Texto de Marco Fialho
Fúria Primitiva, primeiro longa dirigido pelo renomado ator Dev Patel (Lion: uma jornada para casa, Quem quer ser um milionário, Atentado ao Hotel Taj Mahal), parte de uma ideia que a sociedade, pelo menos a da Índia, é um jogo com cartas marcadas, ou melhor, quer falar da tal da organização por castas sociais, em que uma forte hierarquização dita as regras, para que tudo continue sempre como está, mesmo que na superfície algo aparente mudar. Realmente há audácias, ou pelo menos maneirismos visuais, não resta dúvidas, mas nada que já não tenhamos visto em tantos eficientes filmes de ação que o cinema já entregou ao longo das últimas 4 décadas e se quisermos ser mais rigorosos, na última década (e falaremos muito disso aqui).
Prefiro considerar Dev Patel um bom aprendiz, um diretor promissor, embora ainda seja cedo para projetar tanto à frente, mas dentro de uma lógica de cinema que já vem sendo praticada por alguns setores da grande indústria dominante. Creio que bem no início da trama, quando Kid, personagem interpretado pelo próprio Dev Patel, vai atrás de uma arma, o vendedor clandestino lhe oferece uma arma usada no filme John Wick. Realmente, Fúria Primitiva se pretende ser um John Wick dos países emergentes, uma versão terceiro-mundista, um pouco menos turbinada e com umas pitadas a mais de uns temperos sociais aqui e acolá. A regra aqui é não respirar, é sentir para não se pensar, só reagir ao que vem da tela. O sistema agradece.
A comparação com a franquia John Wick pode parecer em um primeiro momento inocente, ou meramente um chiste, mas não é. O que veremos no decorrer da narrativa de Fúria Primitiva é essencialmente um cinema muito moldado à estética John Wick. Aos poucos os simbolismos das lendas e sabedorias ancestrais baseadas no autoconhecimento vão se transformando em pó, para restar apenas os tiros aleatórios, os socos, a violência glamourizada e os cortes cada vez mais rápidos para criar a sensação de dinamismo nas cenas. Ao longo de suas duas horas, Fúria Primitiva vai se transformando em um entretenimento barato, embora muito bem produzido, com um verniz brilhoso, que deixa transparecer o bom acabamento de finalização de imagem e som (tecnicamente impecável) para seduzir as plateias necessitadas de poções e porções de adrenalina para alimentar a sua insossa rotina (também voltaremos a isso adiante).
Para não me alongar muito sobre a estética John wickiana (me desculpem pelo neologismo forçado), recomendo a leitura sobre a 4ª versão aqui, vai poupar tempo e saliva, garanto: JOHN WICK 4 - BABA YAGA (2023) Dir. Chad Stahelski (cinefialho.blogspot.com). Mas quero frisar apenas que essa franquia atualizou os filmes de ação com alguns elementos, muitos elencados em meu texto acima, o que a torna naturalmente uma referência para diversos filmes que ali buscam inspiração (e quem sabe, bilheteria).
Mas voltemos para Fúria Primitiva, obra que impacta pela potência de imagem e som (boa para fazer um bom trailer), que usa de simbolismos esvaziados para falar violentamente de uma sociedade violenta. Kid é um personagem com todos os atributos desse meio social: ele luta com uma máscara de macaco na qual é obrigado a perder para satisfazer o mercado das apostas, teve a mãe morta por uma injusta apropriação de terra pelos donos ambiciosos do poder, representados por uma força militar, aqui encarnada exemplarmente por Rana (Sikandar Kher), e que possui Baba Shakti (Makarand Deshpande), uma liderança espiritual e religiosa picareta, que amaina a fúria popular vendendo a não-violência para as camadas violentadas diariamente pelo poder político e econômico.
Vejam que as premissas sociais de Fúria Primitiva são muito justas, embora os caminhos tomados pelo roteiro sejam, aos meus olhos, questionáveis e apelativos. Dev Patel se esforça e empenha muito, isso é visível, os planos são bons, mas os equívocos estão na ideia de cinema, e não na visão de sociedade, apesar da ideia de cinema repercutir negativamente nela. Para manter o público ligado à tela as opções de corte (montagem) e narrativa vão não só simplificando a mensagem pretendida, como a desvirtuando. Quando vemos, o que resta são as cenas de violência tão gourmetizadas que arrancar um dedo ou cortar uma cabeça são naturalizadas ao extremo, viram uma brincadeira de criança. Podemos até dizer que mal conhecemos a filosofia ancestral, ela está ali apenas como uma moldura frágil e oca.
A verdade é que a filosofia ancestral e a justiça social vão cena a cena indo para o ralo, junto com tanto sangue desnecessariamente jorrado (apesar de não o vermos tanto quanto deveríamos), de tanto tiro, pontapé e socos desferidos ao aleatório, mas que hoje é vendido como uma estética bacana, afinal, se é possível enfiar uma câmera em qualquer lugar ou objeto e isso vai impressionar e agradar ao público em geral, tá valendo. Se pensarmos friamente, a vingança pessoal de Kid torna-se o motor cego do filme (em especial quando ele descobre que o suposto responsável pela morte da mãe está na sua mira) e assim, há uma virada de chave no filme, pois a motivação individual passa a prevalecer sobre a coletiva. Como um bom herói norte-americano (que ele irônica e decididamente não é), Kid representa um grupo social oprimido, que aqui pouco sabemos exatamente qual é. Até a inclusão LGBTQIAPN+ Fúria Primitiva acolhe, mas apenas como artifício, para Kid poder se recuperar fisicamente e voltar tinindo ao seu plano de vingança pessoal, afinal nada aqui é de verdade, tão pouco seria a inclusão social. Fica então a pergunta: ao final do filme, a sociedade fortemente hierarquizada foi posta abaixo? Os mais mais pobres ficarão com uma vida mais digna?
Para quem quer ir ao cinema para se aliviar de um mundo violento com mais violência, ou quem sabe até abrandar transtornos do mundo do trabalho com a sua naturalização da violência diária no cinema, Fúria Primitiva pode ser um passatempo ideal, mais uma pílula a ser tomada para enganar uma dor maior que o sistema nos impõe. O filme pode até funcionar na identificação Kid/plateia, oferecendo duas horas de vingança simbólica e violenta, como se déssemos socos em um saco de areia e depois voltássemos ao inferno estabelecido por empresas no campo do trabalho (acúmulo de trabalho; desrespeito ao horário estabelecido no contrato de trabalho; um profissional fazendo o trabalho de outros três ou quem sabe mais; regulamentação do trabalho de aplicativos, que não são empreendedores, mas sim trabalhadores). Mas o que me parece mais propício de pensar é que vamos naturalizando os processos de tortura no processo do cotidiano, esticando uma corda que já está por um fio e ainda levamos essa ideia de tortura para o nosso horário de lazer. A implausibilidade da trama de Fúria Primitiva, inteiramente alavancada e assentada cinematograficamente nos ditames políticos de uma narrativa clássica, fica evidente quando vemos que um herói pode vingar sozinho, e em poucos minutos, séculos de exclusão social capitalista. É lógico que tudo isso só beneficia o sistema que sabe, que uma andorinha insatisfeita, e solitária, não só não fará verão como será mais fácil de dominar, domesticar e matar. Está mais do que na hora, de todos nós, como público que somos, deixar a inocência de lado, e perceber as artimanhas que há por detrás de um aparentemente inocente filme de cinema.
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