Texto por Marco Fialho
O primeiro registro que faço acerca de O Agente Secreto é a sua engenhosidade ao construir uma Recife fabular, mergulhada na podridão do passado de um país, que teimosamente tenta se manter de pé. Talvez por isso, uma perna aparentemente a esmo contenha tanta força simbólica, como uma metáfora possível da história de exploração de um povo do qual o contexto lhe é continuamente expurgado. O cinema de gênero dá um tom fantástico ao filme, apesar que ficamos com a impressão que tudo ali possa ser tão verdadeiro quanto o é uma notícia de jornal. Fica a impressão de que a fábula toca no absurdo que chamamos de mundo real.
Kleber Mendonça Filho está pleno na direção, irretocável. É assustador como a montagem provoca o espectador com sua imprevisibilidade e nos convida a acompanhar prazerosamente cada detalhe que está dentro do quadro. De repente, estamos no condomínio Ofir em 1977, até que um corte brusco nos leva para uma sala com computadores, com duas meninas jovens ouvindo as já quase mortas fitas cassetes. São duas épocas que se apresentam, se comunicam por um artifício analógico, um estranho aparelho gravador de cassete.
A profusão de personagens que brota a todo instante nos impele a tentar compreender os caminhos de uma história que se apresenta repleta de curvas, desvios e desafios. E o que dizer da presença de objetos de cena como os antigos orelhões (um dos grandes meios de comunicação pública dos anos 1970), as pesadas máquinas de escrever (paraíso dos escritores desde o final do século XIX até a proliferação dos computadores), os carros da época, como o Opala, Corcel, e lógico, nosso popular fusquinha?
A reconstrução desses apetrechos de época dizem muito sobre o lugar cinematográfico onde KMF quer alcançar. E tudo está conectado a última imagem, que remete a Retratos Fantasmas, sua odisseia pelos cinemas antigos e suas memórias. A destruição da memória como pré-requisito da manutenção do sistema capitalista. Da necessidade de reconstrução da paisagem, de ressignificar sistematicamente para que o novo apague os rastros da destruição.
Gosto de pensar O Agente Secreto como uma ode fantástica da poeira que as elites jogam repetidamente para debaixo do tapete, para abafar suas crueldades e maracutaias. É preciso não perder o rastro e sacar que não é nada gratuito que vá se buscar um matador de aluguel entre os estivadores que estão a mandar o açúcar para fora do país. Nos filmes de KMF, o passado colonial reaparece sempre, remontando as origens que nos conectam à nossa formação social e histórica. Assistindo a este filme, me lembrei de Bacurau e de sua relação retrospectiva com a história, e de como podemos, para citar a célebre música de Renato Russo, "cuspir de volta o lixo em cima de vocês".
E é por conta desse passado, que Kleber Mendonça Filho viaja até o pirracento ano de 1977 para remontar não só uma história específica, a de Marcelo/Armando (um Wagner Moura impecável e sobrenatural), mas de todo um universo cultural que passa pelo cinema, pelo icônico Cine São Luís, pelo Seu Alexandre (o mesmo de Retratos Fantasmas), aqui interpretado pelo sempre majestoso Carlos Francisco, em mais um jogo entre a ficção e o documentário (e esse não é o único que se vê em O Agente Secreto). Os filmes estão ali se imiscuindo com a realidade de uma Recife quente, onde tubarões, não os de Spielberg, possuem pernas humanas entre as suas tripas. O Brasil realmente não é para amadores, apesar de ser um ambiente fértil para se flertar com a fantasia, algumas para lá de obscuras, como aproveitar a perna encontrada no tubarão para reexibir o famoso filme de Steven Spielberg. Sim, o lucro e o faturamento vem sempre em primeiro lugar.
Mas não só de tubarões vive O Agente Secreto. Há ainda os gritos de Jéssica Lange, a mocinha em King Kong, para nos alertar sobre os nossos assombros, ou o terror sugestivo de A Profecia para inspirar os mistérios implantados pelos mares da carnificina da ditadura brasileira, que limpava sua sujeira arremessando corpos de inimigos políticos trucidados pela tortura pelas várias pontes de Recife.
