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OS INCOMPREENDIDOS (1959) Dir. François Truffaut


Texto por Marco Fialho

O longa-metragem de estreia de François Truffaut trazia em si uma marca indelével da recém-surgida Nouvelle Vague francesa, a ideia de liberdade, tanto do ponto de vista cinematográfico quanto ontológico. Para Truffaut, as questões imbricadas no ser eram as mais importantes para o artista. Sua visão ontológica, portanto, foi permeada por uma visão do social, isto é, pela cultura, aqui pensada como a herança enraizada nas convenções sociais impeditivas da felicidade do gênero humano. 

Os Incompreendidos, se comparado às outras obras iniciais da Nouvelle Vague, foi a mais inspirada no neorrealismo italiano, sobretudo em Alemanha Ano Zero (1948) e Paisá (1946), ambos de Roberto Rossellini. A obra de Truffaut, contudo, antes de ser concebida como essencialmente social, a exemplo do movimento italiano, optou por uma visão mais antológica, ao assumir o ponto de vista de um indivíduo, um menino de 12 anos na luta obstinada pela sua liberdade. Seus adversários no filme são todos bem conhecidos: a família, a escola, os reformatórios infantojuvenis; enfim, os baluartes da cultura estabelecida. 

O que Truffaut faz em Os Incompreendidos é nos convidar a acompanhar a trajetória desse menino, suas agruras e humilhações pelas prisões impostas pela repressora vida social, pela escola rígida, autoritária e tradicional; pela família hipócrita e despreparada para a educação; e pelos métodos violentos dos reformatórios utilizados para normatizar a visão rebelde de Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud). Todos esses espaços fechados e claustrofóbicos são contrastados com a liberdade inspiradora da rua, local ideal para o anonimato e suscetível ao esconderijo. Ela se consubstancia como o espaço possível de resistência. 

A ideia de liberdade também é aplicada à linguagem empregada no filme, sobretudo nos movimentos de câmera experimentados por Truffaut para proferir leveza em sua narrativa, como a incorporação do plano-sequência e o abuso de travellings (movimentos de câmera em geral sob trilhos, carrinho móvel ou carregada por uma grua, guindaste). Enquanto no neorrealismo italiano a rua encarnou o cenário da destruição ocasionada pela guerra, em Truffaut adquire outro sentido, mais simbólico, menos descritivo. Em Os Incompreendidos ela é a representação de uma Paris visualmente moderna, mas dissonante com a sociedade ainda arraigada em velhas tradições. Nela, o personagem de Doinel se depara com a vida parisiense mais pulsante, repleta de diversões, como os parques, os fliperamas, as sessões de cinema, além de ser o palco da descoberta da infidelidade conjugal de sua mãe. 

A relação com a rua fica mais evidente na sensacional sequência do cooper proposto pelo professor de educação física pela movimentada Paris. Ao combinar uma música marcadamente cômica, com tomadas realizadas em planos gerais em plongée (câmera alta), Truffaut constrói um momento expressivo de seu filme, em que prescinde de diálogos para defender a tese do distanciamento entre escola e aluno, ou entre corpo docente e discente. É encantador e divertido assistir à fuga coletiva dos alunos, a cidade vista como o perfeito esconderijo (tese inclusive desenvolvida durante todo o filme), uma aula de cinema do jovem diretor François Truffaut. Com criatividade, captura a postura autoritária da escola ao filmar professor sempre de costas para os alunos. A resposta deles é direta, imediata e à altura da arrogância professoral, uma debandada geral. 

A arrogância e o autoritarismo dos professores são temas constantes no decorrer de Os Incompreendidos. Logo na sequência inicial, Truffaut mostra os meninos passando de mão em mão a figura de uma mulher com roupas íntimas e vemos o professor punir o protagonista Antoine Doinel, pego ao passar a figura para outro colega da turma. Seu castigo é ficar de costas em um canto de parede até o final do recreio, pois, como diz o professor, "o recreio não é obrigatório, é uma recompensa", enfim, ele é para quem não infringe as normas. Doinel é prontamente trancado na sala de aula, mas não desiste do enfrentamento, passa a riscar a parede, e, em um gesto de contínua rebeldia, ouvimos a sua voz em off dizer "agora será olho por olho". Doinel demonstra o quanto resistente será a sucessão de castigos rigorosos impostos pela família e escola. 

