O rombo que a morte de Gal abriu no chão do Brasil
Texto de Marco Fialho
Nós só damos conta sobre o real papel da arte na sociedade quando um artista morre e vemos um imenso clarão se abrir à nossa frente. E foi exatamente o que ocorreu quando se anunciou inesperadamente a morte da cantora Gal Costa, na manhã do dia 09/11/22. Rapidamente começamos a colocar a obra dela em perspectiva e pudemos reparar o tanto que Gal influiu na construção de alguns pilares fundamentais da música que habitualmente chamamos de MPB, seja pela ousadia com que inseriu uma guitarra psicodélica em nossa música, a poderosa e incrível guitarra de Lanny Gordin, ou por sua voz capaz de romper com todas as convenções do que se julgava ser cantar no Brasil.
Gal durante os anos mais conturbados da vida política e social brasileira, ali nos finais dos 1960 e início dos 1970, marcou época ao nutrir uma imagem contestadora, mesmo que admitamos que ela raramente fez discursos políticos e estéticos impactantes. Não importava nela esses discursos, ela soube potencializar a rebeldia em outros termos. Gal era, fundamentalmente, uma artista da ação, do fazer libertário, pensado e elaborado teoricamente. Enquanto Caetano e Gil performavam fervorosos discursos, Gal gerava calores nas plateias com sensualidade, gestos, caras e bocas. À época, Gal era de uma beleza selvagem e indomável, imposta por uma voz gutural que politizava o seu canto firme. Havia ali uma gravidade, uma perplexidade, algo que deixava o nosso mundo em suspenso. Meu Nome É Gal - Gal Costa - LETRAS.MUS.BR
Não casualmente, "Meu nome é Gal" é uma das canções icônicas de seu repertório. Ela é, ao mesmo tempo, fotográfica, comportamental, autobiográfica, textual e paradigmática. Ela deixava evidente que a arte de Gal estava acima realmente de tudo, mas ao mesmo tempo junto e misturado a esse tudo. Antes mesmo de uma ideia de desafio havia ali um atrevimento da voz com a guitarra, um instrumento eletrônico, onde a voz magnética de Gal se revela um instrumento potente. Gal desafiava os limites. Por essa e por tantas outras que ela foi a nossa maior síntese musical. Ela é essencialmente brasileira por mostrar a possibilidade de se constantemente se superar e de ir além, de transgredir o mundo e a música. Era uma Gal total, um fenômeno da natureza, brutalmente desafiando um instrumento criado pelo homem para fazer um som não humano, uma disputa entre a cultura e a natureza, onde só a música e nossos sentidos saíam vitoriosos.
Gal Costa tinha um dom raro para uma cantora, dar cores ao seu canto. Isso mesmo, em Gal, as palavras adquirem cor. Lembro "Baby", canção de Caetano imortalizada na voz dela, a primeira que minha memória remete à voz Gal. Quando eu a escutava eu via imagens, mas não só. Avistava eu diversas cores, como se a música pudesse ser um pincel a colorir cada verso cantado. Nada mais moderno e colorido do que a canção "Baby". Entre azuis, sorvetes e uma canção do Roberto, vivemos na melhor cidade da América do Sul. A música é isso, uma possibilidade factível de um mundo que não existe fora da harmonia daqueles sons reunidos daquela forma casados com uma voz inserida exatamente naquele tempo e tom e com aquela afinação tal. Enfim, a música é uma viagem a um lugar inimaginável, é um tipo de magia. Em "Errática", canção de Caetano para o disco "O sorriso do gato de Alice" (1994), Gal cantou assim: "Nesta melodia em que me perco / Quem sabe, talvez um dia / Ainda te encontre minha musa / Confusa". Se perder na melodia para se achar. Essa é uma ótima ideia para se chegar a algum lugar e disso Gal sempre entendeu bem. Errática - Gal Costa - LETRAS.MUS.BR
Existem muitos agudos na chamada MPB, mas o mais bonito, pra mim, sempre foi o de Gal, que me desculpe Tetê Espíndola. O agudo de Gal tem uma elegância que não é habitual nos agudos. Tem um quê de aveludado naquele agudo. Como? Realmente não sei, mas que há, há. Em "Olhos verdes", canção exaltação clássica de Vicente Paiva, o agudo de Gal desfila pelas cores e nos enche a alma de felicidade ao sentirmos aquelas palmeiras a balançar. Olhos Verdes - Gal Costa - LETRAS.MUS.BR
