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JULIETA DOS ESPÍRITOS (1965) - Direção Federico Fellini

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A RONDA DA SOMBRA CONSERVADORA

Por Marco Fialho

Comecemos pela cor, pois “Julieta dos espíritos” é o primeiro longa-metragem colorido de Fellini. Antes, apenas o episódio filmado em cores para o filme coletivo “Bocaccio 70”. O uso do elemento cor aqui não deve em nada ser desconsiderado, em especial devido à importância que adquire para a atmosfera lúdica na qual Fellini almeja alcançar e a impressão que temos realmente é de que cada cor ali presente foi precisamente pensada. Não são cores estritamente realistas, mas sim unidades de cores dispostas para expressar sobretudo o espírito da personagem Julieta.

Fellini preferia fazer filmes em P&B, embora admitisse ser um desafio filmar em cores. Por isso, para ele, o manipular delas era algo fundamental. Fellini foi um diretor que artisticamente almejava obsessivamente retrabalhar a realidade. As cores simplesmente espelhadas da vida se mostravam pobres e instalavam um realismo frágil que extraia as subjetividades dos personagens em detrimento da objetividade da vida material. Pensando nessas questões em relação ao filme, Fellini assim refletiu:  
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“Não acredito que a cor substituirá por completo o preto e branco, pelo menos gosto de pensar que isso não acontecerá. Naturalmente prefiro um filme em preto e branco a um horrível em cores. Ainda mais que, em alguns casos, as chamadas ‘cores naturais’ empobrecem a fantasia. Quanto mais você se aproxima de modo mimético da realidade, pior é a imitação. E o preto e branco, neste sentido, oferece margens mais amplas à fantasia. ” (Fazer um filme. p.133)

E “Julieta dos espíritos” assim pode ser visto, como um filme cujo tema central é a fantasia. A fantasia dessa Julieta mulher, reprimida e solitária, em busca de liberar suas fantasias para poder enfrentar uma vida tediosa e vazia. Mas como não enxergar “Julieta dos espíritos” como também uma homenagem e um tributo de amor de Fellini à Giulietta Masina, afinal o filme tem seu nome e seu inteiro protagonismo? Como não falar de uma cumplicidade cênica entre o casal de diretor/atriz? Fellini falou diversas vezes que Giulietta foi a atriz que ele mais exigiu e cobrou, e também a mais teimosa e a mais difícil de dirigir.
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Logo na cena inicial de “Julieta dos espíritos”, Fellini cria um ambiente lúdico, onde Julieta se prepara com esmero para receber o marido. O bailado vertiginoso da câmera e a música sugestiva de Nino Rota formam uma ambiência que gera um estranhamento visual que diz muito mais sobre a cena do que a própria camada da imagem que apenas nos mostra uma mulher preocupada em estar bonita para o marido. Tudo ali nos leva a crer que algo beira à ilusão, ao artificialismo daquela situação. O mundo ali retratado nos remete ao falso, mesmo que ele ainda não esteja inteiramente evidenciado. O rosto de Julieta não é mostrado de súbito, ela está sempre de costas ou sombreada. Seu rosto só se ilumina em um primeiro plano na chegada do marido. Fellini consegue em menos de quatro minutos nos fornecer muitas informações sobre a história, mesmo que os diálogos nada digam de significante para a história como um todo.

“Julieta dos espíritos” é exemplar quanto ao universo que Fellini amava edificar em seus filmes. Personagens em excesso que vão entrando e saindo de cena, quase que empurrando o outro para lhe roubar o primeiro plano. O cinema de Fellini dialoga assim com o mundo também na sua forma fílmica, instaurando uma competitividade entre ele como diretor e seus personagens, expressões de um vazio ególatra onde todos mereciam pelo menos seus 15 minutos de fama, mesmo que fosse para ser uma mera estrela cadente a cair logo em seguida no esquecimento. Um mundo desnorteado nos é mostrado igualmente assim, em uma convergência total entre conteúdo e fundo. A fotografia de Gianni Di Venanzo e a direção de arte de Piero Gherardi são primorosas, conseguem dar conta do preciosismo estético de Fellini, pois o visual de “Julieta dos espíritos” cria uma ambiência ao mesmo tempo lúdica e lúgubre. A escolha das cores dos objetos de cena, das roupas e o jogo de sombras e luz são impecáveis. A consciência de que tudo o que vemos está filtrado pelo olhar, e mais do que isso, pela imaginação fértil de Julieta.
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Para Fellini, as festas são então o ambiente ideal à materialização desse mundo espumoso das aparências no qual Julieta está imerso e que tal como uma bolha de sabão se desfaz facilmente no ar. Um mundo também dos espelhos, que refletem apenas imagens produzidas para serem desejadas e escamoteiam a essência fútil dos personagens. Advogados, michês, socialites peruas, hipnotizadores exóticos e outros personagens estão presentes em uma única sequência do filme. Essa atmosfera criada por Fellini nos leva a crer que o circo parece ser a sua grande matriz inspiradora, pois o entrar e sair de cena das atrações se tornam a base da sua construção, o efêmero como acontecimento, como uma gag que se materializa, mas que fugazmente se esvai no espaço. A existência volátil das pessoas espelha a essência decadente de uma Itália que vive caricaturalmente de uma imagem-clichê de si mesma. Nenhum artista expressou isso de forma tão intensa quanto Federico Fellini.                                   

Antes de entender os espíritos mencionados no título como algo religioso, porque não os compreender vinculados a uma interioridade da personagem de Julieta, aos seus muitos desejos reprimidos. Julieta muito representa a mulher madura italiana, rica e do lar da segunda metade do século 20, que luta ferozmente com sua educação católica, que é posta constantemente à prova diante de um mundo em que os valores estão cambiando velozmente. Por isso Julieta parece o tempo todo desamparada, como se a vida dela estivesse à deriva de si mesma. Julieta olha para si e não sabe o que vê. Ela se sente uma sombra, não só do marido, mas dela mesmo, daí os chapéus, véus, óculos escuros e guarda-chuvas serem tão presentes no filme, há um impulso intrínseco em Julieta para se sombrear diante do mundo e de si mesma. Sombras, que por sinal, inundam “Julieta dos espíritos”, Fellini abusa delas. Personagens entram e saem delas o tempo todo. Cores fortes contrastam com as sombras, em uma atmosfera ao mesmo tempo lúdica e perturbadora.                                                            
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“Julieta dos Espíritos” muito diz acerca do papel social da mulher em um mundo em grandes transformações. No filme, o marido é quem trabalha, é rico, independente (a mulher não conhece verdadeiramente sua rotina), infiel à esposa, que por sua vez não trabalha e fica a cuidar da casa e das empregadas, também mulheres. A presença da televisão e do exotismo religioso bem caracteriza o vazio existencial de mulheres onde o tempo é uma eternidade e o passatempo um companheiro inseparável.


Fellini em “Julieta dos espíritos” propõe um jogo temporal. Faz o passado interagir com o presente, afinal é no primeiro onde os fantasmas de Julieta estão vivos, mesmo que seja no segundo que suas manifestações apareçam. Julieta vê constantemente os demônios de sua educação repressora, calcada no catolicismo de um colégio de freiras. Mas como libertar-se desses fantasmas que a atormentam desde à infância, que reprimem seus desejos e estimulam sua passividade? E não casualmente, é com uma caravana circense que Julieta manda simbolicamente seus fantasmas passearem.

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