Enxergar para além do show das luzes e do som
Texto de Marco Fialho
Assistir a "John Wick 4 - Baba Yaga" realmente pode ser descrito como uma experiência à parte. Não tem como negar que ali há um espetáculo, pelo menos um tipo de espetáculo. A mim ficava ecoando uma velha pergunta, aquela mesma que Andre Bazin pensou há mais ou menos setenta anos atrás: o que é cinema? Pode um filme como "Il buco", de Michelangelo Frammartino, ser nomeado com o mesmo nome que "John Wick 4 - Baba Yaga" dado as imensas distâncias de concepções narrativas e princípios entre os dois universos? Nota-se que eu nomeio aqui de universo, mas poderia ser algo cinematograficamente mais específico, dado ao imenso fosso que separa esses filmes. E um dado que agrava mais ainda essa discussão: ambos os diretores nasceram no mesmo ano (1968), embora em países diferentes. Chad Stahelski é o típico artesão da indústria hollywoodiana, trabalhou como dublê e como diretor em diversas unidades de filmes. Já Frammartino estudou arquitetura em Milão e depois estudou cinema, tendo começado como cenógrafo para videoartes, filmes e videoclipes, para depois iniciar carreira como cineasta realizando curtas-metragens e depois 3 longas premiados em festivais na Europa.
Cito Frammartino apenas para se ter um dado comparativo, como um exemplo de uma obra nada voltada para a ideia de espetáculo, frente a uma outra totalmente devotada ao espetáculo. Não que uma, pela própria existência, tenha o poder de anular a outra, mas chamo atenção para os caminhos estéticos inconciliáveis quando pensamos em um cinema e no outro, e o quanto um é conhecido quase exclusivamente por um nicho crítico e outro atrai faturamentos astronômicos. O diretor Stahelski elaborou uma obra para ser finalizada no quarto filme, e o final de "John Wick 4 - Baba Yaga" não deixa dúvidas a respeito. Mas eis que chega um produtor, ou um patrocinador, e puxa uma conversa sobre continuação por uma questão meramente comercial (de lucro mesmo). Esse aspecto comercial, confesso que me deixa profundamente incomodado, não que não se deva ganhar dinheiro no cinema, mas é complicado quando esse aspecto financeiro se coloca como prioritário. Enquanto a vaca tiver dando leite vamos aproveitar, e a hora que o leite secar a gente vê o que faz com a vaca. Esse é o pensamento que infelizmente domina o atual cenário hegemônico do cinema. E assim, as franquias se multiplicam numa velocidade exagerada e todas são vendidas com uma força acachapante e mercadológica fora do comum.
Conforme eu já disse logo no primeiro parágrafo, "John Wick 4 - Baba Yaga" tem méritos indubitáveis na realização, friso até que suas qualidades se assentam no seu conceito imagético e na ideia de ação que o sustenta. Mas mesmo reconhecendo que a fotografia é esplendorosa, hipnótica mesmo e as coreografias mais lembram movimentos de dança do que cenas de luta corriqueiramente encontradas em filmes de ação, almejo enxergar para além dessas qualidades irrefutáveis outras camadas postas por debaixo do tapete fílmico. Todos os movimentos dos corpos são bailados de tal forma e interagem poderosamente com os cenários e objetos. O que eu quero questionar é justamente o efeito que todo esse aparato, amparado no poder da imagem e do som, causa no espectador. Foi feito um levantamento de que Wick só nesse quarto filme matou 140 pessoas. Cabe então indagar como acontecem a maioria dessas mortes, e somos forçados a admitir que elas partem de tiros, cujos alvos são quase sempre os rostos dos inimigos. Penso que esse ataque suscita uma boa dose de desfiguração facial, que questiono como partícipe da própria ideia do filme, pois esses "bandidos" não tem realmente rostos no filme, são somente apetrechos, quase que objetos integrantes da equipe de arte. A bandidagem é personalizada, apenas os chefes e seus principais assessores são nomeados e identificáveis. Os outros são objetificados e essa reificação dos corpos os torna desumanizados, daí aceitarmos as mortes sem sequer pestanejar, até damos risos delas em vários momentos.
A plasticidade dessa violência muitas vezes é combinada com o esdrúxulo, pois de repente nos flagramos dando risadas de muitas das mortes, pois o exagero das cenas passa necessariamente pelo conjunto imagético e performático do filme. Não sei se as pessoas estão preparadas para essa discussão acerca do poder de sedução do filme no espectador, mas creio que seja fundamental fazê-la e "John Wick 4 - Baba Yaga" é uma obra que permite se abrir essa discussão. A junção de tiros em profusão nos rostos e grande malabarismo performático, somados ainda a uma fotografia de gala, com luzes sedutoras e filtros encantadores evocam o espetáculo como primazia, como elemento estético se sobrepondo a qualquer ideia a respeito da imagem que vemos. Ainda tem o som preciso e a beleza da música a se somar a tudo isso. Todo esse refinado acabamento audiovisual eleva o filme a um patamar onde o que vemos e sentimos é um prazer masoquista pela morte alheia. A própria ideia de mise-en-scène é vazia, na medida em que toda a parafernália de truques e bailados de morte não possuem sentido em si. Não há nada para além da performance, ela se encerra em si mesmo e pela beleza pela beleza, a cena nada acrescenta porque a história não passa de um fio, como se fora uma fruta com pouco sumo.