Lembro o quanto gostava do disco segundo disco de Gal, o chamado de tropicalista, que foi o primeiro que eu ouvi dela. Nele, Gal está com cabelos em black power a tomar toda a parte de cima da capa e com uns babados a inundar a parte de baixo, uma beleza rara de se ver. Era impossível não ficar admirando aquela capa, o quanto uma simples imagem de um rosto em close poderia ser tão político. Depois de um tempo, esse disco desapareceu da minha casa dos meus pais e o dei como perdido. Mas uns cinco ou seis anos depois eu revi o exato mesmo LP na casa de uns tios. Fiquei emocionado, não toquei no assunto de como adquiriram o disco, mas me alegrei de saber aonde o mesmo se encontrava. Pedi à minha tia para tocá-lo, ela ficou meio sem graça quando percebeu da minha desconfiança, pois eu disse que eu tinha um LP igual que não sabia onde estava. Desse dia me marcou bem a introdução da primeira e inusitada faixa, "Não identificado", lembro que fiquei emocionado e mais ainda quando eu a ouvi em "Bacurau" (2019), filme já clássico do Kleber Mendonça Filho. Nem todo objeto nosso surrupiado tem um final infeliz. E Gal me provou isso quando eu a vi novamente encantando outros ouvidos. Não Identificado - Gal Costa - LETRAS.MUS.BR
Se lá no primeiro LP feito em dupla com Caetano em 1967 a referência principal era o mestre João Gilberto, os próximos foram torneando aspectos mais selvagens e cada vez mais autorais. De 1969 a 1974, Gal manteve esse estilo mais rústico, sempre com uma pegada psicodélica voltada para o experimental. Em 1976, há realmente outra imensa guinada na carreira de Gal. Fazer um disco em homenagem a outro mestre, agora Dorival Caymmi. A energia passa a trilhar por um caminho mais harmonioso, com a voz mais domada e mais controlada para um mercado mais abrangente e popular. Gal já vinha do enorme sucesso da canção de abertura da novela "Gabriela" (1975) e emendou nesse que é um dos discos mais bonitos de sua longa carreira. São versões modernizadas, com arranjos rebuscados e eletrificados na medida certa para atualizar o mestre das canções do mar, sempre lembrado pelo violão e a voz grave. Gal retorce esse princípio e com o agudo de seu canto deu novos ares para um conjunto de clássicas composições. Abriu caminho para o que viria muito em breve. Um sucesso comercial cada vez mais crescente e infinito, um estouro duradouro poucas vezes visto no mercado fonográfico. No meio do caminho ainda teve a explosão catártica do encontro musical com os amigos Bethânia, Gil e Caetano nos "Doces Bárbaros" (1976), um precioso momento, com certeza para energizar e invocar os ventos das mudanças que viriam.
Os discos de Gal que eu mais ouvi foram "Água Viva" (1978) e "Gal Tropical" (1979), que curiosamente, foram as obras que jogaram definitivamente Gal Costa nos braços do povo. O sucesso estrondoso de "Folhetim", um bolero sedutor escrito por Chico Buarque especialmente para Gal, onde um arranjo contornado pelo inebriante saxofone alto de Jorginho da Flauta. E a pérola que é "Paula e Bebeto" (uma rara parceria de Milton e Caetano) na voz de Gal, onde se oficializou nacionalmente "que qualquer maneira de amar vale a pena"? Esse disco tem uma das maiores preciosidades da carreira de Gal, a sua interpretação para "Mãe" (Caetano), uma das músicas mais impactantes e profundas feita para uma mãe: "Sou triste, quase um bicho triste / E brilhas mesmo assim / Eu canto, grito, corro, rio / e nunca chego a ti" Mãe - Gal Costa - LETRAS.MUS.BR
E como falar do disco "Gal Tropical" (1979), um dos mais bem arranjados e gravados da história da música brasileira. É para escutar todos os detalhes que cada canção traz para as soluções harmônicas e de ritmo. E como a voz de Gal está perfeita em todos os meandros de cada faixa. E prestar a atenção nas guitarras mágicas de Robertinho do Recife em todas as faixas, não só no desafio inacreditável e quase irreal de guitarra e voz em "Meu nome é Gal". Mas ainda tem Juarez Araújo com seu sopro divino em diversas faixas como "Noites cariocas" (um mágico encontro de Jacob do bandolim e Hermínio Bello de Carvalho), "Samba rasgado" (Portello Juno e W. Falcão), "Olha" (Roberto e Erasmo). "Gal Tropical" não