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O PASSAGEIRO: PROFISSÃO REPÓRTER (1975) Direção de Michelangelo Antonioni

Entra no carro, nós seremos o passageiro
Passearemos pela cidade à noite
Passearemos pela traseira rasgada da cidade
Veremos a brilhosa e oca lua
Veremos as estrelas que brilham tão claras
Estrelas feitas para nós esta noite

                                      Trecho da música "The passenger", de Iggy Pop  

Por Marco Fialho

Identidades feridas em um mundo devastado

Incentivado pelo lançamento de 3 obras essenciais do mestre Michelangelo Antonioni em blu-ray pela Versátil Home Vídeo, fiquei tentado em escrever sobre um dos filmes que mais aprecio no cinema: "O passageiro: profissão repórter", um dos filmes mais comentados e discutidos nos cursos de cinema, em especial devido ao plano-sequência final. O título dado no Brasil desde os anos 1970 é mais um daqueles inapropriados. O original, "The passenger" (que adotarei aqui), é brilhante por permitir uma leitura ampliada de perspectivas, por insinuar uma gama de significados. De um lado, pode ser interpretado como uma passagem da vida para a morte; de outro, pode significar a mudança de identidade do protagonista; e ainda que o personagem está à mercê das situações. Já o título brasileiro, melhor nem comentar, apenas dizer o quanto redutor ele é, e talvez até enganador.

Antonioni faz parte da geração mais expressiva da história do cinema italiano, despontada no cerne do chamado neorrealismo italiano no pós-guerra, que continha nomes como os de Fellini, Visconti, Rossellini, De Sica, Pasolini, Petri, Germi, Lattuada, De Santis, entre outros. No decorrer dos anos 1960, cada diretor foi adquirindo uma face própria, basta pensar aqui em Fellini, Pasolini e Visconti, apenas para citar alguns. Antonioni nesse período também desenvolveu a sua originalidade autoral e ao longo da carreira realizou obras que ratificam radicalmente essa ideia. 

A crítica social sempre esteve no alvo do diretor, embora a crise de identidade seja o tema mais visível. Com Antonioni há uma afirmação de uma linguagem contemporânea para o cinema, com o uso sistemático de planos longos que trazem um incômodo ao espectador. Antonioni sempre pensou o cinema por meio do espaço e da arquitetura, de como a humanidade está em contínuo desacordo com os ambientes, por serem espaços tomados para interesses privados e reafirmarem ideias opressoras. Por isso, o vazio existencial faz parte da dinâmica de vida dos personagens de Antonioni. O dado geográfico assim está engendrado no próprio cinema de Antonioni, há uma cisão que se espelha no indivíduo, que encarna um desacordo com um determinado espaço que o engole, gerando um desencanto. "O Deserto vermelho", "A aventura", "O Eclipse", por exemplo, expressam muito bem essas questões, mas "The passenger" não deixa de igualmente enfatizar essa relação espacial. 

Pode-se dizer que "Blow-up" e "The passenger" fazem parte de uma fase internacional do diretor, que assinalam uma mudança de abordagem em relação às obras predecessoras. Neles, uma crítica social se sobrepõe a uma crise existencial, mesmo quando essa última impulsiona essa crítica, caso claro de "The passenger". A vivência de uma crise sempre está presente nos filmes de Antonioni, como um fermento que cresce cena a cena, embora o cinema de Antonioni não trabalhe com grandes viradas na história, talvez uma exceção seja o bombástico e inesperado final de "Zabriskie Point", que embora não seja exatamente uma virada, mas sim uma surpresa, um acontecimento inesperado e culminante.

De uma maneira geral, o cinema de Antonioni se situa temporal e filosoficamente, junto ao de Bergman e Tarkovski (mesmo que seu primeiro longa date apenas de 1962) todos caracterizados como introspectivos, voltados para os meandros mais profundos dos indivíduos, sem concessão moral e com um pensamento cinematográfico rigoroso dando forma à temáticas complexas. Esses diretores são originais por conduzirem em suas obras um drama social vinculado ao indivíduo, o que gera uma potência em relação ao visionamento do público ao colocar em suspenso a sua própria vida, por lhe tirar o chão durante a projeção. 

