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O AMOR EM FUGA (1979) Dir. François Truffaut


Texto por Marco Fialho

A canção L'Amour en Fuite, cantada por Alain Souchon, não só dá o título ao último filme da saga Antoine Doinel como o define bem: "nós nos deixamos e nada explicamos. É o amor em fuga". O Amor em Fuga é acima de tudo um filme em retrospectiva, uma espécie de síntese e fechamento de um dos personagens mais longevos do cinema.

O que O Amor em Fuga marca é a principal característica de Doinel, o seu perpétuo movimento na vida, sua capacidade de ir e vir, mas sobretudo, de caminhar sempre, de nunca parar diante das situações. Essa é a sua maior subversão como personagem, encarar a vida, mesmo não sendo ninguém em especial, ou melhor, o que Truffaut faz é sublinhar as existências aparentemente mais banais como as que povoam mais a sociedade. Com ele, os conflitos se dissolvem, pois é justamente o seu eterno movimento que o impede de ficar estagnado. Sempre há algo na próxima esquina ou no próximo trem. Ele representa a dinâmica e a poesia contidas na vida comum.  

O Amor em Fuga permite ao espectador um confronto perene, pelo tempo com Doinel, um mergulho pelo seu passado, suas vivências e o que construiu pela vida. É uma conclusão de respeito, que mescla a leveza do cômico com a profundidade do drama. Truffaut edifica assim, essa obra que a princípio foi tão autorreferenciada, mas vale lembrar o quanto Doinel adquiriu uma vida própria e foi ao longo do tempo ganhando uma autonomia frente a Truffaut, como um filho que precisa aos poucos ter sua independência em relação aos pais.  

Truffaut realiza um mecanismo de montagem interessante, onde passado e presente vão se entrelaçando, como se Doinel estivesse em condições de por a sua vida em perspectiva, para poder pensar melhor o seu futuro. Assim, Truffaut cita sem constrangimento Os Incompreendidos, Antoine e Colette, Beijos Proibidos e Domicílio Conjugal através de trechos que interagem especialmente como lembranças, mas o passado não entra só pela porta dos filmes, adentra de outras maneiras também. Truffaut em entrevista afirmou que há em O Amor em Fuga "trapaças enormes, como falsos flashbacks (...) Na verdade, há fragmentos de cena que parecem ter se passado quatro ou cinco anos atrás, mas que foram gravados para Amor em Fuga." (in Gillain, Anne. O Cinema Segundo François Truffaut. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ, 1990, p. 378). Truffaut está a declarar nesse curto depoimento a própria essência do cinema, que nada mais é do que a arte de enganar, a arte em que o que importa é o que parece ser. 

Logo nas duas primeiras sequências, vemos Doinel com uma namorada (Sabine, interpretada por Dorothée Dani) e a sua configuração evidencia é uma nova relação. Na sequência seguinte, Doinel está em casa fazendo a barba e recebe a ligação de Christine (Claude Jade), cujo filho aparece já maior ao fundo e vemos que ela está em outra casa. Rapidamente, Truffaut já expõe a situação do momento, que o casal está separado, ou melhor, que aquele é o dia de assinar o divórcio. Essa é a hora em que trechos dos filmes começam a invadir O Amor em Fuga para estabelecer que essa será uma obra em que citações às outras obras acontecerão. Os trechos dos filmes entram pelo viés da memória, ora de Christine ora de Doinel. O óculos da juíza fará Doinel lembrar de uma cena de Domicílio Conjugal em que ele pede para Christine por os óculos na cama. Essas são citações que vão permear todo o filme.

Mas O Amor em Fuga mostra logo de cara sua conformação e o seu dinamismo narrativo. Assim que estão a sair do tribunal onde se separaram, se avista Colette (Marie-France Pisier), agora uma mulher adulta e advogada, que já relembra uma cena de Antoine e Colette, quando ambos tinham 20 anos de idade. Logo Doinel sai correndo e Colette comenta que ele continua o mesmo. É bastante interessante como Truffaut se utiliza de O Amor em Fuga para consolidar algumas ideias em torno de Antoine Doinel, como a de eterno movimento e de instabilidade emocional, o que lhe traz uma boa dose de imprevisibilidade à sua personalidade, algo que a canção de Alain Souchon já sinalizava no início do filme.