pode ser citado sem esquecermos de duas canções que viraram clássicos eternos na voz marcante de Gal: o primeiro é a beleza suntuosa de "Juventude transviada" (Luiz Melodia) e a outra é uma das maiores gravações já feitas de uma música brasileira, a sempre arrepiante "Força estranha". Enquanto todo o disco possui arranjos mirabolantes e sofisticados, "Força estranha" é cantada com apenas um violão acompanhando, o que dá um destaque sobrenatural para a força estranha que vem da voz de Gal. É de uma potência, uma emoção e um talento para poucos. E talvez seja a poesia mais iluminada de Caetano Veloso: "Eu vi o menino correndo eu vi o tempo / Brincando ao redor do caminho daquele menino / Eu pus os meus pés no riacho / E acho que nunca os tirei / O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei / Eu vi a mulher preparando outra pessoa / O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga / A vida é amiga da arte / É a parte que o sol me ensinou / O sol que atravessa essa estrada que nunca passou / Por isso uma força me leva a cantar / Por isso essa força estranha / Por isso é que eu canto não posso parar / Por isso essa voz tamanha / Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista / O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece" Força Estranha - Gal Costa - LETRAS.MUS.BR
A partir desse momento, Gal Costa se tornaria uma unanimidade. E foi "Balancê" (João de Barros e Alberto Ribeiro), que se tornou uma loucura Brasil afora que abriu os caminhos de Gal para entrar para um seleto time das maiores intérpretes nacionais. Esse resgate de sucessos de outras épocas tornou-se uma marca também de Gal, além de colocá-la como uma cantora de carnaval, vide o sucesso que virá a seguir com "Festa do interior" (Moraes Moreira e Abel Silva). Gal se tornará a partir dos anos 1980 o maior acontecimento musical brasileiro até 1984, quando lança "Gal Profana", para proporcionar um tempo na carreira, que retornaria somente em 1990, com "Gal plural". Talvez esse seja o momento em que a carreira de Gal mais precisou de reformulação, pois os caminhos já estavam desgastados demais e "Plural" nos mostrou isso. Para sanar a crise, Gal dá uma nova parada de 4 anos e apela para dois discos conectados com os compositores que mais a alimentaram na carreira. O resultado disso é o belíssimo disco "O sorriso da gato de Alice" (1994) e um razoável "Mina d'água do meu canto" (1995). "O sorriso do gato de Alice" para mim foi muito especial, porque foi o disco que eu e minha esposa mais escutávamos durante a gravidez do nosso filho. Tem uma imagem de Gal que não sai da minha cabeça, embora ela nem esteja presente fisicamente na imagem. É quando Gal faz um "dueto" com Fernanda Torres no filme-exílio "Terra estrangeira", de Walter Salles e Daniela Thomas. Como tirar da cabeça aquele "Vapor barato" entoado com tanta tristeza por Fernandinha? Uma única imagem que sintetizou todo o período do desastroso Governo Collor.
Quero finalizar esse texto-homenagem com o disco "Recanto" (2011). O que ele mais representa é a capacidade de Gal de não ter medo de entrar em projetos inovadores. O disco, apenas com composições de Caetano e produzido pelo próprio, trouxe um frescor para a carreira de ambos. A ousadia dos arranjos ficará na história como um dos trabalhos mais arriscados de um artista. É Gal fazendo o seu melhor: nos surpreendendo e emocionando até aos pelos mais recônditos do nosso corpo. Se Gal sempre salientou misteriosamente as cores em seus discos, em "Recanto" podemos dizer que é o seu único trabalho em P&B. É Gal deixando gravado em nós a sua voz rascante, de quem sabe o diz, de quem sabe como dizer a mensagem que precisa ser dita. Gal tinha o sorriso da certeza, que nos despertava a confiança. O político em Gal está em cada canção que ela escolhe gravar, porque um dos maiores atributos de um grande intérprete é saber escolher o repertório e os músicos que o acompanharão para fazer o som que precisamos ouvir. E Gal magicamente sabia fazer isso como poucos sabem. Por isso Gal será eterna , pelo menos é assim que os meus pelos me dizem.
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