Texto por Carmela Fialho e Marco Fialho
O filme iraniano Meu Bolo Favorito, dirigido pelo casal Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha, representa uma crítica a sociedade iraniana ditatorial dominada pelo Estado Islâmico, que polícia diariamente a vida da população civil e sufoca manifestações de afeto e desejos. Em 2022, o casal dirigiu o ótimo O Perdão, um dos melhores filmes daquele ano.
Mahin (Lily Farhadpour) é uma mulher solitária e viúva, de setenta anos, que viveu toda a sua vida no Irã e passou por todas as mudanças políticas que prejudicaram decididamente a situação das mulheres. Sua vida se resume a uma casa muito bem organizada, um jardim construído com muito esmero, que dispõe de ervas comestíveis. Os únicos hobbies de Mahin é fazer crochê e ver televisão. A filha e os netos não moram no Irã, o marido faleceu há 30 anos e as amigas que via com frequência, agora se encontram cada vez mais raramente. A solidão é sua maior companheira e as tarefas rotineiras só agravam sua constante irritabilidade. Ao tentar buscar as referências de prazer do passado, descobre que o tempo já transformou tanto as coisas de outrora quanto o seu próprio corpo. Mas o espelho lhe mostra que não o tempo vindouro é menor do que o já vivido e algo precisa ser feito. Por isso, Meu Bolo Favorito também é um filme sobre a coragem de tomar as rédeas do próprio destino.
A virada de sua vida, e podemos também dizer da história, acontece depois de um encontro com as amigas, quando reacende em Mahin o desejo de buscar um companheiro. Nessa procura, Mahin encontra Faramarz (Esmail Mehrabi), um motorista de táxi, também com setenta anos e igualmente solitário. Mahin corajosamente toma a iniciativa e conduz o taxista a sua casa. O encontro dos dois acontece com muita poesia e leveza, regado a frutas, vinho (produto proibido pelo sistema político islâmico), música, dança, comida e o famoso bolo. É um encontro de almas já desesperançadas, que precisam superar diversos tabus incutidos por uma cultura opressora.
O filme consegue nos colocar com delicadeza, carisma e descontração no universo desses personagens ricos em experiências de vida, mas prejudicados por um sistema ditatorial religioso que proíbe simples prazeres. A repressão da polícia moral perpassa várias cenas do filme, assunto que também é abordado nas conversas do casal e confirmado na fiscalização da vizinha fofoqueira (cujo marido trabalha para o governo) e na quase prisão de uma menina no parque por usar roupas e maquiagens consideradas inadequadas pelo regime. Dado esse contexto, o encontro dos dois a sós à noite na casa de Mahin já representa em si um ato de transgressão.
O casal cineasta cria no ambiente da casa um clima de magia, e de repente parece que estamos inseridos nessa intimidade onde o lúdico passeia livremente entre os dois personagens. A luz que emana do jardim, pelas mãos quase encantadas de Faramarz, simboliza a própria esperança de vida. A perspectiva do conto de fada surge inesperadamente e um furor quase adolescente toma conta da cena. Esse tipo de jardim secreto se espraia para o interior da casa em momentos que só o cinema pode propiciar. Só que logo descobrimos que qualquer sonho pode se transformar em um pesadelo e esse choque é que faz toda a diferença em Meu Bolo Favorito. Mas o que foi vivido ali naquele momento jamais morrerá na memória de Mahin, ainda mais porque a selfie tirada após o vinho saiu muito desfocada. O que vale aqui é a memória do corpo, e ela basta por si.
Meu Bolo Favorito procura trabalhar com uma fotografia mais realista, quebrada apenas quando a luz faz ressurgir o brilho do jardim noturno, que antes parecia não existir de fato, o que não deixa de ser uma forma simbólica de renascimento. A maior parte da narrativa ocorre na casa de Mahin, que repentinamente se transforma em um cenário de intimidade e afeto. Os diretores conduzem os espectadores a experienciar cenas inusitadas como o banho dos personagens vestidos e sentados no chão do box do banheiro. A direção arrisca e surpreende no desfecho da narrativa. Essa é uma obra em que os personagens decidem viver uma felicidade que uma sociedade coercitiva não permite e implementam à revelia suas deliciosas subversões.
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