Curioso como Truffaut demarca esse traço instável de Doinel quando aborda os seus empregos. Em cada filme, Doinel está numa atividade profissional diferente. Se em Beijos Proibidos ele se vira como atendente em hotel e depois detetive, e depois, em Domicílio Conjugal, Doinel começa vendendo flores e depois vai trabalhar numa empresa de embarcação. Agora, em O Amor em Fuga, ele está se virando numa gráfica e depois aparece como escritor, inclusive com Colette lendo seu livro em um trem. Enfim, essa multiplicidade de atividades diz muito sobre Doinel e sua dinâmica instável pela vida. 

O Amor em Fuga nos faz pensar mais do que em Doinel, já que há uma preocupação de Truffaut de localizar onde está cada amor de seus personagens. Colette tem envolvimento com um vendedor em uma livraria, que é por sua vez, irmão de Sabine. Dessa forma, Truffaut começa a embaralhar os personagens na história e no tempo, em um artifício que evoca a magia do cinema, nessa eterna confusão entre vida e ficção, uma das marcas indeléveis do diretor. O próprio título do livro de Doinel, chamado de As Confusões do Amor, já traz algo de provocador e uma chave para o público entender quem é Antoine Doinel, pois isso é revelado em meio a uma briga entre ele e Sabine.

Truffaut já declarou diversas vezes o quanto acha charmosas histórias passadas em vagões de trem e em O Amor em Fuga ele próprio resolve entrar nesse turbilhão de mistérios que são as viagens de trem. As cenas entre Doinel e Colette no trem são umas das mais intensas do filme. Truffaut coloca Doinel como um infiltrado no trem e realiza ótimas cenas, com Colette relembrando a sua vida pelas palavras escritas por Doinel. O mais fantástico aqui é como Truffaut consegue introduzir de uma vez só literatura e cinema. A literatura puxando o cinema para a cena e o cinema fazendo o mesmo com a literatura. Se sempre foi assim nos filmes de Truffaut, aqui algo se expande com ambos trazendo o cinema para a cena, com Antoine e Colette adentrando pela narração do livro e quando estamos no filme citado, o que vemos é um livro sendo citado. São essas interações que fazem Truffaut ser um importante nome da história do cinema, pela sua capacidade de intensificar uma ideia, de fazê-la crescer dentro de um filme.

Posso estar correndo o risco de me alongar nessa sequência do trem, mas é que ela realmente provoca muitos elementos para análise. Truffaut mostra Colette lendo o livro de Doinel várias vezes e registra o seu prazer em participar dessa história, mas não para por aí. De repente, Truffaut flagra ela lendo o capítulo sobre Christine, como se fosse dado a ela a capacidade de entrar na vida de Doinel depois do término do namoro. O livro abre os filmes Beijos Proibidos e Domicílio Conjugal como um exercício de voyeurismo de Colette. Não sabemos o que ela está imaginando, mas vemos as imagens dos dois filmes sendo reexibidos na nossa frente. 

Mas há ainda um dado mais interessante que descobrimos por meio de Colette, de como que Doinel na sua narrativa sobre os fatos de sua vida, os recontou ao seu bel-prazer, ora sendo fiel, ora modificando, ora reinventando as histórias. Essa sequência toda narra a própria natureza da arte e seu poder de reiventar o mundo e isso não está em um discurso, mas como narrativa no filme e tudo isso em um trem, sim, nesse transporte mágico que está lá na origem do cinema e que tem o poder do movimento, e movimento é a palavra que melhor define Antoine Doinel. 

Ainda no trem, Doinel inicia sua nova narrativa sobre uma nova rocambolesca aventura romântica, agora com Sabine, a moça de uma foto rasgada pelo amante e colada por Doinel, que parte em busca de conhecê-la, pois já está completamente apaixonado por ela. As histórias do presente, do passado e do futuro, assim vão se enraizando em O Amor em Fuga, o que faz esse filme ser um dos mais criativos de Truffaut.

O Amor em Fuga é sobre a busca do amor, mas também sobre o amor pela literatura e pelo cinema. É um Truffaut pleno, cheio de vida, esperançoso nas ações humanas. Esse talvez seja o maior ato político de Truffaut, o de mostrar a sua crença na possibilidade do amor, não o amor como algo imutável, mas como inerente ao ser humano, capaz de realizações banais e surpreendentes ao mesmo tempo. Esse é um filme-síntese não só de uma saga, mas da essência do que representa o processo de uma criação artística e a própria arte para a humanidade. 

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