A interpretação que Jean-Pierre Léaud imprimiu a Antoine Doinel é substantiva e de grande expressão, comparável ao efeito estético das interpretações de James Dean para o cinema norte-americano. A importante ousadia de Truffaut foi a de narrar seu longa inaugural do ponto de vista exclusivo de uma criança. Por isso, com Os Incompreendidos, Truffaut assume sua dívida ontológica com o clássico francês Zero de Conduta (1933), Jean Vigo, principalmente pelo fato salientado pelo importante pesquisador brasileiro Paulo Emílio Salles Gomes sobre a obra de Vigo: "Há no filme uma clara intenção de apresentar no microcosmos de um internato a divisão que, no macrocosmo da sociedade, opõe social, política e ideologicamente as classes" (in Jean Vigo. Paz & Terra, Rio de Janeiro, 1984, p.63).

A potência de Os Incompreendidos está na grande dose de verdade expressa nele, no aspecto autobiográfico, nas opções do ponto de vista narrativo, na escolha de filmar em apartamentos e ruas (tal como fizeram os neorrealistas italianos), como defende o próprio Truffaut: "Gastávamos muito menos dinheiro justamente por não gravarmos em estúdios. Não filmamos uma só cena em estúdio. Economizamos em setores que justamente costumam ser os mais caros: vedetes e estúdios." (in O Cinema Segundo François Truffaut. Nova Fronteira, RJ, 1995, p. 94)

Outro ponto fundamental contido em Os Incompreendidos é a grande e reconhecida idolatria de Truffaut pela linguagem da literatura, presente em toda a sua obra já estava presente na sua obra inaugural, quando Doinel ergue um altar para Honoré de Balzac e escreve uma redação, na verdade um plágio, de um texto do famoso escritor francês da primeira metade do século XIX. Inclusive, o único momento de voz over no filme é quando Doinel lê um trecho de uma obra de Balzac. A relação de Truffaut com o texto literário não confere à sua obra uma feição pesadamente verborrágico; pelo contrário, é inserido com sutileza, imprime nela uma lírica elegia.

Os Incompreendidos, como legítima obra da Nouvelle Vague, explora com eficácia a leveza dos equipamentos de filmagem em sua busca por imagens diretas, aparentemente simples, com um emprego de uma concepção fotográfica quase sem acréscimo de luz artificial, o que confere um maior realismo à narrativa. A fotografia, em consonância com a proposta estética de Truffaut, não sobressai perante o elemento mais impactante da narrativa: a construção da história pelo olhar de Antoine Doinel. 

A música, prioritariamente executada ao piano, constitui outro elemento a salientar uma ideia de simplicidade estética do filme, montada para realçar o tom melancólico do protagonista. A construção musical interage, em Os Incompreendidos, com planos mais gerais, desenha uma atmosfera para além do próprio Doinel, relaciona seu estado mental com uma França aparentemente moderna, mas ainda conservadora, na essência. 

Uma curiosidade do filme é a sua origem autobiográfica. Várias ações narradas aconteceram na vida de Truffaut, como o fato de ele ter ido para a prisão antes do reformatório, assim como o perfil dos pais de Doinel ser parecido com os dos seus pais, além da semelhança de sua vida estudantil conturbada com a de Doinel. Por isso, a sequência final, da fuga de Doinel do reformatório, constitui-se uma das mais significativas da obra de Truffaut, em que mais se evidencia a ideia sartreana de liberdade. A construção de um personagem não só desejoso de liberdade, mas disposto a lutar de maneira contundente e obstinada por ela, até as suas últimas consequências e forças, faz Os Incompreendidos atingir um viés filosófico de imensa repercussão, principalmente por ser essa peleja reinstauradora de um sentido baseado no resgate de uma instintivamente humana.  

O estilo cinematográfico refinado desenvolvido por Truffaut em sua trajetória se configura como um fundamental elemento definidor do conjunto de sua obra. Junto com seu colega Eric Rohmer, Truffaut pode ser considerado um dos cineastas mais elegantes do cinema mundial. No decorrer de sua carreira foi muito influenciado por Alfred Hitchcock, especialmente em sua fase hollywodiana, e isso ficaria mais evidente quando Truffaut entrevistou o cineasta inglês, que seria posteriormente transformado em um dos maiores materiais sobre cinema já realizados (Hitchcock/Truffaut). Inclusive, em muitos filmes de François Truffaut se desenha uma busca por uma mise-en-scène sofisticada, típica do mestre inglês, como um dos traços mais marcantes de sua filmografia.

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