Texto por Marco Fialho
Os Enforcados tem um clima dos filmes policiais dos anos 1970, com sua mise-en-scène arrojada, com interpretações fortes e bem delineadas pelo diretor Fernando Coimbra (O Lobo Atrás da Porta). É um filme cru, de certa forma ousado por ser direto sem esquecer o aspecto simbólico e trazer uma perspectiva feminina de um universo predominantemente masculino do jogo de bicho carioca. Personagens dispostos a tudo por mais poder e dinheiro dão a tônica dessa obra que pretende expor uma questão social por uma narrativa impregnada por uma visão shakeasperiana da elite carioca envolta no crime e em bizarras mortes.
As entranhas desse universo são desveladas por meio de uma narrativa nitidamente inspirada em Macbeth, de William Shakespeare. A personagem Regina (Leandra Leal) faz às vezes de Lady Macbeth, a esposa que inferniza o marido a matar o tio (Stepan Nercessian) para assumir sua riqueza e poder. Quem mora no Rio de Janeiro, não verá muita novidade, já que esse tema do jogo do bicho emaranhado com Escola de Samba, polícia, política, corrupção e contravenção são recorrentes na rotina carioca. Tudo pode até parecer fatos ficcionais, mas Os Enforcados está bem mais próximo da realidade que podemos supor. Aqui a construção naturalista proposta por Coimbra dialoga com um mundo soturno onde a ideia de crime esbarra na aparência burguesa de uma elite macabra que domina a política e a sociedade carioca. Mas cabe salientar os recursos cinematográficos impecáveis utilizados para que o público saia do filme deveras impactado com o que viu em tela.
A parte cenográfica de Os Enforcados, mais do que fundamental, se faz um personagem sinistro para que adentremos na emaranhada trama de sexo, amor, violência, traição, assassinatos, confiança, poder e dinheiro. O casarão com visão privilegiada da cidade no alto da montanha não deixa de ser um elemento simbólico da riqueza ostentosa desses personagens que frequentemente enriquecem na mesma proporção em que decaem. A primeira cena em que Regina está se apropriando da casa, tenta retirar uma enorme estátua de um Rei Momo da varanda. Nesse instante é possível compreender a força dessa mulher que pega uma marreta para quebrar a estátua que parece inquebrável.
Mesmo que Irandhir Santos esteja ótimo como o marido Valério, filho e sobrinho de bicheiro, é Leandra Leal quem rouba todas as cenas em que aparece. O seu brilho interpretativo é surpreendente, em um dos melhores papéis de sua carreira. A Regina de Leal é maiúscula, retumbante e luminosa. Leandra Leal se expressa de todas as formas, seja pelo olhar ou no movimento corporal que não deixa margens a dúvidas. Outro destaque de Os Enforcados é a presença marcante de Irene Ravache, como a esperta mãe de Regina.
Do ponto de vista da mise-en-scène, o maior destaque fica por conta da fotografia de Junior Malta, que habilmente equilibra ambiente requintado com atmosfera soturna, onde as sombras refletem a mente nebulosa de cada personagem. Os ângulos privilegiam a excelência dos atores e a beleza do espaço da casa. Tem encenações que só são possíveis a partir de um elenco, pois a radicalidade dramatúrgica de Os Enforcados, sobretudo os diálogos cortantes elaborados pelo próprio Fernando Coimbra, que também acumula a escrita do roteiro do filme, joga nos atores muito do resultado do que vemos. Stepan, Ravache, Ernani Moraes e Augusto Madeira são destaques, mas não resta dúvida que cabe a Irandhir Santos e mais ainda a Leandra Leal o grande protagonismo, assumido com brilhantismo pela atriz. Se compararmos Os Enforcado a O Lobo Atrás da Porta, o bom longa anterior de Coimbra, nota-se um esmero e uma maturidade maior tanto do roteiro quanto da direção. O domínio dos meios é mais sentido nos detalhes, a caprichada produção (um mérito incontornável dos experimentados irmãos Gullane), da pós-produção cuidadosa, cada minúcia que vemos trabalhada em cada cena.
Os Enforcados é verdadeiramente um filme que sabe onde quer chegar, que trabalha a intimidade de um casal e ao mesmo tempo os bastidores de uma política suja, tipicamente carioca e bem comum de quem conhece a vida cotidiana da Barra da Tijuca, esse bairro que caminha no fio da navalha entre a riqueza e o crime, entre o proibido e a lei. Por isso, o filme acerta quando se calca no desenvolvimento dos personagens, pois são eles a representar pessoas que são motores de uma sociedade doente, contaminada pelo dinheiro fácil do jogo do bicho, da milícia e da corrupção ativa onde policiais e políticos se confundem com o crime e o poder. A obra de Fernando Coimbra vai no cerne, na carne e na ferida exposta de uma burguesia fluida, que cotidianamente muda de endereço e nomes, e vai assim se perpetuando desde a política da bica d´'água do chaguismo dos anos 1970, do esquadrão da morte e tantas outras instituições que se imiscuíram à nossa política e sociedade, que vem forjando a imagem bizarra de uma elite pouco letrada e violenta. A única dúvida é se Shakespeare seria capaz de explicar o enorme esgoto que se ensejou no nosso Rio de Janeiro contemporâneo.

Acho que nem Shakespeare, tampouco Freud conseguiria explicar o enorme esgoto que se ensejou no nosso Rio de Janeiro contemporâneo...
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