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DOMICÍLIO CONJUGAL (1970) Dir. François Truffaut


Texto por Marco Fialho

Domicílio Conjugal retorna mais uma vez ao personagem Antoine Doinel para uma nova aventura, agora, numa fase onde ele e a personagem Christine (Claude Jade) estão devidamente casados. Se em Beijos Proibidos, Christine apareceu como uma jovem insegura, e até assustada com a fase adulta, aqui François Truffaut a reconstrói com personalidade e com um maior protagonismo. 

E logo no início, tem uma cena bem representativa do que estamos a dizer, que ocorre quando o novo casal visita os pais de Christine, e Truffaut volta a filmar uma cena de Beijos Proibidos, onde Doinel rouba um beijo de Christine no porão da casa. Só que agora é Christine que rouba um beijo dele no mesmo lugar de antes, só que agora é ela que o imprensa nas paredes de pedra. É evidente que há em Domicílio Conjugal uma inversão. Agora, é Doinel que parecerá relutante e indeciso nessa fase, partindo inclusive para um adultério, que logo a seguir se arrependerá.

François Truffaut edifica Domicílio Conjugal por meio de gags, algumas cômicas (mas uma homenagem do diretor ao cinema mudo), embora o resultado final passe ao largo do cômico. Assim, o filme possui uma fluência incrível e deliciosa, como se deslizasse suavemente por nossos olhos. Essas gags formam sequências que fazem de Domicílio Conjugal um todo bem ajeitado, diria até, redondo. Truffaut bem sabia brincar com a forma narrativa clássica, injetando nela elementos, que pelo menos na aparência, a contradiziam. E aqui, há esse diálogo instigante, onde tudo parece seguir uma ordem, mas nem tanto assim.     
     
Curioso como Truffaut cria um cenário irônico ao colocar um casal maduro como vizinhos dos recém-casados, em que o homem é um cantor de ópera e sua mulher está sempre se empetecando e o atrasando para os compromissos. Essa dualidade entre maturidade em construção do casal novo versus maturidade construída do casal mais experiente estará presente até o encerramento de Domicílio Conjugal e tratado de uma forma irônica pelo diretor, quando visualmente um relacionamento se aproxima do outro, através de uma gag utilizada em vários momentos, onde o cantor de ópera joga a bolsa e o casaco da esposa nas escadas quando ela está atrasada, com Antoine reproduzindo o mesmo gesto com Christine.

A discussão da rotina do casal e a chegada do adultério estão no centro da narrativa de Domicílio Conjugal e Truffaut trata do assunto de maneira até convencional, dentro do esperado. A entrada de Doinel na fase adulta traz elementos complicados, já que ele sempre apelou para as prostitutas como maior fonte para acalmar seus desejos sexuais e novamente o fará já como homem casado. Aqui, o sexo com a amante japonesa (Mademoiselle Hiroko) cai rapidamente na rotina e Truffaut nos mostra isso com grande habilidade narrativa com muitas repetições das refeições. Mas nesse contexto, Truffaut filma uma cena que deve ser uma das melhores, se não for a melhor, do filme: quando Christine descobre a traição de Doinel, ela se arruma e se maquia como uma japonesa, monta uma mesa baixa e senta no chão. Se tudo parece soar como uma graça, logo que a câmera se aproxima, se pode ver uma lágrima a escorrer de seu rosto, o que quebra rapidamente a expectativa engraçada do espectador. Esse é um artifício em que Truffaut pinça da obra de Ernst Lubitsch, de criar um clima para depois revertê-lo com uma quebra logo em seguida. 

Tem outros momentos ainda muito interessantes, quando o casal está separado, e Truffaut realiza uma montagem paralela para discutir o relacionamento deles. Assim, ouvimos de uma cena, Christine falando de Doinel com a vizinha, enquanto há um corte e vemos Doinel comentando sobre Christine com um amigo, para logo depois, Truffaut voltar para Christine que ainda está a falar de Doinel. Faz-se então quase que uma conversa onde ambos conversam indiretamente através dessas conversas paralelas. Inclusive esse método de Truffaut, de um plano contradizer a outro foi intencional não só nessa sequência da separação. Esse truque amplia o tema e lhe confere matizes diversas, capazes de por a discussão mais aberta, sem fecha-la. E esse truque de montagem acontece novamente na sequência final, quando o casal encontra os vizinhos na escada.   

Há também uma outra cena, que chega até a ser isolada do contexto do filme, mas que o alimenta enquanto procedimento, em que se homenageia o grande cineasta Jacques Tati (dos clássicos irrevogáveis Meu TioPlay Time As Férias do Sr. Hulot), quando vemos um dublê dele entrar de maneira atrapalhada em um vagão de um trem. Como Truffaut faz um filme a partir de gags, essa homenagem é inteiramente justificada e nos faz na hora abrir um sorriso gostoso por reconhecer o tributo ao mestre do humor mímico, que unia com louvor o trágico e o cômico.

É bastante interessante o quanto Truffaut demonstra a maturidade de Christine, com a sua aparente e falsa desistência do relacionamento, o que vai fazendo Doinel voltar a ver suas posições frente ao casamento e rever seu caso com a japonesa, que na altura do campeonato estava para lá de desgastado. Por isso, o papel de Christine cresce em Domicílio Conjugal em comparação a Beijos Proibidos, enquanto Antoine Doinel espiritualmente tem um arrefecimento em relação aos filmes anteriores. O Doinel rebelde, que pouco fala, mas que reage muito, fica aqui mais enquadrado, pois agora tem esposa, emprego e filho. Sua maior dúvida se restringe a ideia de amor, sua crise existencial passa pelo amor e pelo desejo sexual. Mas até quando o seu amor por Christine vai durar? Essa pergunta para o espectador vai perdurar até  O Amor em Fuga (1979), filme que encerra o ciclo fílmico de Antoine Doinel. 

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