Pular para o conteúdo principal

PEQUENAS COISAS COMO ESTAS (2024) Dir. Tim Mielants


Texto por Marco Fialho

Pequenas Coisas Como Estas é um bom exemplo de uma obra que quer discutir uma questão social importante, mas que o faz a partir das exploração psicológica de um personagem, no caso de Bill Furlong (Cillian Murphy), um homem introspectivo com um passado traumático cujo presente está prestes a lhe lançar um desafio. 

Contudo, Pequenas Coisas Como Estas surpreende positivamente, e muito, pela narrativa contida, pelos pequenos gestos e por uma fotografia que sabe aquecer o coração e manter na alma uma textura seca. A atuação de Cillian Murphy se destaca pela extrema sensibilidade na composição desse personagem conturbado, que vive com uma mancha do passado pairando sobre a sua existência. Ele trabalha numa firma que fornece carvão e assim precisa ir no convento para fazer entregas. 

Pequenas Coisas Como Estas se constrói sem pressa, explorando os silêncios e os tempos mais longos que propiciam as reflexões de Bill. Tim Mielants trabalha uma crítica ácida e frontal à tradição católica irlandesa ao desnudar as relações hipócritas capitaneadas pela madre superiora, interpretada com uma pitada maligna pela grande atriz Emily Watson, que faz uma ótima participação como contrapeso do personagem de Cillian Murphy.      

É por demais interessante como Tim Mielants amarra o passado de Bill Furlong ao presente, quando o entregador se depara como uma menina grávida submetida a um processo de tortura por parte da instituição religiosa. Aos poucos, vamos conhecendo o terror instaurado pela madre superiora para as internas, quase sempre colocadas no internato por estarem com uma gravidez precoce ou por serem indisciplinadas no seio familiar. 

Mas é Cillian Murphy o responsável por manter o espectador mais atento à narrativa, com sua interpretação cativante, precisa e muito atenta aos conflitos do passado de Bill Furlong. A fotografia também constrói um mundo de sombras, em especial nas cenas noturnas em que Bill se encontra com sua consciência de que não pode mais aceitar passivamente as imposições que a vida continuamente lhe fez. As cenas com a esposa, também se revelam importantes para revelar aspectos e detalhes da personalidade e caráter de Bill. O filme não deixa de ser um estudo sobre as relações de poder entre as classes e como as pessoas se utilizam de suas posições sociais para subjugar as outras e sempre manter a atmosfera hipócrita. 

A câmera muitas vezes nos levam vagarosamente para as memórias de Bill, cuja personalidade vai acumulando pacientemente fatos do passado e do presente. O ritmo de Pequenas Coisas Como Estas dialoga diretamente com a maneira como Bill encara a vida, como ele a assimila, por isso, vários closes são executados para que possamos ler os pensamentos e as dúvidas de Bill. Esse é um filme de câmera, daqueles cuja pretensão parece pequena, embora tenha o poder de transferir as angústias do personagem para o público, sendo esse mecanismo um artifício difícil de alcançar, mas que Tim Mielants mostra capricho narrativo suficiente para cumprir a dura tarefa.     

Comentários

Postar um comentário

Deixe seu comentário. Quero saber o que você achou do meu texto. Obrigado!

Postagens mais visitadas deste blog

CINEFIALHO - 2024 EM 100 FILMES

           C I N E F I A L H O - 2 0 2 4 E M  1 0 0 F I L M E S   Pela primeira vez faço uma lista tão extensa, com 100 filmes. Mas não são 100 filmes aleatórios, o que os une são as salas de cinema. Creio que 2024 tenha sido, dos últimos anos, o mais transformador, por marcar o início de uma reconexão do público (seja lá o que se entende por isso) com o espaço físico do cinema, com o rito (por mais que o celular e as conversas de sala de estar ainda poluam essa retomada) de assistir um filme na tela grande. Apenas um filme da lista (eu amo exceções) não foi exibido no circuito brasileiro de salas de cinema, o de Clint Eastwood ( Jurado Nº 2 ). Até como uma forma de protesto e respeito, me reservei ao direito de pô-lo aqui. Como um diretor com a importância dele, não teve seu filme exibido na tela grande, indo direto para o streaming? Ainda mais que até os streamings hoje já veem a possibilidade positiva de lançar o filme antes no cinema, inclusiv...

AINDA ESTOU AQUI (2024) Dir. Walter Salles

Texto por Marco Fialho Tem filmes que antes de tudo se estabelecem como vetores simbólicos e mais do que falar de uma época, talvez suas forças advenham de um forte diálogo com o tempo presente. Para mim, é o caso de Ainda Estou Aqui , de Walter Salles, representante do Brasil na corrida do Oscar 2025. Há no Brasil de hoje uma energia estranha, vinda de setores que entoam uma espécie de canto do cisne da época mais terrível do Brasil contemporâneo: a do regime ditatorial civil e militar (1964-85). Esse é o diálogo que Walter estabelece ao trazer para o cinema uma sensível história baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. Logo na primeira cena Walter Salles mostra ao que veio. A personagem Eunice (Fernanda Torres) está no mar, bem longe da costa, nadando e relaxando, como aparece também em outras cenas do filme. Mas como um prenúncio, sua paz é perturbada pelo som desconfortável de um helicóptero do exército, que rasga o céu do Leblon em um vôo rasante e ameaçador pela praia. ...

O PASSAGEIRO: PROFISSÃO REPÓRTER (1975) Direção de Michelangelo Antonioni

Entra no carro, nós seremos o passageiro Passearemos pela cidade à noite Passearemos pela traseira rasgada da cidade Veremos a brilhosa e oca lua Veremos as estrelas que brilham tão claras Estrelas feitas para nós esta noite                                       Trecho da música "The passenger", de Iggy Pop   Por Marco Fialho Identidades feridas em um mundo devastado Incentivado pelo lançamento de 3 obras essenciais do mestre Michelangelo Antonioni em blu-ray pela Versátil Home Vídeo, fiquei tentado em escrever sobre um dos filmes que mais aprecio no cinema: "O passageiro: profissão repórter", um dos filmes mais comentados e discutidos nos cursos de cinema, em especial devido ao plano-sequência final. O título dado no Brasil desde os anos 1970 é mais um daqueles inapropriados. O original, "The  passenger" (que adotarei aqui) ,  é brilhante por permitir uma leitura ampliada ...