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FOURTEEN - Dirigido por Dan Sallitt

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"Fourteen" e o mórbido caos em que vivemos

"Fourteen" é o quarto filme de Dan Sallitt, embora seja o primeiro a ser distribuído comercialmente no Brasil. Ao ver esse seu trabalho recente bate uma imensa curiosidade acerca de seus outros cinco filmes, pois há um estilo em "Fourteen" que merece ser pensado em uma retrospectiva comparativa com outras histórias realizadas por ele, que pela leitura das sinopses, apontam também para discussões em torno de relacionamentos. Cria-se uma enorme expectativa em torno de Sallitt, já que tudo indica que há uma pesquisa detalhista sobre as relações humanas no mundo contemporâneo.

E a palavra contemporâneo aqui empregada deve ser ampliada ao máximo, na medida em que Sallitt fala a partir de nada mais nada menos do que Nova Iorque, a cidade mais cosmopolita do mundo. "Fourteen" discute distúrbios mentais, mas o faz não de um ponto de vista médico. Nele, o método de aproximação do tema é outro, muito mais em uma vertente psicossocial. As protagonistas são Mara (Tallie Medel) e Jo (Norma Zea Cuhling), duas jovens amigas desde à época escolar. A discussão do protagonismo no filme é interessante. Vemos a história a partir de Mara, mas no jogo narrativo de Sallitt ela é a única ponte que temos para adentrar na personalidade enigmática de Jo. Essa opção de perspectiva não nos permite acessar Jo muito intimamente, pois o nosso olhar sobre uma pessoa sempre será fragmentado, seletivo e incompleto, tal como o é o de Mara sobre a amiga. E como é fascinante o olhar enviesado proposto por Sallitt. Não há certo ou errado em "Fourteen", há vidas em choque, perplexidades, tentativas, esforços, impotências. "Fourteen" fala da imensa dificuldade de termos amigos nesse louco mundo contemporâneo. O trabalho de Tallie Medel, como Mara, é tocante, cada gesto e olhar são colocados com maestria tal que soa com uma simplicidade encantadora. Dá gosto vê-la em cena e a química com a bela Norma Zea Cuhling, interpretando uma carismática Jo, que também vale destacar. Vários personagens entram e saem de cena, mas Sallitt não perde a mão com as duas que estão sempre a conduzir a história.   
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O cerne de "Fourteen" não é inventariar o transtorno de Jo, sua inadequação psíquica e confortavelmente explicar tudo sob esse prisma. Há o elemento social, o confronto dela com os padrões rígidos impostos pelas famílias, os patrões, e o aprisionamento a partir do controle sobre o nosso tempo. O que é viver nessa contemporaneidade fluida, em que se vende uma ideia de liberdade, mas que contraditoriamente nos enclausura pela necessidade de se ter que correr atrás pelo sustento financeiro. A relação indivíduo e sociedade ocupa a centralidade nessa obra. Somos o fragmento desse mundo caótico e incontrolável. Como viver nossa parcela anônima, comportada na intimidade, quando nos é exigido sempre sermos algo de espetacular no ambiente público (mesmo que tudo seja dócil e domesticado)? Jo é uma navegante errante e titubeante nesse universo capitalista cruel. Mesmo sendo exuberante na vida sob determinados aspectos, ela nada mais é do um arremedo dela. Como ser integral quando somos fragmento?   

"Fourteen"pode parecer simples na camada mais superficial e aparente, como mais uma história dentre tantas outras que falam de relacionamento humano. Todavia com um olhar mais atento, ele pode ser visto como uma aula sobre cinema contemporâneo ao demonstrar que cinema é recorte, fragmento e o diretor se utiliza muito bem dessa natureza constitutiva para nos ofertar uma abordagem poética em que a fragilidade humana é a grande protagonista. "Fourteen" esboça um ensaio em que cinema e humanidade se equivalem em limitações. A força do filme vem dessa consciência de Sallitt sobre o seu fazer, o domínio que exerce da construção temporal. As elipses são precisamente educativas por nos induzir a pensá-las como tais. Quando Mara aparece grávida, Sallitt corta direto para uma cena em que uma criança de mais ou menos uns dois anos brinca no chão com a mãe. Em um só flash o diretor nos informa não só a passagem do tempo, mas também a duração aproximada e elimina até a necessidade de uma legenda informativa do tempo entre uma cena e outra. O longo tempo entre a gravidez e a criança no chão invoca por si uma reflexão sobre o papel da montagem no cinema, nos convida a imaginar qual o efeito desse salto na história, sobre o que mostrar ou não de uma história. A ideia nesse caso é do tempo, da distância entre Mara e Jo, e isso fica claro a seguir. As relações se configuram mesmo assim, com afastamentos e aproximações, e viver em grandes cidades é forçosamente aceitar essas condições. Nesses intervalos longos de tempo todos nos transformamos, nos tornamos distantes não só fisicamente, mas também como pessoas ao vivermos experiências e incertezas novas.

O próprio título "Fourteen" traz interrogações e dúvidas. Nenhum personagem tem essa idade e tão pouco são exaltados flashbacks para a juventude das personagens. Em mais um insight psicanalista de Sallitt, há sim uma relação com algo acontecido nos 14 anos de Jo. Entretanto, o que importa aqui é a maneira como o corpo presente carrega as informações do passado, não propriamente o passado em si. O trauma é algo sempre presente e assim precisa ser visto. Seu impacto temporal é que o faz ativo e perigoso. O controle social do tempo humano não resiste ao vazio existencial, à solidão inerente da vida e deflagrada pela inevitabilidade da morte. A contemporaneidade gerou uma doença social, pois o acúmulo da riqueza de uns depende do trabalho árduo de outros, que fazem a roda da fortuna se movimentar, mas que paralelamente e contraditoriamente, criou as tão propagadas famigeradas crises de ansiedade. Jo é um ser indócil e inadequado socialmente, um elemento nada dócil a ressoar uma crítica à contemporaneidade.

"Fourteen" fala de uma geração em que o casamento também se esfacelou. A intimidade hoje é o reduto máximo do novo individualismo líquido capitalista, o lugar do exercício da liberdade e da solidão. Mara tenta sair dessa caixinha aprisionante, mas como todos precisa tocar a vida. Essa é a expressão máxima do mundo contemporâneo, o da constatação da impotência. Tentamos nos equilibrar diariamente entre lutar ferozmente pela sobrevivência e arrumar tempo para o outro, mas na prática, o outro vai ficando para depois. Nunca fomos tantos no mundo, apesar de sermos tão pouco coletivos. "Fourteen" é uma obra exemplar desse mórbido caos em que vivemos. Por isso, Dan Sallitt é um diretor daqueles para ficarmos muito atentos. 

Visto na cabine de imprensa, no Espaço Itaú de Cinema 3, em 26/07/2019.
Cotação 4 e meio/5


Comentários

  1. Bela crítica ... está se superando ..... abrços Trotta

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