Conforme já disse antes, "The passenger" faz parte de uma fase internacional de Antonioni, filmes produzidos por Carlo Ponti e falados em inglês. Fazem parte também dessa época "Blow-up" (1966) e "Zabriskie Point" (1970). Em "The passenger" ele conta com a presença no elenco de dois atores que estavam em franca ascensão na década de 1970: Jack Nicholson ("Chinatown" - 1974) e Maria Schneider ("O último tango em Paris - 1972). A participação deles imprime no filme uma força impressionante, seus estilos interpretativos se encaixam na proposta de Antonioni, onde o aspecto físico assume importante papel na mise-en-scène, posto que para Antonioni a câmera possui um destaque na sua concepção cinematográfica. Schneider e Nicholson juntos em cena tinham algo de explosivo, um magnetismo poderoso, capaz de direcionar os nossos olhares para eles. É visível como Antonioni retira todos os excessos interpretativos dos dois atores. Menos é mais. Assim, ele desloca o enfoque para os corpos e suas ações, para que os corpos não ofusque a paisagem, elemento sempre destacado nos filmes de Antonioni. 

 É bastante mencionada por críticos e cinéfilos a maneira como Antonioni trabalha com o espaço e a arquitetura. Ao contrário de Bergman, o mestre italiano não filma muito os rostos em close. A maioria de seus planos são gerais e médios, pois Antonioni valoriza demais o registro dos corpos frente as edificações e paisagens. Há nesse ponto um elemento político mesmo de sua concepção de cinema. Para ele, filmar a relação dos corpos com o ambiente configura o quanto somos oprimidos por essa materialidade, por uma noção aprisionante de tempo, de um passado a sombrear o presente. Por isso, em um filme de Antonioni, nunca devemos desprezar a paisagem em si e os prédios nele inseridos.

Outro registro importante é que o cinema de Antonioni não se constrói por meio de um roteiro clássico e "The passenger" está orquestrado por meio de pistas que Antonioni oferece a conta gotas. Há descontinuidades, em especial de som, que nos desorientam constantemente, com imagem desconexa do som, como na conversa de Locke (Jack Nicholson) com o traficante de armas, onde vemos o último morto na cama enquanto ouvimos os diálogos trocados entre eles no dia anterior.       Antonioni deixa evidente desde o início que o personagem David Locke é o protagonista a ser seguido no enredo. "The passenger" é um filme complexo, profundamente enraizado nas questões levantadas no cinema de Antonioni, como a crise filosófica e existencial do final dos anos 1960 e início dos 1970. Antonioni encara frontalmente a problemática do pertencimento e da identidade do homem em uma sociedade marcada por códigos morais intransponíveis que aprisionam o indivíduo, que o tornam infelizes e frustrados, pois geram uma sistemática incomunicabilidade nas relações. 

Locke (nome curioso, o mesmo do filósofo racional e empírico que serviu de base para o pensamento liberal burguês) é um repórter internacional, norte-americano, e está insatisfeito com o papel que desempenha no mundo. Está em um país inóspito no deserto asiático, em busca de um grupo guerrilheiro que pretende derrubar o governo local. Quando ele chega em um hotel conhece um compatriota misterioso (que mais à frente saberemos ser um traficante que vende armas para os grupos guerrilheiros), que morre, e inesperadamente, quase de susto, Locke assume a identidade do falecido, fazendo todos a crer que ele (Locke) havia morrido no hotel.   

À morte inventada de Locke podemos dizer que essa possui uma aura espiritual, uma provocação de Antonioni para o mundo tal como ele é. E dando, de tabela, um passo a mais, um ardil e uma perfídia à suposta neutralidade jornalística, na crença de que o papel do jornalista é tão somente noticiar fatos sem imprimir neles subjetividades. Antonioni questiona o quanto essa lógica é perversa e só beneficia o status quo vigente. Antonioni é hábil e minucioso nessa construção. Quando Locke vai à casa do morto, para obter mais detalhes que facilitem tocar a vida nessa nova identidade, Antonioni revela quase casualmente um livro de Alberto Moravia ("A qual tribo você pertence?", escrito em 1972), autor assumidamente ateu e conhecido por ser um crítico mordaz da sociedade capitalista, que muito refletiu a alienação social, muitas vezes a partir de uma ótica existencialista. "The passenger", sim, tem muito de Moravia, esse autor adaptado com frequência para o cinema, como por Jean-Luc Godard (O desprezo), Bernardo Bertulucci (O conformista), Vittorio De Sica (Duas mulheres), apenas para citar algumas obras filmadas a partir de seus escritos. 

