista.
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Ainda pensando na ideia de sinfonia, vale mencionar o preciosismo de Mendes e sua equipe em ensaiar com precisão impecável os figurantes, atores coadjuvantes, direção de arte, captação de som, efeitos especiais e interpretação dos protagonistas de forma tão exemplar. Destaque para a equipe de fotografia (e de finalização), que entrega uma qualidade imagética sofisticada e ao trabalho de câmera que consegue captar a intensidade das cenas sem roubar a cena, com o distanciamento necessário, como se fosse um documentarista registrando o esforço desses cabos ingleses. Em um momento de profunda beleza visual e humana, o cabo Schofield chega ao núcleo urbano de uma pequena cidade já toda destruída e no meio do caos encontra uma jovem mulher com uma criança. Tudo ali faz lembrar o horror provocado pela guerra e a esperança concentrada naquele bebê já sem mãe, porém amparado pela jovem  mulher. E para completar essa ideia sinfônica de "1917", tem a música ora delicada, ora terna e explosiva de Thomas Newman, que preenche e acrescenta sempre uma dose generosa de completude às cenas. 

A ideia de sinfonia aqui explorada enaltece o aspecto técnico e de realização desse "1917", todo o apuro visual e narrativo conseguido por Mendes, que consegue criar uma tensão permanente ao seu filme. Entretanto a ideia de uma sinfonia é sempre muito ampla e entoa um conceito no qual as partes precisam estar completamente encaixadas, o que acontece exemplarmente com "1917". E nessa perspectiva, a obra de Mendes é plena. Mas devemos lembrar que a sinfonia-cinema está para muito além do aspecto realização, e especial, na sua competência para tal. Antes de tudo, "1917" é um filme clássico de guerra, que narra a história de dois cabos (pintados aqui como homens simples, atabalhoados, inseguros, mas movidos por uma força incomum de realização) e isso sim deve ser valorizado. Mesmo reconhecendo todos esses valores intrínsecos ao filme, quero agora pensar de maneira mais ampla, me debruçar em toda a tensão que essa construção cinematográfica esconde, ou melhor, o que ela escamoteia.
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Quero voltar ao tema do heroísmo em "1917". Refletindo narrativamente, o grande risco dos filmes de guerra é o de cair em algo patético e creio que isso é o que acontece em "1917". Cabe ao roteiro e a direção conferir uma visão mais ampla da obra, e a tarefa de manter a coerência do filme até o seu final. Durante 105 dos seus 120 minutos, tudo estava muito bem orquestrado, até que o roteiro e a direção caem no patético, em um sensacionalismo que beira o cômico, e retira todo o peso da tensão construída até então. A corrida desesperada de Schofield pelas trincheiras procurando o Coronel Mackenzie (para quem precisava transmitir a mensagem do seu general), clímax da obra, soa excessivamente forçada. A música e a "grandiosidade" da ação suicida do cabo correndo, engendra uma dose de artificialismo no ato heroico, em um momento que torna "1917" digno de riso. A reiteração do heroísmo, e a obrigatoriedade de afirmá-lo, torna-se desnecessário, pois o heroísmo já estava posto na ação em si dos cabos, e termina por retirar muito da força que a obra tinha construído até então.
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Em uma época em que Donald Trump ameaça arremessar o mundo em mais uma guerra sem sentido, assistir a esse "1917" não me soou bem, em especial porque as partes relevantes do filme se enevoam pelo sublinhar do ato heroico (mais uma vez a ideia do herói individual norte-americano se faz presente) de uma guerra que era resultante do arrivismo das grandes potências mundiais pelos escombros da política colonial que ainda imperava em pleno século 20. Como não lembrar de um Kubrick e o seu poderoso "Nascido para matar" (1987), que condena os equívocos da guerra em suas entranhas, desde o treinamento até a sua execução em campo de batalha. Por isso, insisto aqui que há sim uma excelência técnica em "1917", mas que esse aparato camufla o seu conceito maior de cinema, ao se utilizar das artimanhas ideológicas da narrativa clássica e nos oferecer um produto extremamente bem acabado cinematograficamente, mas com ideias ultrapassadas e já repisadas em demasia no cinema norte-americano.   

Visto no Kinoplex Tijuca 6, no dia 19/01/2020.
Cotação: 3/5

Comentários

  1. Uma crítica bastante contundente!
    A fotografia do filme, ao meu ver, é excelente , a ideia de um corte apenas tambem faz com que a gente sinta toda a aflição dos envolvidos.
    Estes atos heróicos para um personagem só é que me desagradou.
    Um bom filme mas não " o melhor" filme que assisti desta leva de concorrentes do Oscar de 2020.

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  2. Obrigado Rose pelo comentário. Crítica bem difícil de escrever. Procurei ser justo como um todo com a obra, em especial no cuidado e esmero técnico que lhe é inerente, mas tentando vê-la também em seu sentido maior. Na minha visão, o aspecto técnico tende a inebriar os sentidos dos espectadores (seria uma estratégia?) e enevoar sua compreensão mais ampla. Por isso, foi um grande desafio analisá-la.

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