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SANTO ERRADO (2025) Dir. Daniel Ricardo



Texto por Marco Fialho

Em Santo Errado, as profecias populares encontram eco na ideia de contemporaneidade queer e essa mistura é evocada pelo diretor alagoano Daniel Ricardo em seu novo curta-metragem. Sabemos que é na cultura popular que a mística nordestina encontra sua força mais vital ao se amparar no poder das palavras como mola propulsora para uma parábola sobre o amor e seus feitiços. 

Desde o seu curta anterior, No Céu Não Tem Caldo de Cana (2024), que Daniel Ricardo demonstra apreço pela temática do relacionamento LGBTQIAPN+, mas agora a agregando ao bom humor que tanto caracteriza as histórias populares. Em Santo Errado, Ezequiel é um jovem a implorar por um amor em um fatídico dia de Santo Antônio, conhecido pelo seu dom casamenteiro. Só que biblicamente, Ezequiel é o profeta cujas visões partem de suas próprias experiências e aqui a sina não será diferente. Ezequiel também é conhecido por denunciar que o mundo abandonou a simplicidade pela vida luxuosa e fascinante. Tendo a acreditar que o nome do protagonista aqui não seja exatamente casual. O feitiço então se vira com pujança contra o feiticeiro e nem mesmo uma roda mística poderia evitar o pior.        

Daniel Ricardo se aproveita da iconografia nordestina popular, as das gravuras usadas nos textos de cordéis, para reafirmar o universo lúdico de seu filme. Com bonitas ilustrações animadas por Mick Berto, Santo Errado sabe brincar com esses elementos vindos do sagrado para profaná-los com inteligência, tal como a arte permite, o de reinventar seus códigos com criatividade e perversão. Esse é o melhor desse curta, o de subverter e atualizar as histórias populares tão habituadas somente com o universo hétero.       

Há uma boa dose obsessão nos filmes de Daniel Ricardo pelo tema da conquista amorosa, mesmo que elas essencialmente sejam marcadas pelos descaminhos e pela desilusão. O querer por demais acaba sendo um elemento propício para o fracasso amoroso, essa é regra e ela não costuma falhar. Mas Santo Errado não abre mão da sensualidade que é uma marca também do diretor. Bom lembrar o quanto se pede durante as festas populares juninas pela conquista de um amor, mesmo que o dia seguinte não saia exatamente como desejado, pois o amor é sempre uma caixa de surpresas, quando não uma caixa de Pandora.    

Santo Errado ainda incorpora a sua história de amor, uma maldição que entra aqui como uma pitada pontual de terror, porque onde transita o santo também caminha as energias satânicas, e convenhamos, nada mais nordestino do que isso. Mais uma vez, Daniel Ricardo demonstra apego ao local de onde veio, sua Alagoas, afinal, nunca é demais quando o cinema expressa e incorpora as vivências de seu realizador. Santo Errado não deixa de ser uma revisita a essas eternas histórias de amor e fúria, em que o desejo pode trazer mais dores do que prazer, mas aqui sem se esquecer do bom humor sarcástico do nordestino.       


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