Entretanto, precisamos pensar na trama que o filme apresenta, e deixar momentaneamente de lado o visual e o som. Precisamos ir além dos artifícios das cortinas de fumaça do espetáculo apresentado, para podermos discutir também quem são os personagens e o que representam no mundo real, afinal, eles são donos de hotel, mafiosos, donos de casa de jogos, matadores de aluguel, entre outras "formas de trabalho". Wick é um matador aposentado, ou que pelo menos tenta desde a morte da esposa. A narrativa do filme nos faz apegar a ele, torcemos por ele, um criminoso com mais de 300 mortes nas costas, ele não é um justiceiro, apenas um matador que contratam para esse fim. Só que agora ele é a caça e o valor para matá-lo é exorbitante. É importante observar como a trama escamoteia os personagens, quem eles são, quais os seus papéis no mundo. Eles exploram ou são explorados? São ricos por merecimento ou são simplesmente bandidos travestidos de empresários. Quais as suas relações com os políticos ou os poderosos, os influentes? Quem estão por trás deles? Eles são uma espécie de testas de ferro de empresas? Essa tal Alta Cúpula, quem eles representam no mundo dos mortais? Essas questões ficam à deriva, perdidas no meio da ação desenfreada do filme.
Somos profundamente seduzidos pela beleza desse mundo cão, sujo e nojento. Os artifícios imagéticos, sonoros e cômicos, são os elementos que nos empurram goela abaixo, que satisfazem nosso desejo mesquinho de poder momentâneo. Alguém já contou que Wick não diz mais do que 300 palavras em suas quase 3 horas de duração. A não fala dele revela muito sobre sua moral, afinal, se falasse muito se revelaria para além da conta, perderia o mistério e a identificação com o público, que o veria como realmente é. As bizarrices das longas sequências de lutas e tiros, sempre com Wick, são hipnóticas, indescritíveis mesmo, são para ser desfrutadas pelo espectador seduzido pela velocidade dos milhares de planos vertiginosos que nos atropelam a quase todo momento, em diversas paisagens pelo mundo, como Berlim e a iluminada Paris. Em uma das sequências, "John Wick 4 - Baba Yaga" emula um desses jogos violentos de videogame e temos a sensação que somos nós a matar todos aqueles seres que surgem a nossa frente. Tudo é frio e falso, e as mortes também o são, funcionam como uma ilusão de que podemos ter controle sobre o mundo.
Mas afinal, voltemos a pergunta de Bazin: o que é cinema? Há mais de cem anos o cinema hegemônico, ou na evocação de Paulo Emílio Sales Gomes o cinema ocupante, tenta nos convencer que é a arte do mais puro entretenimento, do movimento e da distração alienante, já que de real basta a nossa medíocre vida. Mas Bazin e seus discípulos, entre eles o nosso Sales Gomes, viram o cinema como uma linguagem complexa, calcada na realidade, na concretude do viver e que por meio dela podemos pensar o mundo a nossa volta. Assim o fizeram o cinema moderno a partir de "Cidadão Kane" (1941), os filmes do neorrealismo italiano do pós-guerra, a Nouvelle Vague Francesa, os cinemas novos que tomaram conta de vários países e que abriram caminho para um poderoso cinema contemporâneo que passa pela Nova Hollywood, o cinema iraniano, o cinema de Tarkovski, Bela Tárr e tantos outros que vislumbraram o cinema como risco, sem jamais tratarem o público como um receptáculo passivo.
Quando apenas o viés do espetáculo domina a cena, eu aciono de imediato minha lanterna de alerta para não me deixar levar pela sedução das luzes e sons inebriantes que tentam fisgar minha razão. Se o cinema não exercita e desperta o pensamento das pessoas, sua capacidade reflexiva, para que ele serve então? Somente para nos desafogar da degradação humana? Mas se apelamos para a degradação para nos esquecer da degradação, qual então seria o sentido disso tudo? Enaltecer a beleza sem trazer conteúdo é algo vazio e estéril, assim como igualmente o é o conteúdo desprovido da forma.
Magnífica a sua crítica Marco Fialho. Em tudo e por tudo que escreveu, está a razão do porquê não me atrevi a conferir o filme. "Mas se apelamos para a degradação para nos esquecer da degradação, qual então seria o sentido disso tudo? Enaltecer a beleza sem trazer conteúdo é algo vazio e estéril, assim como igualmente o é o conteúdo desprovido da forma." Perfeito este desfecho, como o restante do texto.
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