Mas assistir a um filme de Kleber Mendonça Filho é também dar uma atenção especial à trilha musical afiada que permite uma viagem sensorial à parte em seus filmes. Se nas imagens o diretor lembra muitas vezes as cenas vertiginosas de Quentin Tarantino e pelas incansáveis referências visuais, na parte musical a lembrança que chega é a de Paul Thomas Anderson e suas trilhas sonoras permeadas pelo afetivo, o que acaba sendo um extra de alegria para os ouvidos e sentidos do espectador.
Em 1977 estamos diante de marcas importantes do cinema hollywoodiano, além de Tubarão, tem Stars Wars e o começo das ideias de franquia e blockbuster. É o cinema comercial dos Estados Unidos desembarcando no país com força total, sendo empurrado por meio de superproduções e de um domínio mercadológico, em um contexto para lá de propício e favorável, em meio a uma ditadura feroz. Por isso, a homenagem que KMF faz logo nas primeiras imagens de filmes brasileiros é tão fundamental, afinal, apesar de tudo, nosso cinema sobreviveu, e continua sobrevivendo. Mas as referências estão aí, não há como apagá-las, e como negar que sorvemos tudo isso como bons antropófagos que somos? Eu leio muito O Agente Secreto por esse viés da deglutição e do vômito. E a nossa saúde cinematográfica agradece a tal regurgitação.
Nesse contexto cinematográfico, as cenas da perna assassina são brilhantes ao assumir o trash do cinema de terror, seus códigos, suas proposições fabulares e imaginativas. Mas cinema, só será relevante se conseguir se comunicar com a sua gente e sua cultura, e como O Agente Secreto faz isso com uma beleza à parte. A personagem Sebastiana (a incrível Dona Tânia Maria) sobra nesse quesito. Que pernambucana raiz é ela, com seu sotaque inconfundível, sua verve advinda de uma tradição oral inigualável cujas raízes estão no Vale do Pajeú. O filme, inclusive, me remeteu muito ao cordel, inclusive na sua montagem traquinas e na compulsão de narrar a história pelo viés da fábula, com dezenas de personagens entrando e saindo de cena. A cenas mais picantes do filme, não deixam de ser uma homenagem ao próprio cinema contemporâneo pernambucano, que renasceu com Lírio Ferreira, Paulo Caldas, e em especial, o cinema verborrágico e visceral de Claudio Assis.
O Agente Secreto amarra o seu contexto de maneira a tecer teias complexas tanto na sua trama quanto na concepção fílmica. O passado de um professor e Chefe de Departamento, e de sua esposa, é engolido pela força destrutiva da ditadura militar (os pôsteres do ex-presidente Geisel espalhados pelas repartições públicas não nos deixa mentir), que coloca empresários como Ghirotti (Luciano Chirolli) em setores chave da universidade pública, a sucateando e a transformando em peças de uma engrenagem financeira para alavancar negócios ao invés de conhecimento. Mas KMF vem com a clarividência do seu cinema desconstruir essas miríades que solaparam a inteligência e o investimento científico em nosso país. Mas o faz misturando documentário com uma ficção alucinada e delirante.
O Agente Secreto se desenha como um poderoso painel local, de uma Recife tomada pelo Carnaval e pelas mãos inescrupulosas de um regime que expande seus tentáculos sobre a sociedade, como uma sombra maligna. KMF se permite fazer por meio de um roteiro perfeitamente calculado, uma montagem engenhosa, que valoriza o fato político na mesma proporção da fábula cinematográfica (o que dizer da gatinha com duas carinhas e dois nomes?), sem esquecer do passado colonial e da exploração econômica de uma elite sem escrúpulos e medida. O encontro da pesquisadora Elza (Maria Fernanda Cândido) com Fernando, filho de Armando e Fátima, revela mais do que o passado. Mostra o quanto os espaços de memória (e por que não dizer a própria história?) são sistematicamente apagados, pois o que hoje é um banco de sangue, antes foi um cinema. Esse é o jogo que Kleber Mendonça Filho nos monta, trazer pela narrativa onírica do cinema a vida que ainda pulsa em algum arquivo frio, escuro e obscuro.

Muito boa análise. Realmente um excelente filme.
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