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ASSASSINA (2024) Dir. Eva Nathena


Texto por Marco Fialho

O cinema grego, em especial o que eclodiu na segunda década do século XXI, é conhecido pela contundência e pela maneira extrema pela qual se posiciona frente à organização social da Grécia, o que na maioria das vezes afasta o público que comumente vê o cinema como mero entretenimento e passatempo. A dureza da narrativa vem ditando uma forma eloquente de se contar histórias. 

E é bom dizer que essa história não foi sempre assim, basta pensar no cinema de Michael Cacoyannis (Zorba, o Grego) e Theo Angelopoulos (Paisagem na Neblina, A Viagem dos Comediantes e A Eternidade e Um Dia). Se existia uma ternura que pairava sobre esses filmes, como explicar o caminho atual trilhado pelo cinema grego? A distância estética é bem mais profunda entre um Lanthimos e um Angelopoulos do que os poucos anos que separam suas obras. Da delicadeza máxima, da sutileza absoluta partiu-se para uma violência tão explícita que ela se coloca já no primeiro segundo da narrativa de um Dentes Caninos  ou de um Miss Violence. Por isso esse fenômeno precisa ser melhor entendido. E quem sabe um dia eu realize uma pesquisa comparativa entre o cinema do final do século XX e o do começo do XXI? Quais fenômenos históricos, artísticos, dentre outros, delineiam e estabelecem a cisão, e até mesmo a possibilidade desse cinema anterior ser, quem sabe, a base do que veio depois. 

Realizei todo esse preâmbulo para falar do filme grego Assassinas, dirigido por Eva Nathena, adaptando o romance clássico homônimo de Alexandros Papadiamantis. E creio ser essa obra fundamental para o cinema grego, para ser um importante veio para melhor entender a sociedade grega e suas dores, seus percalços históricos que se espraiam pela cultura e que o cinema tão bem resgata. Em Assassinas, a diretora toca em temas que estão presentes mais implicitamente (em alguns casos até explicitamente) em vários dos filmes gregos recentes, a da situação da mulher na hierarquia social. 

O filme fala dos dotes, que era uma tradição em que os pais vendiam as suas filhas no ato do casamento para um homem. O filme mostra como essa tradição patriarcal contaminou as bases sociais gregas, já que a protagonista era paga por homens para assassinar bebês e crianças antes das meninas chegarem à idade de poder casar. Não bastando toda a dureza dos fatos, Eva Nathena narra a história da impossibilidade de ser mulher numa sociedade onde desde o nascimento já havia uma evidente condenação e até uma inviabilidade do próprio ato de viver. Essa lei durou até 1983 e decretou o fim de uma prática que levou a um feminicídio de mais de 100 milhões de mulheres, que sequer tiveram a chance de existir. 

Assassinas retrata esse peso histórico com toda a aspereza devida. A começar por uma fotografia onde apenas duas cores são mostradas: o bege da terra e das pedras e o preto do luto. As paredes carcomidas estão lá a constatar imageticamente um tempo que insiste em se perpetuar, a registrar um sofrimento que parece encruar como uma sujeira encardida. Os corpos estão sempre estáticos, como que paralisados pela dureza de um arcaico patriarcalismo. A câmera capta com rigor tanto o espaço árido quanto os corpos cobertos e endurecidos das mulheres, não há um resquício de sensualidade nas cenas. O passado e o presente se misturam na cabeça de Haudola (Karyofyllia Karabeti), seu conflito dramático está no tempo, em como ela tornou-se um misto de assassina e de uma justiceira às avessas (ao livrar as meninas de seu futuro massacrante de ser mulher naquela sociedade opressora). Nada nela é na ordem do natural, sua conduta é tomada pela força que a cultura exerce na sua conduta. O poder e a autorização para matar involuntariamente perverte a qualquer pessoa. Razão e emoção não existem mais, apenas o jugo das normas absurdas e obsoletas, que minam a felicidade de um determinado coletivo. Haudola é um fruto violentado e violento desse processo avassalador.          

Há a todo instante em Assassina uma tensão permanente, pois acompanhamos a vida de uma mulher que tem como função social executar outras mulheres. É interessante como a personagem Hadoula, uma espécie de matriarca funesta, não é representada apenas como uma assassina, mas com outras camadas importantes, como a própria miserabilidade de ser mulher nesse contexto específico, onde morrer era também evitar que outra mulher passasse pela mesma situação de tantas outras, de serem vistas como uma mercadoria a serviço da manutenção de uma sociedade patriarcal. Chega-se a tal ponto essa concepção, que ouvimos a todo momento uma música entre as crianças que execrava o nascimento do sexo feminino, que só se valorizava o nascimento do masculino, o que já por si estimulava a misoginia desde sempre. 

Como podia se esperar, em Assassina não há sorrisos, apenas os rostos apreensivos, nervosos, raivosos, chorosos e tristes. Assim como a escravidão prolongou o racismo para além do seu período histórico, a Lei do Dote fez o mesmo com a misoginia na Grécia, pois não há como apagar por meio de decreto uma prática social sem que ela de alguma forma não enraize na sociedade. São marcas e cicatrizes que não se extinguirão da noite para o dia. E acredito que essas práticas são as que mais podem falar a respeito da própria crueldade do cinema grego contemporâneo, que precisa expor pus, podridões e os esgotos que marcam a sua formação social, sempre entremeada pela injustiça que inoculou o sangue do país. Esse cinema funciona como uma espécie de exorcismo. As práticas absurdas levam a isso, a uma forma de expurgar os demônios mais profundos e perenes de uma determinada conjuntura social e histórica. Não basta enxergar o cinema grego a partir apenas da superfície que ele oferece, é necessário adentrar nas entranhas que forjaram aquela sociedade. Por isso, é impossível vê-lo sem refletir sobre o patriarcalismo que sustenta as estruturas de poder. Assassina está mergulhada nesse caldo cultural efervescente, que revela a situação das mulheres para além dos livros didáticos e oficiais. É o cinema escrevendo uma história tal como imaginou o historiador francês Marc Ferro, como uma contra-história, isto é, como propulsora uma uma história não contada pelas vias institucionais e oficiais. 

Se em Lanthimos o cinema flerta com uma comédia ácida e desconcertante, em Eva Nathena, o drama assume o protagonismo, priorizando a denúncia do passado que respinga no cotidiano da sociedade do século XXI. Assassina traz à luz da contemporaneidade os restolhos de uma época. O quanto desse mundo absurdo ainda sobreviveu? Ainda perambula por este nosso mundo? Vivemos os resquícios de um passado que não conseguimos apagar por completo? Assassina acende um estopim que nos remete à uma contundente reflexão sobre o que reproduzimos do passado no presente. E isso não é pouco.

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