Texto por Marco Fialho
O Brasil mais interiorano, mais arcaico, profundo e com menores possibilidades econômicas, vem sendo explorado de maneira exitosa pelo nosso cinema em 2025. O exemplo mais bem-sucedido desse cinema é Oeste Outra Vez, filme goiano de Érico Rassi, que opta por um registro árido que se alinha ao próprio universo do filme. Serra das Almas, do diretor pernambucano Lírio Ferreira, também retrata o interior de Pernambuco, embora a abordagem aqui seja mais intensa, com cortes mais abruptos e uma violência mais explícita.
Mas o maior atributo de Serra das Almas é a sua montagem (trabalho magistral de André Sampaio) que reconstrói e remonta o tempo ao seu bel-prazer, até que este sirva aos propósitos do filme. Cenas do passado e do presente se embaralham e forçam o espectador a ficar remontando constantemente a história em sua cabeça, como se estivesse montando um quebra-cabeça de mil peças. Logo nas primeiras cenas somos arremessados em uma montagem paralela que mostra a tranquilidade de uma mulher morena em um rio contrastada por uma kombi cheia de personagens claramente em fuga, sendo que alguns homens estão armados. Essas duas sequências se encontram adiante, quando o veículo chega em Serra das Almas, essa cidade em que a moça morena toma banho de rio. Esse é um artifício utilizado largamente pela montagem e que exige a atenção por parte do público.
A oscilação rítmica está no cerne de Serra das Almas, uma constante sensação de que o mundo urbano está impregnando a vida pacata do interior. Essa ideia trazida por Lírio Ferreira é bastante reflexiva, pois o que mais eu aprecio no filme é como a vida política do macro esbarra e influencia a vida de um lugarejo interiorano. O Senador Tibério (que marca a volta de Bruno Garcia ao cinema) manipula as cordas como em um teatro de marionetes, onde os poderosos seduzem os desprovidos com um mundo de riquezas ilícitas advindas do contrabando de pedras preciosas. Girlando (um ótimo Ravel Andrade) é o líder de um grupo de sonhadores desajustados que se deixam levar pelos gananciosos políticos. Mas o interessante é que o roteiro de Paulo Fontenelle, Maria Clara Escobar e Audemir Leizinger cria uma rede de interesses e personagens de várias origens sociais, o que torna o contexto humano rico e com diversas motivações.
A cada nova sequência os flashbacks vão permitindo que o espectador conheça melhor cada personagem e qual a sua implicação na história. Através dessas visitas ao passado, vamos conhecendo como cada personagem chega até Serra das Almas. Só entendemos o que aconteceu quando o filme revela que a quadrilha de Girlando se dá mal em uma operação com contrabandistas, e que precisam sequestrar um carro para fugir de uma perseguição policial. Duas jornalistas idealistas Samanta e Louise (Julia Stockler e Pally Siqueira) que investigam o envolvimento do Senador Tibério ao caso das pedras.
Serra das Almas mistura gêneros como o suspense, o faroeste e o policial, adotando a violência como um aditivo de um cinema de ação vigoroso, inspirado em Peckinpah e Tarantino, assim como o rascante cinema contemporâneo pernambucano, do qual o próprio Lírio Ferreira foi precursor junto com Paulo Caldas. A trilha musical assinada por Pupillo, enfatiza o poder da cultura popular, com a inclusão da música brega de Reginaldo Rossi, citado no roteiro como referência estética do ambiente rural do interior. A alma pernambucana está ali representada pelo som cortante que atravessa os personagens, com balas crispantes que teimam em povoar um território onde a música, a arte e a violência convivem sem dó.
Uma discussão crucial de Serra das Almas é a decisão de cada personagem de permanecer ou sair do seu lugar para ir tentar a sorte na capital Recife, onde a possibilidade de estudo e trabalho são mais abundantes. Lírio desenha seus personagens por meio do sonho, explora cada um segundo as expectativas de futuro. Ricardo (Jorge Neto) talvez seja o mais apegado ao seu lugarejo, tem um relacionamento com Vera (Mari Oliveira, que atriz estupenda), um amor de juventude. Mas os bandidos sonham alto, acreditam na promessa de ganhar dinheiro fácil. Tem ainda o misterioso Gustavo ou Beijo de Boca (Vertin Moura), um traficante que esconde ao máximo sua verdadeira identidade.
Apesar de ter muitos personagens, a preparação do elenco por Silvia Lourenço consegue que todos eles tenham a sua força e não passem em branco, ajudada por um roteiro bem azeitado e uma direção que faz explodir cada personagem na hora certa. Mas o mais interessante é ver como Lírio Ferreira sabe fazer de Serra das Almas um filme crítico à masculinidade que resolve tudo pela bala e no grito, e confere às mulheres uma função de redenção do povo frente aos poderosos. Como é bom ver um filme com alternativas e que funciona como um quebra-cabeça em que as peças podem subverter as regras estabelecidas pelo patriarcado e os donos do poder.
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