Por Marco Fialho
Devo confessar que desde que soube que a sempre surpreendente Helena Ignez havia realizado um filme cujo o ponto de partida eram os fakires fiquei com uma sensação de estranhamento sem igual. Ainda na minha infância, lembro de ouvir falar deles, mas sempre sem entender mesmo quem eles eram, em especial porque as explicações que vinham recrudesciam ainda mais minhas dúvidas sobre esses seres. Já na minha vida adulta o fenômeno rarefeito dos fakires pode ter colaborado para o meu esquecimento desses misteriosos seres.
Não se tem como negar que em torno da figura de um fakir sempre haverá algo de pitoresco, e a pergunta óbvia do que leva um ser humano a ganhar a vida com provas tão duras, como a de ficar dias sem se alimentar num esquife cuja base são pregos e de quebra cercado por cobras. Quando soube desse filme, sempre imaginei isso: como fugir do pitoresco, do aspecto curioso e ir além, falar de algo a mais dentro desse universo?
"Fakir", como obra, parte desse pitoresco, mas como se pode imaginar em um filme dirigido por Helena Ignez, o episódico e a densa pesquisa (baseada no trabalho minucioso de Alberto de Oliveira e Alberto Camarero) que envolve o tema, afinal o filme é quase todo realizado tendo como suporte imagens de época, que podemos aqui chamar de imagens-fragmentos, resultantes de uma pesquisa iconográfica densa, de recortes de jornais, de fotos, enfim, de sombras desse passado onde os fakires eram figuras públicas que despertavam intensos interesses. O que se deslumbra como mais um documentário convencional sobre fatos do passado, torna-se na mão da sempre surpreendente Helena Ignez algo de inesperado. O que parecia um elencar histórico e memorialista sobre o fakirismo, vai se metaforseando em um estudo sobre a participação das mulheres nessa inusitada profissão. E Helena consegue mais, fazer um inventário crítico social onde muito se discute o papel da mulher em nossa sociedade machista e excludente.
Um dado importante sobre "Fakir" é a condução narrativa da própria Helena, que com sua serena voz vai não só narrando, mas também comandando as rédeas do filme, comentando os aspectos que não podem passar em branco, ou serem postos em um segundo plano. Curioso notar como o protagonismo das mulheres vai se moldando em sua narrativa. Se as mulheres são inicialmente frisadas como acompanhantes importantes dos fakires, lentamente Ignez vai virando essa chave e as colocando em seu devido lugar. Assim, de esposas elas passam a ser mulher fakir e a conviver com os preconceitos de uma sociedade imersa no atraso de um pensamento colonialista.
Esse é o aspecto mais pungente de "Fakir", mostrar a difícil trajetória das mulheres nesse universo preconceituoso, machista e provinciano. Mulheres que quando chegavam nas cidades eram muitas vezes fichadas nas delegacias como prostitutas. Helena Ignez mostra ainda o desafio daquelas que ousaram fazer carreira sem a "proteção" de um marido. Caso de Suzy King, que teve um triste fim. O machismo foi a maior barreira e Helena Ignez marca bem isso com seu filme. Entretanto, a sua faceta mais sinistra está no feminicídio e Helena nos revela isso. Tanto Luz Del Fuego quanto Ione, outra grande profissional do fakirismo, foram assassinadas e os crimes abrandados pela justiça, afinal, a compreensão social sempre foi a mesma: eram ou foram prostitutas, cidadãs de segunda categoria no país.
Como o filme de Helena Ignez se volta para a situação das mulheres em um país ainda sob a égide de um pensamento colonial, que amesquinhava o papel da mulher, fica então a pergunta do porquê a obra chamar-se "Fakir", no masculino. Creio que esse é mais um ardil de Ignez, o de frisar o quanto desigual é esse mundo, por isso trazer a ideia do apagamento feminino no próprio título. Quem esperava o anedótico, o pitoresco, encontrou uma diretora afirmativa e dedicada a falar de mulheres libertárias como a atriz Luz Del Fuego (assassinada por sua luta política). E a última cena deixa bem clara a mensagem: por trás do pitoresco existe o mistério, e sem dúvida ele é perpassado pelo corpo potente de uma mulher. "Fakir" consegue ser uma mistura arrebatadora de poesia e construção histórica vigorosa.
p.s. a grafia fakir com k foi mantida para respeitar como ela foi utilizada no filme.
Visto na 23° Mostra de Cinema de Tiradentes, em 30 de janeiro de 2020.
Cotação: 4 e meio/5
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