"The passenger" desperta uma discussão interessante ao reverter algumas ideias costumeiras, como a que devemos nos moldar ao mundo, nos adaptar sempre a ele. Antonioni propõe diferente, de que o mundo também deveria poder adaptar-se ao indivíduo, embora esse ato dependa mais da coragem desse último em afrontar as "normas" estabelecidas que estão implícitas em nosso cotidiano. Em nenhum lugar está escrito que não podemos mudar essa lógica. Aparentemente, não a transgredimos por estarmos devidamente enquadrados. Porém Antonioni desafia esses procedimentos socialmente introjetados, não por meio de manifestações verbais dos personagens, mas sim em ações afirmativas deles. Não há blá-blá-blá gratuito e evasivo. No mundo de Antonioni é mesmo assim, os personagens não falam muito, preferem agir e o fazem enfática e subversivamente, ignorando regras e morais pré-estabelecidas. A personagem de Maria Schneider entra na história como uma mulher solitária, com características muito próximas à figura do herói no filme de faroeste, destemida e disposta a levar o louco plano de Locke adiante. Não é movida por um senso de justiça. Ao que tudo indica, ela só quer ser, significar o seu caminhar de alguma maneira. Ambos estão exasperados, tentando existir no meio das paisagens opressoras, muitas vezes edificadas por outras gerações e que nada lhes dizem. O risco torna-se uma saída e uma arma, uma promessa de vida. 

O que mais Antonioni quer nos mostrar é o quanto Locke, mesmo assumindo outra identidade, continua preso. Se antes encontrava-se oprimido por uma passividade imposta pelos órgãos de imprensa que o contratavam, agora, como traficante de armas, também se mantinha aprisionado, pois por mais que estivesse colaborando para derrubar um governo opressor, ainda sim não modificava a sua posição social e empírica. 

E a sequência final, uma das mais impressionantes do cinema muito ratifica o lugar de Locke nesse mundo ilusório. A câmera parece acompanhar a alma de Locke se desprendendo de seu corpo e lentamente vai flutuando em direção à janela, passando magicamente por ela e ganhando a rua. A maneira como Antonioni filma esse longo e belo plano-sequência acentua a grade como um detalhe crucial para o enredo. Em um momento estamos a observar a prisão espiritual de Locke, encarcerado em si mesmo naquele hotel no fim do mundo. Quando a câmera passa para o lado de fora assistimos a morte da nova identidade. Não à toa, a sua esposa desconfiada de que Locke ainda estava vivo parte para encontrá-lo e quando vê o seu corpo morto diz não reconhecê-lo, enquanto a personagem de Maria Schneider o identifica na nova identidade.

"The Passenger" expressa fundamentalmente o desconforto do indivíduo nesse mundo desigual e ditado pela mentira e pelas regras do dinheiro. Antonioni expõe as fraturas humanas de indivíduos aprisionados e feridos por um ambiente do qual nada escolheram. Nascemos, vivemos, e precisamos desde a infância nos afirmar perante a um universo que nos é estranho e por mais que lutemos não conseguimos nos libertar de padrões profissionais, familiares, amorosos, políticos, sociais que configuram o nosso estar no mundo. Ao que parece, somos passageiros de um destino que parte dele foi escrito por outrem, para no fim sermos somente passageiros em um trem que não sabemos onde vai parar ou chegar. A beleza de "The passenger" é o de desnudar esse ecossistema cruel, que além de opressivo, se revela vazio de utopias, no qual somente a indesejável morte nos serve como libertação. 

Antonioni gosta de perguntas e as faz sem exatamente as proferir, ou melhor, nos impinge a fazê-las. Como sonhar e viver uma determinada identidade quando estamos imersos em uma agora sem sentido? Antonioni é um cineasta crítico, que deixa registrado além de um inventário de insatisfações, muitas, muitas e muitas perguntas sem respostas. É um cinema que fascina por nos interrogar pelas imagens que não se fecham, por propor um quebra-cabeça às avessas, onde as peças jamais se combinam completamente.

Cotação: 5/5

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