Pular para o conteúdo principal

O SUCESSOR (2024) Dir. Xavier Legrand


Texto por Marco Fialho

obs. me esforcei para não mencionar nenhum spoiler importante, apenas dados que já se encontram na sinopse do filme.    

Depois de surpreender com Custódia, filme de 2017, o próximo trabalho de Xavier Legrand era aguardado com grandes expectativas. Só agora em 2024, que o diretor traz a público O Sucessor. A primeira palavra que me vem a cabeça após assisti-lo é perturbador. Legrand demonstra ser um arquiteto talentoso, tanto como construtor de planos quanto como criador de tensão e condução da atenção. Sem pressa, o diretor vai enredando o espectador na sua trama maquiavélica. 

Elias (Marc-André Grondin) é um estilista de moda em franca ascensão, está prestes a assinar uma grande coleção na companhia que trabalha, quando recebe a notícia da morte do pai, que mora no Canadá, depois de mais de 20 anos sem vê-lo. O título do filme já traz diversas leituras possíveis ao instigar de qual sucessão o filme está a tratar, se é a do trabalho ou a do pai. Como já havia feito em Custódia, Legrand joga a discussão de seu filme para além do que é aceitável socialmente e explora habilmente os limites morais dos personagens. 

De repente, o homem de sucesso, realizado profissionalmente, precisa lidar com situações imprevisíveis, mas é como Legrand aborda esses contextos o melhor de O Sucessor. O trabalho central da direção é o despertar da curiosidade do público e o uso dos enquadramentos que não mostram o que queremos ver. Legrand também elaborou um roteiro em que esconde ao máximo informações, o que colabora para tensionar a narrativa. Quando o amigo do pai procura se aproximar de Elias, este rejeita e ficamos sem saber quem exatamente é esse amigo ou até mesmo chegamos a duvidar dele e da vizinha, que igualmente quer um maior contato com ele. 

Xavier Legrand visivelmente quer estabelecer um vínculo com o espectador, mas o faz como um jogo cinematográfico perturbador. Atiça a curiosidade e faz o espectador se perguntar constantemente o que está acontecendo ou porque o personagem está agindo assim. A câmera não desgruda de Elias, o que faz com que nós tenhamos o mesmo nível de conhecimento dele na trama, o que é por si angustiante. Tudo o quanto vai se revelando em O Sucessor é devastador não só para o protagonista quanto também para nós espectadores. As portas funcionam como um prenúncio de terror, a cada nova que vai se abrindo a angústia aumenta.

Por isso, o suspense é cinematograficamente o ponto forte de O Sucessor. Entretanto, a força de O Sucessor está na revelação de um mundo subterrâneo posto para além das aparências. Mostrar esse mundo imerso na crueldade, na hipocrisia e falsidade é o toque final que Legrand nos reserva como um elemento que desconcerta as ideias que tínhamos até aquele momento. O jogo que o diretor realiza com a câmera é fantástico nesse sentido, de sempre deixar claro que não vai mostrar tudo o que queremos ver, mas apenas o que interessa até aquele instante. É incrível o jogo de gato e rato que Legrand faz com o espectador e a história vai virando uma tortura, já que os caminhos só vão revelando contornos insuportáveis. O filme não deixa de ser uma homenagem de Legrand aos filmes americanos de serial killers, mas com o devido toque francês nesse popular subgênero do suspense. 

Quando pensamos em toda a estruturação da história, do começo que desnuda o mundo espetaculoso que vive o protagonista, repleto de holofotes e glamour, uma ascensão profissional digna de um manual de sucesso. Contudo, há o aviso da morte do pai e somente ele pode resolver a papelada em outro país. Elias precisa voltar às suas origens. A volta ao Canadá é pensada de modo a ser mais do que breve, muito breve. Se pensarmos em tudo o que vai ocorrer depois, chegamos a conclusão de que aquele início é fundamental para as tomadas de decisão do protagonista, dele pensar na sua imagem e condição de sucesso profissional. Essa é a maestria de Xavier Legrand, jogar com as antíteses da vida construída na França e o que ele encontra no Canadá. Essa relação entre essas vidas é que forja as decisões e o próprio filme. 

Acredito ser O Sucessor um filme sobre o nosso tempo. Elias sofre de crise de ansiedade pela pressão exercida pelo trabalho e a situação comum de se ter famílias desintegradas. Se Legrand queria acertar na falência do patriarcalismo, o seu tiro foi certeiro e talvez até mais abrangente que isso. A morte do pai abre um rombo de imprevisibilidade e desnuda o mundo das aparência que vivemos. É possível sermos uma pessoa no social e outra no privado e Legrand leva essa sentença até o limite. E mais, a nossa imagem é o que temos de mais importante, não mais solidariedade e dignidade. O mais interessante é o mundo paralelo que o diretor cria em relação ao mundo dos ritos sociais. Enquanto todos os protocolos e cerimoniais do enterro do pai são levados adiante, a vida privada sinistra de Elias e do pai só são conhecidas por nós, elas são algo à parte e indigestas. 

O cinema de Xavier Legrand costura com excelência tanto a superfície da pele social quanto às suas vísceras mais profundas e nojentas. Da primeira a última cena, o diretor penetra nos recantos mais sublimes e obscuros de um personagem disposto a manter intacto a superfície do seu sucesso, mesmo que tenha que jogar as vísceras incômodas para debaixo do tapete. A sequência do ritual de partida do pai é uma das melhores que o cinema de 2024 nos brindou até o momento. Ela mostra tudo o que Legrand quis dizer com o filme. Enquanto o choro de Elias para os outros personagens significava uma coisa, para ele mesmo denota outra completamente diferente. E o público, envolvido de maneira voluntária na história, por amor ao voyeurismo hitchcockiano, fica atônito, pois é o único a dividir o choro com Elias, e a alegria cinematográfica com Legrand.

Comentários

Postar um comentário

Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

BANDIDA: A NÚMERO UM

Texto de Marco Fialho Logo que inicia o filme Bandida: A Número Um , a primeira impressão que tive foi a de que vinha mais um "favela movie " para conta do cinema brasileiro. Mas depois de transcorrido mais de uma hora de filme, a sensação continuou a mesma. Sim, Bandida: A Número Um é desnecessariamente mais uma obra defasada realizada na terceira década do Século XXI, um filme com cara de vinte anos atrás, e não precisava, pois a história em si poderia ter buscado caminhos narrativos mais criativos e originais, afinal, não é todo dia que temos à disposição um roteiro calcado na história de uma mulher poderosa no mundo do crime.     O diretor João Wainer realiza seu filme a partir do livro A Número Um, de Raquel de Oliveira, em que a autora narra a sua própria história como a primeira dama do tráfico no Morro do Vidigal. A ex-BBB Maria Bomani interpreta muito bem essa mulher forte que conseguiu se impor com inteligência e força perante uma conjuntura do crime inteir...