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EMILIA PÉREZ (2024) Dir. Jacques Audiard


Texto por Marco Fialho

A primeira impressão que queria deixar acerca de Emilia Pérez, filme dirigido por Jacques Audiard, exibido em Cannes e escolhido para abrir o Festival do Rio 2024, é o da ousadia. O diretor edifica corajosamente um musical melodramático de grande impacto sensorial, mesmo que haja algumas irregularidades quase inevitáveis dentro do formato narrativo proposto. 

A ideia de inserção musical é introduzida na narração de maneiras diferentes, ora como verdadeiros videoclipes ora como prolongamento cantado e intimista em forma de diálogos. Creio que esta última se adequa melhor dado à moldura melodramática pretendida, por ser mais orgânica. Já as inserções de videoclipes deixam mais engessada a proposta, além de evidenciar um corte na linha narrativa em benefício de uma espetacularização do filme. 

De repente, Rita Moro Castro (Zoë Saldaña) surge interagindo com outros personagens dançando e performando quando a cena representava algo de dramático, e ali, no musical, tudo parece fluir como um grande espetáculo, sem maiores dramatizações, por mais que a letra da compositora Camille (responsável pelas músicas) diga o contrário. Essa é uma solução dramatúrgica que soa estranha, pelo viés pop de um momento que deveria ser mais dramático, pois a personagem está a realizar um trabalho para um grande escritório onde está sendo prejudicada ao não assinar os seus pareceres jurídicos, um tipo de ghost writer advocatício. 

E será em volta de Rita que a história se desenrolará, quando o narcotraficante Manitas Del Monte (Karla Sofia Gascón) a rapta para um servicinho bem mais complicado do que o anterior que a advogada realizava. Manitas sabe que Rita consegue trabalhar com o sigilo e a escolhe para ajudá-lo numa missão muito mais complicada: a de fazer o dono de um cartel virar uma mulher. Sim, pode parecer inusitado, mas quando o assunto perpassa os cartéis mexicanos sabemos o quanto tudo é possível de acontecer. Mas creio que há aqui uma dose de sarcasmo que merece ser analisada e contemplada. A ideia de Manitas é sair dessa vida louca de matar, torturar pessoas e ganhar muito dinheiro (o que na altura da vida ele já tem bastante, o suficiente para nunca mais precisar fazer nada).

Contudo, como um típico melodrama, nem tudo sai como planejado, afinal tem a esposa Jessi (Selena Gomez) e os filhos. Essa equação é bombástica e leva o filme para longe. Creio que no meio de tantos personagens, Jessi é pouco trabalhada pela direção, ficando sempre à margem, embora apareça como decisiva meio de supetão em alguns momentos. Pouco sabemos de suas aspirações, de seus desejos e creio que muitas das explicações se restringem a um número musical, que dilui por demais a personagem, sem realmente aprofundá-la. E esse aprofundamento seria necessário, dado a importância dela para o desenrolar da trama do filme.   

O renascimento de Manitas, dado como morto pela imprensa e polícia, acontece na forma de Emilia Pérez, uma mulher trans, rica, que surge para acolher as famílias das vítimas do narcotráfico. Mais melodramático do que isso realmente é difícil, pois Audiard deposita essa versão humanitária de Manitas no corpo de uma mulher filantrópica e assistencialista, sempre amparada pela eficiência jurídica de Rita. Nessa trajetória aparece Epifania (Adriana Luz), uma mulher cujo marido participou do mundo do crime e foi morto por esse mesmo mundo. Ela não quer recompensas, não quer o corpo do marido agressor que a torturava. A fúria dessa mulher atrai o interesse e a paixão de Emilia, que busca redenção de um passado cujo dinheiro a personagem jamais abriu mão. Mas esse dinheiro não estaria manchado pelo sangue de tantos que torturou e matou?  

O filme de Jacques Audiard adentra nesse complexo universo do narcotráfico mexicano, estica a corda tanto do lado da crueldade dessa realidade como tenta trabalhar com a ideia de humanização, perdão e de resiliência. Fiquei com a impressão de que Jacques Audiard adentra em um território no qual é bastante sensibilizado por ele, mas que não sei se realmente consegue dar conta de suas muitas especificidades. A espetacularização do filme, e a parte musical que a reflete, e que é também consequência dela, se alia ao formato melodramático que se prende à personificação, e nos induz a não pensar no todo, mas sim no particular, além de dramatizar demais uma problemática que vem da ausência do Estado nas regiões mais periféricas do México. Ao focar no caso de Emilia, Audiard não só não atinge algo maior como reduz por demais o espectro da questão, por optar pela espetacularização das situações de quem se beneficiou do problema durante muitos anos, o que provoca a despolitização da discussão do tema.

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