Pular para o conteúdo principal

A BATALHA DA RUA MARIA ANTÔNIA (2023) Dir. Vera Egito


Texto por Marco Fialho

Se Ainda Estou Aqui ampliou a necessidade de se rever o absurdo da violência da ditadura a partir de um ambiente de uma família abastada, A Batalha da Rua Maria Antônia, leva essa violência para dentro de uma instituição pública de ensino superior, no caso, da Faculdade de Filosofia da USP. E a diretora e roteirista Vera Egito realiza um filme com imensa pungência ao sublinhar a necessidade da luta contra os regimes de exceção, atualidade essa que também se afinal com o filme de Walter Salles.

O filme narra as 21 horas que antecederam um conflito entre estudantes e o exército durante o regime militar e que culminou em uma tragédia histórica para o país. A diretora arremessa os espectadores para dentro de um ambiente de grande tensão, movido por 21 planos-sequências de tirar o fôlego. Aqui, os planos-sequências mostram as várias perspectivas da história, examinado o pensamento de professores e alunos, suas atitudes e decisões tomadas no calor da hora, no ápice da luta contra a ditadura militar. 

O título do filme até poderia ser no plural, batalhas, já que na prática ocorreram duas delas: uma com os estudantes da USP com os "estudantes" (as aspas fazem sentido porque a ditadura infiltrava agentes treinados para alimentar o conflito com os estudantes críticos à ditadura) da Faculdade Mackenzie, que ficava em frente ao prédio da USP. A outra batalha que pode ser registrada ocorreu ao final da primeira, quando entra em cena o exército como agente opressor.

Um dos pontos altos de A Batalha da Rua Maria Antônia é o seu ótimo elenco e a articulação que Vera Egito faz com os personagens em cena, o seu esforço para que todos tenham uma função bem definida em cada um dos 21 blocos de filmagem. Os líderes estudantis, formados por Benjamin (Caio Horowicz), Maria Helena (Juliana Gerais), Angela (Isamara Castilho) estão maravilhosos em cena e Vera Egito sabe jogar com a força de Lilian (Pâmela Germano), uma personagem que oscila entre a indecisão por questões pessoais e uma voracidade revolucionária ilimitada. Ela represa tanta energia em si que sua explosão torna-se imprevisível. 

Ainda tem os professores, divididos entre os que se comprometem com a luta estudantil contra a ditadura, o caso de Antônio (Philipp Lavras) e aqueles em cima do muro, até simpáticos, mas optando pelo não engajamento em um primeiro momento, caso da professora Leda (Gabriela Carneiro da Cunha), figura fundamental para o desenvolvimento do roteiro. Outro personagem importante é o do marido de Leda, que funciona como um informante para os militares. As aulas de Leda sobre Aristóteles soam deslocadas da realidade extrema vivida pelos estudantes e Vera Egito salienta esse viés alienado da professora. 

A fotografia em preto e branco confere aquele clima documental ao filme, além de somar à atmosfera um quê de sombrio. A locação original é perfeita para situar uma história que se passa em outubro de 1968, isto é, às vésperas da decretação do AI-5 (Ato institucional n° 5, editado pelos militares em dezembro do mesmo ano) e que retirou as garantias constitucionais e serviu para mergulhar o país em um processo autoritário que instaurou de vez a repressão política e a tortura à oposição. 

A Batalha da Rua Maria Antônia é um drama político que precisa ser visto e discutido pelo país, realizado por uma diretora promissora que a partir da linguagem audiovisual propõe vários pontos de vistas que enriquecem o fato histórico abordado. Ainda temos o luxo de ver Clara Buarque como uma universitária de 1968 cantando Roda Viva, composta por seu avô Chico Buarque, uma das canções marcantes da época e que é tema do filme, escrita para um episódio semelhante ocorrido no Rio de Janeiro, quando os militares invadiram a peça de mesmo nome da música. Um filme deveras  emocionante e que vem reforçar a ideia de que não devemos mais instaurar regimes ditatoriais de qualquer natureza no país. 

Comentários

  1. Execelente apreciação do filme. Irretocável. "A batalha da rua Maria Antônia" é, desde já, um filme imprescindível para que as novas gerações, sobretudo, compreendam o quê, de fato, foi a ditadura militar no Brasil, suas repercussões e desdobramentos e, assim, a democracia retome sua centralidade para o Estado e a sociedade brasileiro. Ao lado de "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, o filme de Vera Egito nos chega em excelente momento: mais que nunca, mais que tudo, jamais podemos deixar cair no esquecimento ou resvalar para a indiferença os anos de chumbo que vivemos neste país. Ditadura nunca mais, anistia jamais.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...