Texto por Marco Fialho
Domicílio Conjugal retorna mais uma vez ao personagem Antoine Doinel para uma nova aventura, agora, numa fase onde ele e a personagem Christine (Claude Jade) estão devidamente casados. Se em Beijos Proibidos, Christine apareceu como uma jovem insegura, e até assustada com a fase adulta, aqui François Truffaut a reconstrói com personalidade e com um maior protagonismo.
E logo no início, tem uma cena bem representativa do que estamos a dizer, que ocorre quando o novo casal visita os pais de Christine, e Truffaut volta a filmar uma cena de Beijos Proibidos, onde Doinel rouba um beijo de Christine no porão da casa. Só que agora é Christine que rouba um beijo dele no mesmo lugar de antes, só que agora é ela que o imprensa nas paredes de pedra. É evidente que há em Domicílio Conjugal uma inversão. Agora, é Doinel que parecerá relutante e indeciso nessa fase, partindo inclusive para um adultério, que logo a seguir se arrependerá.
François Truffaut edifica Domicílio Conjugal por meio de gags, algumas cômicas (mas uma homenagem do diretor ao cinema mudo), embora o resultado final passe ao largo do cômico. Assim, o filme possui uma fluência incrível e deliciosa, como se deslizasse suavemente por nossos olhos. Essas gags formam sequências que fazem de Domicílio Conjugal um todo bem ajeitado, diria até, redondo. Truffaut bem sabia brincar com a forma narrativa clássica, injetando nela elementos, que pelo menos na aparência, a contradiziam. E aqui, há esse diálogo instigante, onde tudo parece seguir uma ordem, mas nem tanto assim.
Curioso como Truffaut cria um cenário irônico ao colocar um casal maduro como vizinhos dos recém-casados, em que o homem é um cantor de ópera e sua mulher está sempre se empetecando e o atrasando para os compromissos. Essa dualidade entre maturidade em construção do casal novo versus maturidade construída do casal mais experiente estará presente até o encerramento de Domicílio Conjugal e tratado de uma forma irônica pelo diretor, quando visualmente um relacionamento se aproxima do outro, através de uma gag utilizada em vários momentos, onde o cantor de ópera joga a bolsa e o casaco da esposa nas escadas quando ela está atrasada, com Antoine reproduzindo o mesmo gesto com Christine.
A discussão da rotina do casal e a chegada do adultério estão no centro da narrativa de Domicílio Conjugal e Truffaut trata do assunto de maneira até convencional, dentro do esperado. A entrada de Doinel na fase adulta traz elementos complicados, já que ele sempre apelou para as prostitutas como maior fonte para acalmar seus desejos sexuais e novamente o fará já como homem casado. Aqui, o sexo com a amante japonesa (Mademoiselle Hiroko) cai rapidamente na rotina e Truffaut nos mostra isso com grande habilidade narrativa com muitas repetições das refeições. Mas nesse contexto, Truffaut filma uma cena que deve ser uma das melhores, se não for a melhor, do filme: quando Christine descobre a traição de Doinel, ela se arruma e se maquia como uma japonesa, monta uma mesa baixa e senta no chão. Se tudo parece soar como uma graça, logo que a câmera se aproxima, se pode ver uma lágrima a escorrer de seu rosto, o que quebra rapidamente a expectativa engraçada do espectador. Esse é um artifício em que Truffaut pinça da obra de Ernst Lubitsch, de criar um clima para depois revertê-lo com uma quebra logo em seguida.
Tem outros momentos ainda muito interessantes, quando o casal está separado, e Truffaut realiza uma montagem paralela para discutir o relacionamento deles. Assim, ouvimos de uma cena, Christine falando de Doinel com a vizinha, enquanto há um corte e vemos Doinel comentando sobre Christine com um amigo, para logo depois, Truffaut voltar para Christine que ainda está a falar de Doinel. Faz-se então quase que uma conversa onde ambos conversam indiretamente através dessas conversas paralelas. Inclusive esse método de Truffaut, de um plano contradizer a outro foi intencional não só nessa sequência da separação. Esse truque amplia o tema e lhe confere matizes diversas, capazes de por a discussão mais aberta, sem fecha-la. E esse truque de montagem acontece novamente na sequência final, quando o casal encontra os vizinhos na escada.
Há também uma outra cena, que chega até a ser isolada do contexto do filme, mas que o alimenta enquanto procedimento, em que se homenageia o grande cineasta Jacques Tati (dos clássicos irrevogáveis Meu Tio, Play Time e As Férias do Sr. Hulot), quando vemos um dublê dele entrar de maneira atrapalhada em um vagão de um trem. Como Truffaut faz um filme a partir de gags, essa homenagem é inteiramente justificada e nos faz na hora abrir um sorriso gostoso por reconhecer o tributo ao mestre do humor mímico, que unia com louvor o trágico e o cômico.
É bastante interessante o quanto Truffaut demonstra a maturidade de Christine, com a sua aparente e falsa desistência do relacionamento, o que vai fazendo Doinel voltar a ver suas posições frente ao casamento e rever seu caso com a japonesa, que na altura do campeonato estava para lá de desgastado. Por isso, o papel de Christine cresce em Domicílio Conjugal em comparação a Beijos Proibidos, enquanto Antoine Doinel espiritualmente tem um arrefecimento em relação aos filmes anteriores. O Doinel rebelde, que pouco fala, mas que reage muito, fica aqui mais enquadrado, pois agora tem esposa, emprego e filho. Sua maior dúvida se restringe a ideia de amor, sua crise existencial passa pelo amor e pelo desejo sexual. Mas até quando o seu amor por Christine vai durar? Essa pergunta para o espectador vai perdurar até O Amor em Fuga (1979), filme que encerra o ciclo fílmico de Antoine Doinel.
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